Prédica: 1 Coríntios 15.1-20
Autor: Ulrich Schoenborn
Data Litúrgica: Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 23/03/1978
Proclamar Libertação – Volume: III
… antes é preferível ser atrevido com Paulo…
do que ficar sentado em terra plana com aqueles que fizeram da sua razão a medida para esse mundo e para o além. – (H. J. Iwand).
l – Consideramos a preparação da prédica como processo que relaciona reciprocamente três potnos: Deus/o texto – o pregador – a situação/a realidade da vida. Não existe uma lei que diz onde começar nesse triângulo hermenêutico. O resultado em todo caso é uma descoberta, um fenômeno até agora não visto. Dentro desse relacionamento cabe à prédica a tarefa de se tornar disclosure (I.T.Ramsey), isto é, de abrir um novo caminho tal que a força transformadora da promessa se torna evidente. Por outro lado, a realidade miserável e alienada revela-se como contexto para Deus, para a fé e para a obediência em amor e esperança (E. Lange).
A ocasião da prédica (Domingo de Páscoa) e o texto (l Co 15) pressupõem um tema bem conhecido. Por isso é razoável esclarecer esse entendimento anterior, esse pré-saber, que existe muitas vezes de forma não refletida no sub consciente ou numa concepção ingénua. O método para esse trabalho deve ser a explosão de ideias. Normalmente o pregador prepara a sua prédica sozinho; melhor seria fazer isso em cooperação com outras pessoas.
a) Antes de mais nada analisemos o campo semântico. Partimos de palavras chaves como ‘páscoa’ ou ‘ressurreição’ ou da confissão ‘'Ele ressuscitou verdadeiramente’. Circulamos em torno dessas palavras e anotamos as nossas ideias e associações sem discussão ou avaliação. Para exemplificar tomemos a pergunta: Que experiências ou que noções você combina com a palavra 'páscoa'? Todas respostas serão anotadas. Gostaria de comunicar duas manifestações a respeito : Páscoa é como a volta de um soldado supostamente morto, cujo enterro já foi celebrado … Páscoa é como uma palha que carrega toda a tripulação de um navio naufragado (Ahrens, 109).
b) Sabemos que as palavras chaves da fé cristã estão emocionalmente carregadas. Esta é a razão de nosso interesse pelo valor emocional destas palavras. A tarefa nesse nível consiste em descobrir até que ponto a comunidade, o ouvinte, nós mesmos estamos envolvidos na confissão ao ressurreto.
Encontramos o campo emocional em imagens, metáforas, circunscrições, comparações e 'jogos de palavras'. Também nessa reflexão anotamos as ideias sem avaliação. No fim faremos uma classificação e valoração dos temas. Para destacar o resultado dessa reflexão, tomamos ‘jogo de palavras’ (p.ex.: o termo ressurreição está etimologicamente ligado a insurreição; em alemão : Aufstand – Auferstehung) e esperamos para onde nos leva a etimologia. Ou nós lemos uma poesia e nos deixamos provocar pela manifestação do poeta (.cf. J. Dias de Araújo, Imagens de Jesus Cristo na cultura do povo brasileiro, em: Quem é Jesus Cristo no Brasil?, ASTE 1974, p.39ss).
c) Com a análise do campo semântico e emocional nós já nos encontramos na situação da comunidade. Agora questionamos explicitamente a existência concreta, as experiências vividas (problemas, perguntas, dúvidas, esperanças, pontos culminantes, sofrimentos, inimizades, etc.). Por exemplo: Como se comportam pessoas sem esperança? Como reagem pessoas que não vêem sentido na vida? Como pensam pessoas que não acreditam nos valores da vida? Como se portam pastores no enterro? Como se evidencia uma comunidade crista numa sociedade que valoriza mais a destruição da vida do que a conservação e a promoção da vida? Que mitos e que ideologias conturbam as nossas mentes?
Este trabalho mostra claramente que o pregador deve ser advogado da verdadeira situação e não da situação distorcida. A prédica fala em favor e não contra o ouvinte. Ao mesmo tempo o pregador é o advogado do texto. Este anima a fazer novas experiências de ver a situação ã luz da promessa de Deus.
Neste sentido queremos considerar agora 1 Co 15,1-20 como modelo hermenêutico. A confissão ao ressurreto tinha entrado em crise por causa de certa interpretação e de um comportamento correspondente. O Apóstolo reage com um discurso argumentativo e convida à reflexão. – Certamente a situação em Corinto não é a nossa. Nós estamos condicionados por outros fatores históricos. Não obstante, este discurso paulino talvez incentivará a nossa meditação.
d) Antes de iniciar as considerações exegéticas temos que levar em conta o seguinte: A ressurreição de Cristo é um mistério. Preparação de prédica e ouvir exigem trabalho de reflexão. Surge a pergunta: Podemos fazer justiça a um mistério pelo trabalho de pensar e refletir? – É possível! Pois temos que diferenciar entre mistério e enigma. O problema do enigma acaba com a sua solução. Nesse os cientistas resolvem com seu trabalho os problemas do mundo. Eles assumiram o compromisso de buscar soluções em favor da vida. Mas, a solução do cara ter enigmático ainda não leva simplesmente ao estado sem mistério. Por isso afirmamos que o pensar e refletir não destrói o mistério. Imagine-se pessoas ou eventos que se tornam tanto mais misteriosos quanto mais conhecidos eles são: p.ex. o amor. Isso se pode dizer principalmente do mistério que nos chamamos 'Deus'. Consequentemente também o mistério da morte de Jesus pode ser tratado com ‘trabalho reflexivo’. O refletir não destrói o mistério. Pelo contrário. Nós o conhecemos mais e mais para descobrir novos aspectos no mistério dos mistérios (cf. E. Juengel, Von Zeit zu Zeit, p.65).
II – O tema em l Co 15,1-20 é a ressurreição dos mortos. Mas só a partir do v.12 Paulo aborda explicitamente esse tema. Nos vv.1-11 ele aparente mente reflete o tema da tradição e do apostolado. Uma controvérsia com os coríntios tornou necessária essa reflexão crítica. Devemos pressupor que ele não tem interesse na apologética nem na especulação. Ressurreição para ele é um tema da fé e não da visão do mundo (H.Conzelmann, p.294). O método dele por isso não pode ser a prova lógico-formal, apesar das operações lógicas no v.12ss. Pelo contrário, a argumentação visa a praxis da fé. Da base no credo ele deriva consequências antropológicas. Porque os princípios da fé devem ser interpretados e atualizados sempre de novo ou eles perdem o seu caráter desafiador.
Vv.l-3a: Com uma introdução solene Paulo lembra a comunidade do evangelho que foi pregado a ela. A frase complicada deixa transparecer que em Corinto autoridade e conteúdo da mensagem foram aceitos (paralambánein, paradidõnai/ receber, transmitir) e estavam em vigor (histânein, pisteúein/ permanecer firme, crer). Ou trata-se só de uma 'captatio benevolentiae'? De uma lisonja?
Ele começa com o conhecido: O evangelho e a fé têm um início. A partir disso se desen volve um contexto. Exatamente isso importa – a vivência em Cristo. Ressurreição é vista sempre como fator integrante da comunidade, nunca como fato isolado, sobre o qual dá para construir teorias. A superação da morte significa para ele o começo do senhorio daquele com quem começa o reino da liberdade divina (E. Kaesemann).
O dialogo do momento (gnoorízoo/ lembro – v.1) entre Apóstolo e comunidade refere-se a um fenômeno histórico (verbos no perfeito) e 1iga isso com uma novidade, o relato sobre um terceiro. A atualidade do falar é o fato da vida renovada em Cristo, e esse presente tem futuro (sóozesthe/ sois salvos – v.2).
Vv.3b-5: Os conceitos fixos do transmitir (paralambãnein , paradidonai/ receber, transmitir) mostram que a partir do v.3b é citado material tradicional (gepraegtes Formelgut). Estilo, linguagem e conteúdo não paulinos, formulações semelhantes em outros lugares, também indicam que encontramos aqui material litúrgico que já era usado nos primeiros dias da cristandade primitiva. (Provêm da metade dos anos trinta ou do início dos anos quarenta do primeiro século.) Não obstante a briga exegética sobre extensão, uniformidade e complementos explicativos, pode-se distinguir duas afirmações básicas com três complementos explicativos:
(v.3b) que Cristo morreu por nossos pecados
segundo as Escrituras
(v.4a) que foi sepultado
(v.4b) que ressuscitou ao terceiro dia
(v.5a) segundo as mesmas Escrituras
que foi visto
(v.5b) por Cefas e depois pelos doze
As fórmulas de fé na comunidade primitiva acentuam ou o morrer (cf. Rm 8.31s; Gl l.14; Ef 5.2; Rm 5.6; l Co 8.11; l Ts 5.10) ou o ressuscitar (cf. Rm 10.9; l Co 6.14; l Ts 1.10). Aqui ambos estio enquadrados. A referência as Escrituras ressalta essa ligação semântica. Além disso, entram na formula 'provas' do morrer fático (v. 4a etáphee/ foi sepultado) e do ressuscitar fático (v.5 óophthee/ foi visto).
É interessante observar que o verbo ‘morrer’ aparece no ativo (apéthanen), quer dizer, o morrer é a ação do Cristo. Todas as outras formas verbais estão no passivo. 'Cristo' não pode ser compreendido como título, mas nisso está implícito o momento escandaloso de que o Jesus terreno morreu como Cristo-Messías. A cruz transformou as concepções messiânicas dos homens que se tornaram cristãos.
A morte de Cristo – assim é anunciado – aconteceu por nossos pecados. A preposição hyper possibilita várias traduções: em favor, por causa de, por, em substituição a. Nessa expressão fundem-se os motivos da substituição e da expiação.
A menção das Escrituras refere-se as palavras imediatamente anteriores. Elas não querem ser comunicação histórica, mas querem abrir um horizonte teológico. Nessa linha 'o terceiro dia1 não é uma alusão a Os 6..2, mas uma indicação do tempo salvífico. 'O terceiro dia’ é o dia de¬cisivo, ou nada vai acontecer (cf. Gn 42.18; ÊX 19.11.16; 2 Sm 1.2; Jo11.17ss; Lc 2.46; At 9.9). Os vv.3b.4a e vv.4b.5a.5b contrapõem-se como num esquema de contraste. A expressão ‘kai hóti egeégertai/ que ressuscitou’ introduz uma nova cena na história entre Deus e homem. No linguajar grego ressalta-se algo que não transparece nas traduções. As fórmulas que testemunham a ressurreição empregam o verbo muitas vezes no 'aoristo', indicando um evento concluído. Também em l Co 15. 3b-5 todos os verbos estão no aoristo. Com uma exceção. O 'ressuscitou/ egeégertai' v.4b está no 'perfeito1, que acentua o efeito perpétuo dum evento no passado… Isso pode ser interpretado como sinal de que o ressurreto agora está presente. A morte salvífica não conclui a história da salvação, mas a inicia (Weber, p.58).
A presença do ressurreto se manifesta em visões (óophthee), torna as pessoas atingidas em testemunhas e inicia a pregação. O 'oóphthee’ (passivo!) implica a iniciativa do ressurreto. Não se trata de uma ideia surgida na psique do homem. Podemos traduzir 'visão do ressurreto’ pelo seguinte: concretização da atuação do crucificado na missão e existência dos mensageiros (cf. 2 Co 4.7ss; 6.lss; 11.16ss). Não por causa dos apóstolos a ressurreição é verdade, mas a auto-verificação de Deus no ressurreto torna, isto sim, pessoas apóstolos (K. Barth). A questão controvertida, se essas visões motivaram a formação de igrejas, não pode ser desenvolvida neste contexto.
Vv.6ss: Inicia uma nova reflexão (cf. épeita … épeita/ em seguida …depois) apesar da repetição de 'óophthee’. Paulo menciona uma série impressionante de testemunhas. Por que esse esforço, se em Corinto a confissão ao ressurreto permanecia em vigor por mais controvertida que seja? – Percebe-se que são mencionadas testemunhas que já morreram (v.6c). Paulo leva a sério os problemas da comunidade onde a morte parecia excluir da participação na ressurreição. Num sentido temporal bem específico ele distancia o fenômeno 'ressurreição’ do presente. Com isso se torna impossível a apropriação direta e exploração da mesma (cf. H.Conzelmann, p. 304; E. Guettgemanns, p . 73ss) .
Vv.8ss: Paulo complementa a série impressionante das epifanias com mais uma visão. Nela se expressa uma auto-humilhação do Apóstolo (vv.9s). Por quê? – Podemos excluir que o v.7 (a autoridade quantitativa dos de Jerusalém) oferece a razão para os vv.8ss. Paulo tomou o último lugar na fila e aparece, por isso, como 'éktrooma/aborto'. Provavelmente ele adota um palavrão dos inimigos: monstro desde o nascimento. Polemicamente ele inverte o sentido. Eles o acusam de representar uma posição marginal com sua pregação da distância temporal do ressurreto. Em Corinto corre a opinião de que o verdadeiro apóstolo prega a identidade entre o Cristo e os cristãos, e não conhece uma distância temporal. Contra isso Paulo contrapõe a unanimidade e unidade Ccf.vv.1s.11) de todos os mensageiros na boa nova (cf.vv.3b-5)- Ele foi chamado pela graça de Deus como o último dessa comunhão. A lista das testemunhas poderia ter função legitimadora e autobiográfica. No entanto, não a disposição da pessoa garante comunhão com o ressurreto. Decisivo é o tempo da graça, que aparece quando quer e de forma contrária (sub specie contrarii) (cf. H.Conzelmann, p.306). Temos que compreender as manifestações do 'eu’ no v.10 dia1eticamente como Gl 2.20 o mostra. A auto compreensão do Apóstolo encontrou em Cristo o seu sujeito lógico. Na pessoa do Apóstolo o crucificado torna-se evidente.
O v.11 volta ao início (vv.l-3a) depois de uma relativização das diferenças humanas (cf. 2 Co 5.9; Fp 1.20; l Ts 5.10..). A união entre mensagem e fé é ressaltada. Todos pregam a ressurreição . A autoridade apostólica de Paulo também. Onde está a diferença básica? – Nós suspeitamos: nas consequências para a fé.
Nesse ponto devemos refletir que posição causou toda controvérsia em Corinto. À primeira vista a frase ‘anástasis nekroon ouk estin/ não há ressurreição dos mortos’ (v.12), que Paulo ouviu como boato, parece indicar a dúvida grega quanto à vida além da morte. Mas isso não coincide com a imagem que nós temos da comunidade de Corinto. Uma outra tese, que considera a crítica contra a doutrina judaica da ressurreição e representa a imortalidade da alma, não tem base nos textos .
A controvérsia entre Paulo e os coríntios mostra-se como controvérsia cristológica. Conhecemos as tendências na comunidade de separar o homem Jesus de Nazaré do ser espiritual e celestial Cristo (cf. l Co 12.3)- Surgiu o postulado de que o Jesus terreno está morto, que a cruz é uma loucura, um escândalo. A cruz acabou com o Jesus terreno (cf.1.23). A crucificação não é estado transitório nem evento salvífico. Por isso o v. 12b tem um alvo cristológico. A ressurreição atinge só os vivos, quer dizer os gnósticos (cf. a manifestação no evangelho gnóstico de Felipe: Aqueles que afirmam que a gente vai morrer e depois ressuscitar enganam-se. Quem não recebe a ressurreição ainda em vida não vai receber nada quando morto. – E.Hennecke/W.Schneemelcher, p. 194ss). O Jesus terreno, no entanto, esta morto, e não tem importância para a comunidade.
Em Corinto atuam entusiastas, que antecipam no espírito uma ressurreição universal. Eles ensinam: anástasis éedee gegonénai/ a ressurreição já se realizou (cf. 2 Tm 2.18; 2 Ts 2. 2). Com truques eles omitem em seu entusiasmo o fato que só o Jesus terreno ressuscitou como aparchée/ primícia e foi transferido para o futuro de Deus como tempo de Deus. Seduzidos pela certeza fictícia da nova era, eles, como os salvos, identificam-se com o espírito-salvador que não tem ligação alguma com o mundo. Eles negam qualquer compromisso ético na terra e bagatelizam a realidade da morte.
Nós conhecemos a função central da palavra da cruz (I,l8ss) na pregação de Paulo. Por isso o Apostolo formula em antítese cristológica : comunhão como Cristo celestial e espiritual só existe ali onde esse Cristo revela o Jesus terreno como Senhor. Isso se mostra exatamente no 'Cristo' sem artigo nos vv. 3-12.14, quer dizer, trata-se do Jesus crucificado, isto é, o Jesus terreno que é separado temporalmente dos coríntios. Para Paulo interessa uma distância perpétua entre o Jesus terreno como 'kyrios/ senhor’ e os cristãos justificados. É uma distância tanto temporal quanto cristológica, em todo caso uma distância em favor do homem (cf. E.Guettgemanns , p.68). A comunidade não compreende que o evento escatológico é um processo aberto e que os, salvos pertencem ao presente!
As colocações dos vv. 1-11 são seguidas por uma argumentação em que Paulo procura eliminar dúvidas. Nisso os vv.12-19 ligam intimamente credo e esperança. Paulo não deixa dúvida quanto à identidade da pregação do ressurreto com a pregação do crucificado. E esta não oferece teses ideológicas, mas marca, isto sim, a existência do fiel no discipulado e abre expectativas.
A controvérsia entre Paulo e os coríntios é a seguinte: ressurreição só dos vivos ou ressurreição dos mortos. A argumentação a partir do v.12 evidencia que a afirmação a respeito de Jesus envolve o próprio futuro. Veja também a in¬clusão de 'keerússetai hóti’, pelo qual o 'Cristo' é destacado mais uma vez (cf. vv.3b-5). Cristo é pregado como ressurreto; não os homens (.cf. 2 Co q,5). O alvo é a identidade e autenticidade da fé que implicitamente coloca em dúvida consequências erradas, negando o futuro da existência. Pois a ressurreição de Cristo já acontecida e a ressurreição dos cristãos ainda não acontecida estão rela¬cionadas intimamente. Para Paulo tudo depende dessa distinção cristológica-temporal . Insistindo nisso ele quer levar a fé a uma correspondência justa com o 'já acontecido’ e com o 'ainda-não-acontecido'. Só falar em termos de 'ser atingindo’ não basta. Os coríntios contestam a ressurreição de Jesus dos mortos. Com isso eles não somente leva a pregação ao absurdo, mas também anulam a premissa para o futuro da própria existência (vv.13ss).
V.15: Se a tese controvertida dos coríntios tivesse razão, cada 'martys/ testemunha' seria um 'pseudomártys/ testemunha falsa'. Ele faria afirmações erradas sobre Deus e tornaria Deus um mentiroso. Pois mortos não se tornam vivos (v.16). Argumentando 'via negationis’, Paulo mostra no v.17 a absurdidade da fé segundo essa 'verdade'. Pois o quérigma, que prega o Jesus terreno como morto em favor de nós (v.3b) e depois ressuscitado (vv.4.12), seria sem conteúdo (v. 14), pois o Cristo crucificado (sempre conforme essa verdade) não foi ressuscitado. A absurdidade e falta de conteúdo da fé expressa-se no fato de que o pecado está dominando o ser humano (v.17b). Se está certo que na 'anástasis' se trata da assunção universal só dos ainda vivos pneumáticos, então os cristãos já mortos 'apóolonto!' (v.18), isto é, estão perdidos, inclusive as tes-temunhas no v.6c. Eles estariam entregues ao poder da morte; seriam excluídos da ação salvífica e o 'dormir em Cristo’ seria uma grande ilusão.
Em forma retórica Paulo pergunta se 'em Cristo' só estão os ainda vivos (v.19). Com isso o ataque à tese entusiasta chega ao clímax. Seguir essa tese significaria assumir desesperança absoluta. A alegria macabra e uma atitude só imanente são mais consequentes (cf. v.32)l
O v. 20 abre praticamente uma segunda reflexão. Esse versículo pode ser considerado também como ponto final do anterior. Os coríntios concordam com Paulo que 'Cristo’ ressuscitou (v. 20a). Mas eles, como vimos, não entendiam esse Cristo como o Jesus ressuscitado dos mortos. Paulo ao contrário, interpreta o 'egéegertai' e esclarece a identidade e autenticidade da fé. O Cristo crucificado é 'aparchée toõn kekoimeeménoon/primícias dos que adormeceram'. Essa expressão escatológica (cf. Rm 8.23; 2 Co 1.22) diz claramente: Jesus é o primeiro na lista dos mortos e tem que ser ligado ao tempo de Deus. Essa frase implica a consequência lógica: Quem crê na ressurreição do Cristo crucificado tem que aceitar a ressurreição dos mortos e entrar na fila dos irmãos (cf. Rm 8.29). Sob a influência desse texto, Paulo coloca em dúvida a inalterabilidade e eternidade da morte. Quem segue isso torna-se um rebelde no reino da morte e dos poderosos deste mundo(H. J. Iwand).
III – Na Páscoa nós descobrimos o mistério da cruz. A Páscoa dirige a nossa atenção para o crucificado, mas nos desafia a progredir com o mesmo. A Páscoa não nos leva para fora do mundo, mas implanta-nos, isto sim, bem dentro no mundo. Nós não somos libertados da nossa imanência, mas podemos, isto sim, na esperança da própria ressurreição assumir os nossos compromissos aqui na terra. Pois a Páscoa diz que Deus voltou a falar da morte de Jesus (cf. E. Juengel, Von Zeit zu Zeit, p.66) .
O que significa a expressão 'voltar a falar de ' ?
Um evento, um acontecimento vai ser tratado de novo. Não por alegria em mera repetição. Conhecemos o fato dos tribunais. Um caso é discutido de novo quando surgem novos fatores até agora não percebidos ou não conhecidos. Assim na Páscoa Deus volta a falar da morte de Jesus. O próprio Deus faz valer alguma coisa ainda não percebida. Deus, a vida eterna, não se afastou diante do nada absoluto, diante da cruz de Jesus. Deus enfrentou a morte. Nesse encontro entre a vida eterna e a morte humana aconteceu uma guerra entre vida e morte. Hinário, 62,4 – Houve uma guerra estranha: já dominou a morte. Mas não valeu-lhe a sanha: a vida foi mais forte. Quando em Gólgota expirou, Jesus a morte aniquilou. O inferno jaz vencido. Aleluia! (M. Lutero).
A cruz de Cristo revela o extremo abandono do homem por Deus e o extremo desejo do homem de ser sem Deus. Deus enfrenta essa situação. Ele se identifica com o Jesus morto e abandonado, com a mensagem dele e com a antecipação do Reino dos Céus. Essa identificação de Deus com o Jesus morto nós chamamos ressurreição. Ali onde todos os relacionamentos terminam, Deus entrou para criar novas relações a partir do não-relacionamento na morte. Com outras palavras: pela identificação com o Jesus morto, Deus definiu-se de uma vez por todas como nosso Deus (cf. E. Juengel, Gott als Geheimnis der Welt, p.497ss). O ser altíssimo humilha-se aos seres na miséria e não-relacionamento para transformar o estado deles. Quer dizer, Deus definiu-se como 'amor'. Amando, Ele vem em socorro do morto, do negativo, do perdido. Dessa maneira Deus voltou a falar de cada vida humana. Amando, Ele participa da miséria,da nulidade que resulta da autodestruição e culpa para levar vida e morte a um novo nível e uma nova forma de relacionamento.
Quando Deus voltou a falar da morte de Jesus, ele voltou a falar da vida de todos os homens. Os acontecimentos entre Deus e Jesus não significam uma história individual. Um novo relacionamento de vida e morte iniciou-se baseado na identificação de Deus com o Jesus morto. É uma oferta de Deus ao mundo, cujo ser está determinado irreversivelmente pela morte e ressurreição de Jesus. Como testemunho e sinal dessa oferta existe a comunidade cristã.
A comunidade cristã representa esse chamado divino à liberdade. Ela é e deve tornar-se isso sempre de novo: um lugar de liberdade. Esse lugar pode marcar, dentro de um mundo dominado pela morte, uma pista não-reprimível da ressurreição de Cristo, dos mortos. Essa pista não liberta da vida terrena. Pelo contrário, ela engaja muito profundamente o cristão com a vida na terra. Conduz de volta para um mundo que manda morte ao invés de a contestar.
Quem segue essa pista não vai conspirar com a morte. Ele irá preocupar-se para que esse inimigo não tenha direito nem encontre lugar no mundo. Esse é o compromisso através do qual os cristãos testemunharão a sua liberdade no mundo.
IV – Bibliografia
– AHRENS, H./ RICHARDT, F./ SCHULTE, J. Kreativität und Predigtarbeit. München, 1975.
– GERSTENBERGER, E. Auferstehung. In: Jornal Evangéltco. N° 7-1977 (suplemento alemão).
– ARAÚJO, J. D. de. Imagens de Jesus Cristo na cultura do povo brasileiro. In: Quem é Jesus Cristo no Brasil? ASTE. 1974, p.39ss.
– JUENGEL, E. Von Zeit zu Zeit. München, 1976.
– CONZELMANN, H. Der erste Brief an die Korinther. Göttingen, 1969.
– WEBER. H.R. Kreuz und Kultur. Lausanne/Genf, 1975.
– GUETTGEMANNS. Der leidende Apostel und sein Herr. Studien zur paulinischen Christologie, FRLANT 90. Göttingen 1966.
– HEN NECKE, E/SCHNEEMELCHER, W. Neutestamentliche Apokryphen. Tübingen, 1968, 4a edição.
– JUENGEL, E. Gott als Geheimnis der Welt. Tübingen, 1977.
– MESTERS. C. Deus – onde estas? Belo Horizonte, 1976, 5a edição.