Prédica: Rute 1.1-19a
Leituras: Lucas 17.11-19 e II Timóteo 2.8-13
Autor: Sisi Blind
Data Litúrgica: 21º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 24/10/2004
Proclamar Libertação – Volume: XXIX
Tema:
1. Introdução
Estamos caminhando para o fim do ano eclesiástico. Resta-nos pouco tempo até o Advento. Este tempo polêmico entre o fim e o novo começo é sugestivo para o estudo do texto de Rute, complementado pelas duas leituras propostas. Lembremos que o final de qualquer coisa também é tempo de análise, reflexão e possibilidade de recomeço.
Os textos propostos nos convidam à perseverança. Ser perseverante não tem sido uma tarefa muito fácil em nossos dias e também não foi em tempos idos. Timóteo, filho de pai grego e mãe judeu-cristã, é convidado a ser perseverante em tempos em que ser fiel é sinônimo de sofrimento, decorrente da perseguição.
Lucas nos relata a cura de dez leprosos. São dez excluídos pela lei social e religiosa da época. Lepra era doença ruim. Seu alto risco de contágio fazia das pessoas portadoras da doença personas non gratas. Com a cura a vida volta à normalidade. Dos dez curados somente o estrangeiro volta para agradecer. Para Jesus não restou quase nada, apenas um, o qual foi agraciado pela salvação. Da fé madura do samaritano renasce a esperança. Apenas um é pouco, mas é a perseverança deste que possibilita o testemunho da graça e do amor de Deus.
O texto de Rute retrata o fim de uma caminhada dura e o início da trajetória de esperança. Resta pouco, muito pouco para recomeçar. Daquele pouco ressurge a esperança, porque há sinais de perseverança e de fidelidade.
2. Livro de Rute
Trata-se de uma história antiga que a tradição oral carregou por muito tempo. É uma saga popular que recebeu a forma literária de uma novela no período pós-exílico.[1] Portanto, contempla a situação familiar e social de vários períodos. Conta-nos de forma sábia e objetiva as tradições e contradições de um povo que tem sua força a partir da perseverança dos pobres, que se levantam para a reconstrução da vida a partir de sua fé em Deus. A história nos testemunha que acima das leis existe a opção do seguimento e por conseqüência a resposta da acolhida de Deus. A protagonista da história, Rute, é uma estrangeira, e isto mostra que a salvação não tem fronteiras: o amor de Deus não é nacionalista, nem exclusivista. Sob esta ótica, o livro também pode ser considerado um protesto contra a prática desumana de Esdras e Neemias na questão relacionada aos estrangeiros e na ocorrência de matrimônios mistos.[2] Coloca-se como advertência para todos aqueles que fazem das leis o objetivo da vida.
Com a apresentação de uma história familiar, o livro de Rute nos conta a trajetória e a luta do povo pobre na busca de seus direitos. O livro não tem data e nem assinatura. Apenas conta a história. Existem autores que defendem uma formação pós-exílica. Esse tempo são os anos de 458 a 445 a.C., mais ou menos cem anos após o cativeiro.[3]
Nabucodonosor, rei da Babilônia, havia destruído a cidade de Jerusalém e matado muita gente. Parte do povo que sobrou foi levado ao cativeiro e lá ficou machucado e espoliado durante quase 50 anos. Quando o rei dos persas, Ciro, derrotou o rei da Babilônia, deu licença ao povo para voltar a Jerusalém. Um pequeno grupo retornou, mas as dificuldades foram tantas, que a situação não ficou melhor do que a do cativeiro. Dessa história de sofrimento e luta por sobrevivência é que nasce o livro de Rute.[4] O período pós-exílico foi muito difícil. Era preciso recomeçar tudo. As antigas tradições estavam esquecidas e era preciso fazer reformas que atingissem os fundamentos econômicos, políticos e sociais, para que o povo de Deus não perdesse sua identidade.
A Bíblia de Lutero – assim como a Septuaginta e a Vulgata – apresenta o livro de Rute entre o livros dos Juízes e 1 Samuel.[5] Esta seqüência é dada pela tradução grega do Antigo Testamento. Na tradução do hebraico, o livro de Rute segue Provérbios. A boa intuição dos gregos celebra o tribalismo e nele, em especial, a capacidade organizativa das mulheres. Enquanto o Estado não dá a mínima garantia de vida, a vida tribal garante espaços até para uma estrangeira.[6]
Existe polêmica quanto à formação, à meta e ao lugar do livro de Rute. Optamos pela versão que o coloca na formação pós-exílica. Concordamos também que é uma novela muito bem elaborada, que simboliza a polêmica situação do povo naquela época. A sobrevivência daquele povo não se dá porque existem amparos da legalidade e da estrutura religiosa e estatal. A sobrevivência se dá através da memória história da comunidade tribal, da perseverança, da fé e da opção pela busca inconformada pela continuidade da vida. O livro de Rute nos conta a trajetória de um povo que não se deixa abalar. Quando já não resta mais esperança, é das migalhas, do resto que se recomeça a caminhada. Geraldo Vandré parece ter cantado já naquela situação: “Vem, vamos embora, que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.
3. Chaves da porta do livro de Rute[7]
Segundo Carlos Mesters, há três chaves para a porta do livro de Rute:
Primeira chave: a realidade;
Segunda chave: o sentido escondido no nome das pessoas;
Terceira chave: o esquema do livro.
A realidade: É o fim da trajetória de uma família patriarcal. Não há mais família, não há mais terra, não há mais comida, não há futuro. O livro inicia contando o drama de uma família que, forçada pela carestia, deixa sua terra, Belém de Judá, e migra para os campos de Moabe, buscando maneiras de sobreviver. Ali o drama se aprofunda:
1 – morre o marido;
2 – os filhos casam com mulheres estrangeiras (moabitas);
3 – os filhos morrem;
4 – só restam três mulheres viúvas.
O sentido escondido no nome das pessoas, que revela o que a pessoa faz dentro da história:
• Elimeleque, nome do marido: Meu Deus, meu rei.
• Noemi, nome da esposa, significa graça ou graciosa.
• Mara, outro nome da esposa, significa amargura.
• Maalon, nome do primeiro filho, significa doença.
• Quelion, nome do segundo filho, significa fragilidade.
• Orfa, nome da primeira nora, significa costas.
• Rute, nome da segunda nora, significa amiga.
• Boaz, nome do parente próximo, significa pela força.
• Obede, nome do filho que nasce, significa servo.
O esquema do livro: Da opressão e miséria para a reconstrução e a esperança.
4. Texto
Nosso texto tem duas subdivisões maiores:
1 – Em busca da sobrevivência (1.1-5);
2 – A volta (1.6-19a).
1 – Em busca da sobrevivência (1.1-5)
Como em uma parábola, poderíamos reconhecer na história de Noemi e Elimeleque a própria situação do povo de Israel. Por terem perdido a possibilidade de sobrevivência em sua terra, foram para outro país em busca de opções. No estrangeiro, a situação não melhorou; pelo contrário, ficou ainda pior.
Usando a chave dos nomes, podemos entender o sentido do passado. Com a morte de Elimeleque desfalece a profissão de fé do povo. O povo esqueceu Deus. O casamento dos filhos com estrangeiras simboliza a infidelidade a Deus. Noemi, que representava a graça, vira amargura. A vida do povo perdeu a graça e se converteu em amargura.
Maalon e Quelion são os dois filhos do casal Elimeleque e Noemi. A aliança entre Deus e o povo gera Israel e Judá, que por causa da infidelidade a Deus se tornam frágeis e doentes. A busca pela sobrevivência que os levou ao estrangeiro perdeu sua memória, suas raízes, sua fé e sua identidade e, por fim, suas vidas. Dos dois reinos, Israel e Judá, sobrou apenas o resto do povo massacrado e espoliado. Da família imigrante ficou só a Noemi, enfraquecida e sem força para gerar um novo futuro. Noemi espelha a própria realidade do povo. O retrato do povo e seu sofrimento nos é repassado através da história do livro de Rute. No estrangeiro, a graça se transforma em amargura.
2 – A volta (1.6-19a)
A palavra volta tem sua importância centrada nesse texto. Ela aparece doze vezes. Para Rute e Orfa, significa voltar para a casa do pai e permanecer em Moabe. Para Noemi, essa volta não tem apenas o significado de um simples retorno. Voltar aqui significa converter-se, mudar de visão, começar a enxergar a situação. Significa voltar às raízes, aos costumes, à situação ideal dos tempos dos juízes, recompor a lei das tribos, que dá possibilidade de sobrevivência aos pequenos e marginalizados.
O início de tudo (1.6) é: “se dispôs”[8]. Dispor-se significa colocar-se em movimento. “Vem, vamos embora…” O que provocou esse movimento foi a fé na notícia da visita de Deus à sua terra (1.6b). O povo foi infiel, mas Deus dá notícias de sua presença e amor. Esta oferta está disposta para todos (são dez os leprosos que foram curados).
A caminhada é iniciada pelas três mulheres (1.7). São três, mas pela sociedade da época não somam juntas o valor de uma pessoa. Vejam o contexto: Três viúvas pobres, uma é do povo de Deus, duas são estrangeiras. Socialmente, nada pode ser mais fraco e inexpressivo: são mulheres, são pobres, são viúvas e são estrangeiras. A realidade dos acontecimentos contesta a lógica social. A força embutida na pequenez é que transforma a realidade de morte em realidade de esperança. O novo broto nasce do tronco marginalizado pela organização social da época. A poesia do Rodolfo sabiamente espelha essa grandeza: “Atrás da sua voz tão sufocada está um grito, que sonho mais bonito está oculto em seu olhar! A verdadeira força se esconde na fraqueza, a esperança é certeza dum dia novo que há de vir”[9].
Depois dos primeiros passos dados no caminho de volta, Noemi chama as noras para a reflexão e lhes expõe a dura realidade que terão que enfrentar. Ela não tem nada para oferecer a não ser o risco de caminhar e o fracasso, a amargura na qual está inserida. Noemi anda no escuro; a única luz é a fé.
A esperança de Noemi é baseada na fé que enxerga no escuro. Esse é o seu Deus, essa é a sua fé. Ela não quer forçar suas noras a seguirem por esse caminho. Ela as convida para que voltem à casa paterna. Ali elas terão segurança, casa, família e descendência. O voto de Noemi para suas noras é que Deus tenha benevolência para com elas (1.8-15). O desejo de Noemi é que a misericórdia de seu Deus se manifeste também às suas noras, cuja raça e religião são outras.
Orfa faz sua opção com um beijo. Aliás, o beijo, que é um gesto de carinho, também foi a opção de Judas. Ela dá as costas, não assume o compromisso da caminhada. Muita gente também não consegue permanecer (nove dos leprosos curados também deram as costas).
Rute, por outro lado, é a amiga, a companheira que faz a opção de caminhar junto. As palavras dos v. 16,17 e18 do capítulo 1 são claras, simples e profundas. Elas descrevem as condições para alguém poder pertencer ao povo de Deus e participar de sua caminhada. Rute é estrangeira, não é a condição de raça ou da antiga religião que a faz optar pela caminhada. É seu compromisso concreto com Noemi e com o seu Deus que a faz pertencer a essa caminhada. (A salvação é concedida ao samaritano. Dos dez leprosos, o único a voltar foi o estrangeiro. É sua fé que o compromete.)
Rute não dá chance a Noemi para não aceitar a sua companhia. A opção é motivada por amor. Ela renuncia ao conforto e ao bem-estar da casa de seus pais, à estabilidade em seu país. Rute assume o risco de caminhar na escuridão sob a luz da fé. Noemi foi convencida pela perseverança e persistência de Rute.
5. Mensagem
A realidade da família em Moabe é o ponto de partida para a reflexão. Noemi está em terra estranha com os seus, porque não houve opção de permanência em sua terra. Nesse lugar, a vida se faz áspera. Colocada em face de seu problema, ela reage por assim dizer profeticamente, quando detecta de forma intuitiva a sua contradição com o plano divino. A miséria é ofensa contra a vida. É seu dever colocar-se na luta pela justiça e pelo direito. Os olhos de Noemi aprendem a enxergar no escuro.
Na história, na experiência de tempos passados, Noemi encontra sinais de esperança. Quando ela propõe a volta, ela celebra a possibilidade de encontrar amparo para sua miséria na forma da construção social de seus antepassados. A volta significa engajamento pela justiça e para a superação da situação marginalizante em que está inserida.
O exemplo de perseverança transmitido por essa história faz renascer a esperança. Nesse horizonte encontram-se valores fundamentais como o amor, a solidariedade e a fé, manifestados na pessoa/personagem Rute. Ela se coloca a caminho, não porque isto lhe proporcionasse comodidade, mas porque sua fé a desaloja em direção à busca. É uma opção a partir da identificação com uma causa. Neste caso, a causa é a recuperação da vida e dignidade de um povo.
Pela fé ela se faz presente e atuante em todos os momentos. A ação de Rute se revela como comprometimento com a outra pessoa. Este compromisso é com o Senhor e com a pessoa oprimida. A decisão parte decididamente da fé. Fé como uma atitude fundamental que não se reduz a nenhuma outra. A fé obriga a romper com os limites do egoísmo pessoal. Esta fé a impulsiona para o outro, para a solidariedade, que a coloca diante do real significado da palavra de Deus.
A opção de Rute é um mergulho na escuridão de Noemi. A opção se faz compromisso. Este comprometimento exige perseverança e entrega. Essa história é excelente nesse testemunho. Somos convidados em nossa caminhada a refletir e analisar os passos de nossa caminhada e o nível de perseverança e comprometimento que alcançamos até aqui e até onde caminhamos no confronto com a palavra de Deus e o convite para o testemunho da ação do próprio Jesus.
6. Subsídios litúrgicos
1 – Este culto deveria ser preparado com antecedência com a comunidade, convidando todos os participantes a trazerem o resto de algum alimento que têm em casa. Qualquer alimento do qual já se consumiu uma parte (resto de bolachas, resto de bolo, resto de cuca, resto de pão, resto de frutas, resto de balas…).
2 – Este material deverá ser colocado numa mesa diante do altar durante a celebração, de forma desordenada. Pedir que a mesa seja observada por todos.
3 – Combinar previamente com duas ou mais pessoas para que arrumem a mesa, para que esta fique bem bonita. (Durante a arrumação da mesa, a comunidade canta.)
4 – Refletir na mensagem o processo e o resultado. É provável que, somando o resto que trazemos de nossa casa com os restos que vieram de outras casas, quando organizados, formamos uma nova realidade. Isto só é possível por causa da partilha, do compromisso e da perseverança. Assim também nossos dias se fazem. Assim o povo de Deus tem perseverado na história.
5 – Se houver ceia, o pão também poderá ser preparado com os restos de uma casa ou de um grupo de estudos.
6 – Convidar a comunidade a trazer para sua reflexão a partir da partilha e depois complementá-la com uma reflexão baseada na história de Rute 1.1-19a.
Notas bibliográficas
1 HOMBURG, Klaus. Introdução ao AT, p. 125.
2 idem
3 HOMBURG, Klaus. Introdução ao AT, p. 126.
4 MESTERS, Carlos. Rute – uma história da Bíblia, p. 18.
5 HOMBURG, Klaus. Introdução ao AT, p. 123.
6 SCHWANTES, Milton. Sofrimento e esperança no exílio, p. 40.
7 MESTERS, Carlos. Rute – uma história da Bíblia, p. 26s.
8 Tradução revista e atualizada de João Ferreira de Almeida.
9 Resistência – Rodolfo Gaede Neto.
Bibliografia
HOMBURG, Klaus. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1981.
MESTERS, Carlos. Rute – Uma História da Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1985.
SCHWANTES, Milton. Sofrimento e Esperança no Exílio. São Leopoldo/São Paulo: Sinodal/Paulinas, 1987.
Proclamar Libertação 29
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia