Prédica: 1 Pedro 5.1-5
Autor: Joachim Fischer
Data Litúrgica: Domingo Misericordias Domini
Data da Pregação:02/04/1978
Proclamar Libertação – Vol. III
LIDERANÇA
I – A situação
A época em que l Pe foi redigida (100 d.C., aproximadamente) apresenta aspectos semelhantes à nossa época. A economia do país (indústria e comércio) desenvolve-se bastante, inclusive os respectivos lucros. A vida concentra-se sempre mais nas cidades (urbanização), onde se decidem os destinos de milhões de pessoas. A sociedade tradicional e fechada transforma-se numa sociedade de mais aberta e pluralista. Os regionalismos começam a ser superados. A religiosidade manifesta-se em muitas formas; coexistem e concorrem os mais diversos grupos (igrejas e seitas). As autoridades tentam controlar e determinar os rumos da vida nacional através de uma doutrina (ideologia) oficial, o culto ao imperador. Diante das transformações as pessoas sentem-se inseguras ou até perdidas. A maioria parece conformar-se com a situação. De vez em quando uns poucos levantam-se contra sua marginalização. Outros aproveitam ao máximo as oportunidades que se lhes oferecem, como sexo, álcool, drogas. Outros ainda procuram achar, com consciência crítica, o caminho certo para um futuro melhor.
Os cristãos participam deste processo. Do ambiente não-cristão em que vivem, aceitam formas de organização e administração para organizarem luas comunidades; colocam-nas, porém, a serviço do Evangelho da liberdade em Cristo. Recusam-se a participar do culto ao imperador; não querem aceitar a ordem vigente como critério último de sua fé, vida e pensamento. Confessam Cristo como seu Senhor único; são liberais, portanto. Por isso crescem as tensões entre eles e o Estado; as vezes levam a perseguições por parte das autoridades .
Nessa situação o autor de l Pe (provavelmente não é o apostolo Pedro) estabelece, em forma de admoestações, uma espécie de Regimento Inter¬no para as comunidades, contendo diretrizes para a vida dos cristãos. Pois esses transmitem o Evangelho não apenas com palavras e sim, também com o testemunho de sua vida e de seu comporta-mento. Em tudo deixam transparecer algo da nova realidade que com Cristo irrompe neste mundo.
II – O tema
Em 5.1-5 o autor fala do trabalho e/ou da atitude dos presbíteros (1-4), dos jovens (5a) e de todos os cristãos (5b). Em especial ocupa-se com seu relacionamento mútuo, o trato de uns com os outros. A palavra grega para presbíteros também pode significar os mais velhos. Mas tudo indica que os vv.1-4 se dirigem aos presbíteros mesmo, isto é, is pessoas que ocupam um determinado ministério (cargo) na comunidade. São os pastores das comunidades nas regiões mencionadas em 1,1. Exercem funções muito semelhantes às dos nossos pastores: pastoreiam as comunidades (v.2).
Na prédica, pois, poderíamos refletir e falar sobre o(s) pastor(es) e o pastorado. Ou poderíamos ampliar o horizonte e incluir todos os que executam um trabalho especial (os funcionários da comunidade, por assim dizer) ao lado (ou sob o comando?) do pastor: presbíteros, catequistas, professores e professoras da Escola Dominical, dirigentes da Juventude Evangélica, da OASE e de outros grupos, organistas, cantores, etc. Mas também podemos aproveitar a oportunidade que o texto oferece, para esclarecer o termo liderança, muito usado, mas pouco analisado em nosso meio. Ideal seria uma reflexão conjunta de toda a comunidade sobre o assunto. Onde não houver condições para isso, recomendasse uma prédica sobre o tema liderança.
A reflexão ou a prédica deveriam ser um estímulo, um convite a participar da liderança na comunidade religiosa (e também na comunidade política?). Por isso é bom tomar cuidado para não falar demais dos riscos e aspectos negativos sugeridos pelas palavras não por constrangimento… nem por sórdida ganância… nem como dominadores. Podemos apresentar a liderança cristã como modelo, em contraposição a lideranças realmente distorcidas. A mensagem evangélica requer que identifiquemos e denunciemos lideranças falsas. Mas isso não quer dizer que devemos difamar e rejeitar indiscriminadamente qualquer liderança fora do âmbito da nossa comunidade.
III – O que significa liderança para nós?
1. Os líderes têm a tarefa de pastorear o rebanho de Deus que lhes foi confiado (v.2) . Seu serviço é tão importante que podem ser considerados como os apóstolos da comunidade (cf. v.l). Essa precisa do cuidado pastoral em face da situação em que se encontra. Está aflita e exausta como ovelhas que não têm pastor (Mt 9.36), sem orientação, amedrontada1 e explorada. Acha-se ameaçada e ao mesmo tempo desafiada por fora e por dentro, ou por lobos vorazes ou por homens falando cousas pervertidas (At 20,29s): ateísmo (que ate pode tomar conta da própria comunidade); situações e estruturas de injustiça e opressão; miséria, fome e doença (75% da população se situa na faixa da marginalidade relativa); ideologias que prometem soluções para os mais diversos problemas; egoísmos; seitas. A comunidade é considerada como um elemento estranho à sociedade, porque não aceita sem mais nem menos os valores da mesma (cf. cap. 2.11s; 4.4). Em vista dessa situação os líderes reúnem a comunidade, mantêm-na unida, orientam-na, protegem-na, cuidam dela (cf. Hb 13.17), tudo isso conforme suas possibilidades e capacidades e cientes de sua função de ajudantes do Supremo Pastor, Cristo.
2. Os líderes são irmãos dos outros membros, solidários com eles e seus modelos. Para explicar a relação entre Deus e seu povo (Israel ou os cristãos), a Bíblia usa a imagem do pastor e do rebanho(Is 40.11; Sl 23; Jo 10,1-8). A imagem provém de um ambiente rural com estruturas patriarcais e serve para comunidades que ainda conhecem essa realidade. Não teria muito sentido insistir nessa imagem também no ambiente da cidade. Mas seu conteúdo essencial é válido também fora do ambiente rural: a fé em Deus protege e fortalece as pessoas e lhes da apoio justamente numa vida movimentada e difícil. Cabe aos líderes acompanhar as pessoas em sua busca por proteção, fortalecimento e apoio espiritual, psicológico e material. São modelos: evidenciam através de toda a sua vida (oração, palavras, atitudes, ações, sofrimentos) como Deus em Cristo lhes é importante e como a fé os orienta em tudo (v. a caracterização dos líderes em Tt 1 .5-9) ; juntos com a comunidade esforçam-se para criar modelos de convivência humana, baseada em solidariedade mútua, justiça e liberdade, ou seja, no amor.
Ser modelo significa também nadar contra a correnteza, ser crítico em relação a uma mentalidade não condizente com o Evangelho. No mundo há muita hostilidade entre as pessoas, agressões verbais e físicas, concorrência, inveja, aspirações por possuir mais (em vez de melhorar a qualidade da vida) e atitudes típicas de uma sociedade de consumo. Não raras vezes esses fenômenos são produto das circunstâncias em que as pessoas vivem (educação e instrução deficientes, desemprego ou subemprego, marginalização). Cabe ao líder (e à comunidade toda) denunciar esses males e suas causas, combatê-los, anunciar o Rei no de Deus, futuro e presente ao mesmo tempo, em meio a um mundo, cujos sofrimentos deixam transparecer os sofrimentos de Cristo. Por sua convivência exemplar, embora imperfeita e ainda longe do ideal, a comunidade e seus líderes igualam-se ao autor de l Pe: são testemunhas dos sofrimen-tos de Cristo e co-participantes da glória que ha de ser revelada. Assim toda a comunidade vive o discipulado de Cristo. Liderança realiza-se dentro desse contexto comunitário como co-participação no contínuo processo de instrução, educação e maturação (v. o documento sobre o Discipulado Permanente).
3. Os líderes são espontâneos (v.2). Se a liderança for considerada somente como uma carga ou uma obrigação a mais numa vida já bastante atarefada, mal conseguirá manter o status quo da comunidade; não abrirá perspectivas para um futuro mais rico de vida. Ouvem-se vozes afirmando que na IECLB não há muita espontaneidade, quando se trata de assumir compromissos na comunidade. Será verdade? Nosso tempo tem a tendência de olhar os aspectos negativos da vida com lentes de aumento. A imprensa, por exemplo, registra cada crime; mas as inúmeras coisas normais que acontecem, não são noticiadas. Não devemos ver nossa vida comunitária sob essa perspectiva. Por que procurar sinais da ausência do Espírito Santo em voz de sinais de sua presença? Dentro e fora da comunidade há mais espontaneidade, mais disposição de assumir compromissos do que se pensa. A comunidade e seus líderes encorajam devidamente as pessoas dispostas a engajarem-se na liderança?
4. Os líderes agem de boa vontade (v.2), com dedicação, zelo e engajamento existencial na causa de Cristo. A liderança pressupõe o espírito de sacrifício como atitude pessoal e subjetiva. Muitas vezes não é trabalho fácil. O líder é co-responsável pelo destino da comunidade. Tem que deixar de lado suas próprias aspirações para orientar-se nas necessidades dos outros. Tem que quebrar o ritmo da rotina, usando sua fantasia para procurar novos caminhos e soluções. Abrindo os olhos podemos ver exemplos concretos de espírito de sacrifício. Escrevo esta meditação na semana em que o sargento Hollenbach, de Três de Maio, literalmente sacrificou sua vida (c f. Jo 10.11) para salvar um menino que caiu no viveiro de animais ferozes no Jardim Zoológico de Brasília. Já descobrimos as pessoas de boa vontade em nossa comunidade?
5. Os líderes agem como Deus quer (v.2). Sabemos o que nós queremos. Gostamos de ver realizados nossos projetos. Assim sentimo-nos rea1izados. Certamente também Deus quer que nos sintamos realizados: recebereis a imarcescível coroa da glória (v.4). Como? Cumprindo sua vontade. Mas qual é a vontade de Deus para nós pessoalmente e para nossa comunidade? Às vezes sua vontade fica bem evidente; todos concordam: Deus quer agora isso ou aquilo. Mas às vezes confundimos nossa vontade com a vontade de Deus, não contando mais com a possibilidade de Deus querer outra coisa do que nós. Deus sempre quer salvação. Mas sempre toma em consideração a situação das pessoas que quer salvar. Por isso salvação é: consolo para os tristes, fortalecimento para os fracos, libertação para os marginalizados, graça para os humildes – e também resistência aos soberbos, juízo para os injustos, rejeição para os explora dores (v.5b). Em geral Deus quer renovação, reavivamento, o inesperado, pois é o Deus que ressuscitou Cristo dos mortos. Cabe aos líderes e, juntamente com eles, a comunidade inteira descobrir as possibilidades que Deus oferece. Por isso precisam, ao lado da boa vontade, também de conhecimento e inteligência da fé (cf. Jr 3.15).
6. Os líderes cuidam dos que lhes foram confiados (v.3). Sentir-se responsável pela comunidade não significa querer fazer tudo. Na prática as comunidades muitas vezes esperam que o pastor seja um faz-tudo, porque é pago por isso. Assim o pastor facilmente constitui o centro da vida comunitária. Mas o Novo Testamento compara a comunidade com um corpo (l Co 12.12ss), constituído de muitos membros e órgãos diferentes, cada um com sua função específica. Como há vários setores de trabalho na comunidade e na Igreja, precisa-se de vários (muitos) líderes. Cabe a cada um cuidar do seu respectivo setor, não interferindo no trabalho dos outros, embora não possa perder de vista o todo da comunidade. Caso contrário seu trabalho torna-se contraproducente, mais destruidor do que edificante. Na vida espiritual não há nada mais estéril do que brigas de competência, concorrência e influência entre os líderes. Daí a necessidade da coordenação, cujo fundamento é o respeito mútuo entre todos.
7. Tentações e distorções da liderança: Há uma série de tentações inerentes a qualquer liderança. Nosso texto menciona sobretudo duas.
a) O líder pode tornar-se dominador e manipulador das pessoas. Tal possibilidade até pode ser o motivo de querer ser líder. A aspiração pelo poder tem raízes profundas na natureza humana. É psicologicamente satisfatório poder influenciar outros e mandar neles. Mas a dominação das pessoas destrói a comunhão, porque as transforma em objetos. Tal distorção existe também na Igreja (pastor como dono da comunidade, usurpação de poderes, decisões não 'discutidas , falta de comunicação, legalismo). Mas nem o apóstolo Paulo quis ter domínio sobre a fé; quis ser cooperador da alegria dos cristãos (2 Co 1.24). Como o líder hoje poderia querer ser dominador e funcionário em vez de modelo? Apesar da necessidade e legitimidade de uma liderança firme, não há lugar, na comunidade, para líderes autoritários (cf. Mc 10.42-45) que se consideram insubstituíveis e não dão chances aos outros. Verdadeira liderança exerce-se num clima de liberdade, no qual Deus em Cristo é o dono de todos.
b)O líder pode exercer seu ministério por sórdida ganância (v. 2). O autor de l Pe pensou aparentemente na possibilidade de os presbíteros enriquecerem com o dinheiro (coletas e doações) que administraram (cf. também l Tm 3.3-8; Tt 1.7). Hoje o perigo de um desfalque por parte dos líderes (tesoureiro?) é pequeno. Parece existir ainda o costume de que o tesoureiro empresta o dinheiro da comunidade a terceiros, ficando ele com os juros e prejudicando assim a comunhão. Mas dificilmente alguém pode ficar rico com o dinheiro da Igreja. Ou o autor de l Pe quer dizer que não se deve exercer a liderança como profissão remunerada, da qual se vive? Ou ele refere-se a um outro tipo de ganância, mais comum do que a financeira e capitalista: amor e aspiração pelo prestígio que a posição de líder dá a uma pessoa? É uma ganância mais sublime, mas não menos prejudicial do que a outra. Em ambos os casos trata-se de uma distorção da verdadeira liderança, uma liderança egoísta e de má vontade, cujo critério não são o homem, suas necessidades e a justiça.
IV – O que cabe aos jovens?
No v. 5a o autor de l Pe dirige-se aos jovens, geralmente mais ativos do que os velhos e mais dispostos a experimentar caminhos novos. O texto original diz: Igualmente, jovens: Sede submissos… Conforme a tradução de Almeida os jovens devem ser submissos aos que são mais velhos. No texto grego consta aqui a mesma palavra que no v. 1 foi traduzida com presbíteros. E muito provável que também no v. 5a tenha esse significado. Os jovens, pois, devem subordinar-se aos líderes da comunidade, segundo o autor. Esse mandamento enquadra-se perfeitamente na sociedade patriarcal existente na época de 1 Pe. No Brasil a sociedade ainda apresenta fortes traços de estruturas patriarcais, herdadas do passado colonial, principalmente nas zonas rurais e nas regiões menos industrializadas. Mas o modelo de desenvolvimento adotado pelo país visa agora uma sociedade aberta e democrática, de participação ativa. Nesse contexto não podemos simplesmente repetir a admoestação à obediência de 1 Pe. Seria provavelmente o caminho mais certo para encaminhar os jovens para fora da Igreja. Entendo v.5a como admoestação dirigida aqueles membros da comunidade que não são líderes propriamente ditos. A eles cabe participar das atividades comunitárias, contribuindo onde e como podem. Como os líderes não são sempre os mais velhos membros da comunidade, assim os liderados não são sempre os mais jovens. A ideia central do v.5a, pois, não á submissão ou obediência e sim, participarão responsável: na comunidade de Cristo ninguém fica desempregado.
V – Humildade – diretriz para a comunidade
O princípio da liderança facilmente poderia dividir a comunidade em duas classes: os líderes e os liderados (= os membros ativos e os passivos). Mas este não é o sentido da liderança cristã. Na comunidade todos estão relacionados uns com os outros pela humildade, pela disposição de servir ao outro em tudo e de assumir também tarefas simples. Diante do Supremo Pastor todos são iguais. Não há diferenças de dignidade. Estão sendo superadas as distinções entre os membros. Todo o rebanho é de Deus, inclusive os líderes. A humildade, isto é, aceitação, compreensão e encorajamento mútuos são o critério de toda a convivência e de todo o relacionamento na comunidade, porque na cruz de Cristo Deus mesmo coloca-se ao lado dos humildes (cf. Pv 3.34, citado no v.5b). Do espírito de humildade e altruísmo surgem a liderança bem como a co-responsabilidade fraternal de todos pelo testemunho evangélico. A partir daí realiza-se o sacerdócio universal de todos os cristãos (cf. cap. 2,4-10), ou seja, seu Discipulado Permanente. Todos são uma nova comunhão conforme o modelo que Cristo estabeleceu .
VI – A prédica
O tema ou assunto da prédica é a liderança na comunidade de Cristo. Abrange os seguintes aspectos (dos quais podem ser escolhidos os de maior importância para a respectiva situação): Os líderes cristãos 1. pastoreiam a comunidade, 2. são solidários com os membros, 3- criam modelos de convivência humana, 4- são espontâneos, 5- são de boa vontade, 6. tentam descobrir a vontade de Deus, 7- cuidam de sua tarefa específica, 8. estão expostos as tentações da dominação e da ganância, 9. dão chances a todos, 10.deixam orientar-se pelo espírito da humildade.
VII – Bibliografia
Recomenda-se consultar Gerhard Barth, Comentário à Primeira Epístola de Pedro, São Leopoldo, Sinodal, 1967; José Odelso Schneider – Matias Martinho Lenz – Almiro Petry , Realidade Brasileira, Estudo de Problemas Brasileiros, 3a. ed. , Porto Alegre, Sulina, 1976. – Para esta meditação ainda foram consultados diversos comentários (Wolfgang Schrage, Johannes Schneider, Karl Hermann Schelkle , Eduard Schweizer, Adolf Schlatter), estudos (Karl Philipps, Wolfgang Nauck) e meditações (Ekkehard Börsch, Walter Fürst, Gerhard Haas, Gottfried Voigt) .