Prédica: 1 João 3.18-24
Autor: Manfredo Siegle
Data Litúrgica: 22º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 22/10/1978
Proclamar Libertação – Volume: III
l – Preliminares
A – Forma literária – Contexto
Não nos será possível considerar l João como uma carta. Faltam-lhe características de carta, por exemplo um início e um final típico de carta. Mesmo assim, o autor pressupõe leitores, dos quais deve ter tido conhecimento (2.l,7s,l2ss.l8,26; 3.18,21). Do ponto de vista literário, trata-se mais de uma homilia ou de um tratado, a exemplo da carta aos Hebreus.
O assunto principal enfocado nas 3 epístolas de João gira em torno do tema: Amor. Em l João este tema merece atenção especial e seu conteúdo é objeto de pregação contínua.
Especificamente o texto em apreço, l João 3.18-24, vem a ser um recorte de um complexo maior, cujo início vai de 2.28 e se estende ao cap. 3.24, trecho este que deixa transparecer a linha de pensamento iniciada em 2.3-11. Fé e amor são sinais face à nossa confiança diante de Deus. O v.18, o primeiro da perícope a ser analisada, serve como ponte entre os vv. l3-l7 e 19-24. O tema amor aos irmãos, analisado nos vv.13-17, enfatizado no v.18, é levado adiante, sendo fundamentado pela fé : v . 23.
A perícope é de cunho dogmático e contém ensinamentos para o crente.
B – A situação dos ouvintes
O autor vê seus leitores ameaçados por uma falsa doutrina, que lhes é vendida como se fosse cristã (heresia cristã).É de seu intento incentivar a comunidade a permanecer na verdadeira fé cristã (2.22;3.23) e a vivenciá-la no seu dia a dia (2.3ss). A vivência da fé deve levar ao amor entre irmãos.
É interessante observar que o autor não proclama um amor ao próximo em geral, mas faz como bandeira da sua pregação o amor àqueles que permaneceram fiéis à comunidade. Os leitores são admoestados, não só a continuarem na comunidade, mas também a praticarem nela o amor fraternal (3.17s). Duas são, pois, as linhas seguidas pelo autor :
1) Admoesta os leitores para não darem ouvidos aos falsos pregadores;
2) Leva a comunidade a ver que esta deve viver concretamente a sua fé, segundo os, mandamentos de Deus.
Os falsos doutrinadores são desmascarados como sendo pessoas que negam a encarnação de Cristo (2.22;4.2s).A historicidade e a messianidade de Cristo são postas em dúvida (2.28). Para eles a cruz não tem valor (1.7; 2.1s; 4.10). Arrogam-se o direito de serem possuidores do Espírito (4.1) e, por isso, livres de pecado (1.8). São tidos como falsos profetas (4.1).
Entre eles e os leitores houve uma separação (2.19). É a intenção de l João assegurar a historicidade de Cristo, evitando dessarte que a mensagem da salvação em Cristo seja degradada a uma ideologia. A partir da sua posição cristológica antagônica – o autor chega a falar de anti-cristãos – estes são considerados provenientes não de Deus, mas sim deste mundo; bem por isto não devem ser ouvidos.
C – O autor e o seu lugar teológico
O linguajar e o estilo literário do tratado situam-se próximo ao evangelista João. O autor pressupõe conceitos teológicos joaninos. Por esta razão poderíamos afirmar que ele pertence ao grupo daqueles que trouxeram para dentro da tradição da Igreja o pensamento teológico de João. O escrito é anônimo e pós-joanino, escrito no fim do primeiro século. No Evangelho conforme João e colocada a alternativa: Fé – Incredulidade; em l João: Fé – Crendices,
II – Considerações exegéticas
O v.18 acentua a seriedade do mandamento do amor; as partículas ME e ALLA enfatizam esta seriedade. O verdadeiro amor não consiste em palavras bonitas (papo!). Somente o amor concreto pode ser considerado como amor autêntico. O autor não apresenta uma chave ou uma relação de situações em que se deva amar. Em cada situação o amor tem uma concreção específica. Os vv.19 e 20, os quais literariamente não estão tão claros, cujas alterações propostas, porém, não mudam o sentido do texto, são versículos vinculados um ao outro. Seremos conhecidos como pessoas provenientes da verdade se cumprirmos as ordens de amar de fato e de verdade. Em especial o v.20 revela que as medidas usadas por Deus, em relação ao homem, são diferentes das medidas humanas. Á certeza de que Deus pode tomar posse da vida do cristão, faz com que a consciência seja tranquilizada. A magnitude de Deus consiste no fato de ele saber que somos pessoas que amam (v.14), e, por isto, da verdade (v.19). Deus enxerga, a despeito do pecado, a renovação havida no homem. Por esta razão, toda autocondenação não faz sentido e pode ser superada diante da magnitude divina. O v.21 fala da confiança(PARRÊSIA) diante de Deus. Esta confiança perante Deus é colocada como possibilidade presente àqueles cujo coração está livre de toda autocondenação. A liberdade de pedir em oração (v.22) seria igualmente expressão desta confiança diante de Deus. O cumprimento da vontade divina (v.22) não é condição para esta confiança, mas sim consequência da mesma. O v.23 faz uma descrição do mandamento de Deus:
1) a fé no nome (=pessoa) de seu Filho, Jesus Cristo;
2) o amor aos irmãos.
A fé abre caminho ao amor. O amor cristão não é fruto de um humanismo ou sentimentalismo, mas está fundamentado na fé em Cristo. O último versículo da perícope, o v.24, promete ao crente a sua permanência em Deus e Deus nele. O critério para esta permanência de Deus no crente é que este tenha o Espírito. O Espírito não como propriedade constante, e sim como um presente, à semelhança do amor, que não é propriedade, mas presente. A presença do Espírito leva o discípulo de Cristo ao amor. Este fato, no entanto, não representa que nele (no discípulo) se concentrasse um poder mágico, mas deve ser visto como possibilidade para uma nova interpretação da existência humana. Presenteado pelo Espírito, o crente se diferencia daqueles que são de fora da comunidade. A comunidade cristã vive desta certeza de quê já lhe foi dado o presente do Espírito. E os sinais da presença do Espírito levam:
a) à confissão na revelação de Deus em Cristo;
b) ao amor fraternal.
III – Escopo
Amor entre irmãos (l João pensa naqueles que pertencem à Comunidade) é expressão e concretização da fé em Deus, revelado na pessoa de Jesus Cristo (processo histórico). Amor cristão não é sentimentalismo contagiante mas barato, nem fruto de ideologia humanista. Amor é fé vivida. O amor fraternal, como consequência da presença do Espírito, não representa uma concentração de poderes mágicos no crente. A concreção do amor pode ser vista como possibilidade de uma nova interpretação da existência humana. Este homem renovado (a partir de Deus) vive em liberdade e confiança diante de Deus.
IV – …”e nos amenos uns aos outros”…
Se Pelé no seu jogo de despedida, em 1° de outubro do ano passado, pediu ao público reunido no Giants Stadium, de Nova Iorque, que em coro repetisse, por 3 vezes consecutivas, a palavra Amor, Amor, Amor…, então esta manifestação ainda não precisa ter nada que ver com o sentido profundo do amor cristão. Ou se é corrente que hippies e outros grupos de jovens façam a saudação Paz e Amor, então esta maneira de agir não precisa ter nenhuma conotação autenticamente cristã. Gostamos de festas, festivais e de festividades. O amor, também o Deus do amor, especialmente do Natal, tornou-se excessivamente festivo, porém vazio e estéril em seu conteúdo. É chegado o tempo de a comunidade cristã mostrar (descobrir) ao mundo o que vem a ser o verdadeiro amor cristão; e mostrar significa vivê-lo de fato e de verdade.
Há fontes diversas que levam ao amor. Citemos, como uma dessas fontes, o altruísmo (em contraposição ao egoísmo). Parte a filosofia altruísta do fato de que o homem, vivendo em grupo, família ou povo, deve respeito, auxílio e consideração a todo homem, com o qual vive, a fim de que ele mesmo possa desenvolver de maneira correta a sua vida. Segundo Comte (da filosofia altruísta), o homem não é só um ser social dentro de um único povo, muito antes ele o e em meio a humanidade toda.Todo homem é meu próximo que merece a minha consideração e o meu amor. Neste particular, e possível ver uma linha idêntica à mensagem cristã do amor que vale para todos. Ama a todos como a tua própria vida!
Se conforme a filosofia altruísta, devemos amar o irmão por uma questão de simpatia ou solidariedade, o discípulo de Cristo ama seu irmão em obediência ao Evangelho. A medida em que, como discípulos do Senhor, recebermos (de presente!) o amor de Deus, somos transformados em instrumentos deste amor. Não produzimos o amor, este nos é presenteado!
O amor do Pai, com o qual ele nos perdoa, dá-nos a liberdade de amar a todos que nos cercam. O cristão não ama porque o outro merece uma chance para ser amado, e sim porque Cristo nos amou. O amor é o aproveitamento de todas as possibilidades de diálogo e de encontro entre o eu, o tu e o nós ,é a consciência sensibilizada em aproveitar e agir nas situações concretas (B. Haering: O que Cristo quer de nós, pp.101 e 102).
Para a comunidade cristã, fonte do amor constituem a palavra de Cristo e o amor que Deus nos revelou.
Tanto no Antigo Testamento como no Novo Testamento, o amor ao irmão deve acontecer, em princípio, com os de casa, isto é, com os da comunidade ( 1 João). Não poderemos, porém ignorar que o discípulo de Cristo é admoestado, sempre de novo, à mansidão, à paciência e á amizade em relação a todos os homens. A disposição para amar a todos é motivo de preocupação constante dos autores neotestamentários ( 1 Ts 3.12). Cristo mesmo convida a viver o amor, também em relação aos inimigos.
V – Quem é o meu próximo, a quem devo amar?
Ama a todos como a tua própria vida! Um imperativo que deixa transparecer ser o amor uma grandeza que não conhece limites. Qualquer pessoa com a qual convivemos pode tornar-se o próximo a quem devemos o amor. O próximo nunca será alguém indefinido, mas é sempre pessoa concreta. Jamais encontraremos o próximo na esfera das discussões teóricas, mas sempre na realidade e concreticidade de sua vida. Filhinhos, não amemos de palavra, nem de língua, mas de fato e de verdade. É evidente que não podemos amar, com a mesma intensidade, a todos, na mesma situação e ao mesmo tempo. Faz-se necessário que dentro de cada nova realidade saibamos discernir qual é a vontade de Deus. Haverá tarefas (e pessoas) que exigirão da nossa parte um maior ou menor investimento de tempo, de paciência, de dinheiro, de dons… Não poderemos, no entanto, determinar definitivamente a área das nossas incumbências para com o próximo. A fé em Cristo abrirá novos caminhos ao amor. O discípulo do Senhor sabe ser criativo, quando o amor ao próximo para ele se tornar um desafio. E ninguém está tão distante de nós que não possa experimentar o nosso amor. Por isto o amor deve ser corajoso e forte (B. Haering, p. 102). Importa que o parceiro experimente o amor aqui e agora (hic et nunc).
VI – O caminho para a Prédica
O texto, que serve de base para o 22º. Domingo após Trindade,oferece diversas opções ao pregador. Procurei deter-me, nas reflexões acima delineadas, em especial no tema Amor; um assunto muito explorado. Diante da avalanche de opiniões e frases românticas, através das quais se procura explorar o tema Amor, importa que a comunidade e, sobretudo, o pregador saibam diferenciar entre amor, fruto de simpatia e humanismo altruísta, por um lado, e amor genuinamente cristão, fruto de obediência ao Evangelho e do amor com o qual Cristo nos amou. Na exposição exegética ouvimos que em especial l João, quando admoesta os seus leitores ao amor, ele o faz pensando, em primeiro lugar, naqueles que permaneceram fiéis à comunidade.
Diante desta situação e em contraposição à mesma, deveremos saber reconhecer que a nossa tarefa hoje é bem outra, ou seja, não separar e afastar os que não se amoldam ã nossa forma de pensar, de agir e de ser. É missão da comunidade cristã (e do cristão individualmente] não separar, mas procurar com todos, sem distinção do nível social e intelectual, da cor religiosa, política ou étnica, uma jornada em comum, o caminho da justiça, da verdade, o caminho do amor. Tarefa e desafio para o discípulo do Senhor será sempre a constante procura por novas formas de convivência. Erigir muros entre pessoas ou grupos que defendem posições antagônicas ou que vivem em situações diversas é desconhecer o presente do amor. Cristo não criou barreiras, mas construiu pontes entre parceiros.
É evidente e responsável que toda forma de convivência não poderá ser feita às custas da nossa identidade cristã. As nossas comunidades vivem dentro de um ambiente sincretista e em meio a filosofias de vida importadas, em especial do oriente (Igreja Messiânica, Seicho-No-Ie). Todas elas exploram o Deus do amor e pregam o amor ao próximo. Diante desta realidade só cabe afirmar que não somos exclusivistas (solistas);somos, como comunidade cristã, no entanto, testemunhas do Senhor exclusivo sobre o mundo e a nossa vida, em particular. O amor anunciado e vivido pelo discípulo deste Senhor exclusivo não se confunde com princípios altruístas, mas é testemunho claro do amor com o qual Cristo nos amou. Verdade é que há fora da comunidade cristã pessoas mais misericordiosas do que nós.
O amor de Cristo não apresenta nada de festivo e não cheira a triunfalismo. Toda a força do seu amor para com os homens veio à luz do dia através da morte na cruz. É de se perguntar até que ponto nós somos fiéis a este Senhor! Estamos propensos, e com muita facilidade, a assumir atitudes festivas e triunfalistas. Sentimos necessidade de impor-nos ou, ao menos, de nivelar-nos com outros grupos. A aparência das fachadas continua sendo objeto de preocupação nossa. É natural, quem estiver atrás de triunfos vai desgastar-se e vai cansar, e não terá mais as forças suficientes para viver o amor de fato e de verdade.
O texto deste domingo nos encoraja para uma abertura em relação ao mundo. Abertura ao mundo não representa afastamento de Deus, evidencia muito antes permanência em Deus e proximidade a Deus. Permanecemos em Deus se tivermos abertura para o mundo e para o homem que nele vive.
A abertura do discípulo de Cristo para com os homens pode concretizar-se em diversos níveis e campos:
1) No campo pessoal e individual: o Amor vivido no matrimônio e na família. O investimento de tempo em favor da família está deficiente. Sem dúvida, uma realidade presente também em nossas comunidades.
2) Cabe-nos reconhecer a responsabilidade dentro de um país, se observarmos, por um lado, a destruição de alimentos (para manter preços) e, por outro lado, roncarem, ao nosso redor, as barrigas vazias. Juntamente com outros grupos (desafio ecumênico), cujos fundamentos e metas são os mesmos, somos desafiados a uma ação concreta.
3) Nesta abertura para com o próximo manifesta-se toda a nossa confiança diante de Deus. Esta confiança nos liberta do medo (pela própria sobrevivência, pelo amanhã) para podermos estar aí, totalmente à disposição do outro.
Estes três tópicos poderiam ser indicados como roteiro para a prédica.
VII – Bibliografia
– BULTMANN, R. Theologie des NT. 4a. ed., Tübingen, 1961.
– BULTMANN, R. Die Johannesbriefe. Göttingen, 1961.
– MARXSEN, W. Einleitung in das NT. Gütersloh, 1963,
– ROSENBERGER, G. Meditação sobre l Jo 3,18-24. In: Deutsches Pfarrerblatt . Caderno 12. Stuttgart, 1972.
– S0E, N. H. Christliche Ethik. 3a. ed., München, 1965.
– STECK, K. G. Meditação sobre l Jo 3,18-24. In: Göttinger Predigtmeditationen. Caderno 8. Göttingen, 1972.
– HAERING, B. O que Cristo quer de nós. Edições Paulinas, São Paulo, 1968 .