Prédica: Colossenses 3.1-4
Autor: Ervino Schmidt
Data Litúrgica: Ascensão
Data da Pregação: 04/05/1978
Proclamar Libertação – Volume: III
I – O texto
V.l: Se, pois, ressuscitastes com Cristo, procurai, as coisas do alto, onde Cristo esta sentado à direita de Deus.
V. 2: Pensai nas coisas do alto, e não nas da terra,
V.3: pois morrestes e a vossa vida está oculta com Cristo em Deus.
V.4: Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então vós também sereis ma-nifestados com ele, em glória.
2) Algumas variantes lêem: vossa.
II – Introdução e Contexto
A carta aos Colossenses incluí uma parte doutrinária, que apresenta uma séria controvérsia com hereges (2.6-23). Há correntes na comunidade que julgam necessário venerar respeitosamente os elementos do mundo. A isto a carta contrapõe que Cristo é Senhor sobre todo o mundo. O que é estabelecido pelos hereges, não pode, portanto, exercer qualquer poder coercivo.
A esta controvérsia segue-se a parte parenética (3.1-4,6), que é introduzida pela exortação do nosso texto de buscar ''as coisas do alto. Após, segue o que isto significa em termos práticos: revestir-se do novo homem, viver uma vida de alguém que procura as coisas do alto. (Confira o catálogo de normas para a vida doméstica – 3.18-4.1 – e as demais exortações da carta!).
De qualquer forma, a nossa perícope, originalmente, não foi um texto para Ascensão. Conforme Käsemann, as colocações da carta aos Co¬lossenses têm, antes, algo a ver com o batismo. As afirmações da carta devem ser entendidas, evidentemente, tendo-se como pano de fundo os ensi¬namentos dos hereges. Quanto ao batismo, em 2.11 é confirmada a colocação de Käsemann, pois aí lemos: Nele (em Cristo) também fostes circuncidados, não por intermédio de mãos, mas no despojamento do corpo da carne, que é a circuncisão de Cristo.
Mas mesmo que o nosso texto não tenha diretamente como tema a ascensão, pode-se dizer que a existência dos cristãos como batizados está intimamente relacionada com a ascensão de Cristo e seu estar assentado à direita de Deus. Assim, justifica-se a escolha deste texto para o dia em que comemoramos a ascensão de nosso Senhor Jesus Cristo. Mas, não deveríamos partir da data, e sim do texto.
III – A doutrina que ameaça a comunidade.
Um curioso movimento gnóstico-especulativo atingiu parte da Ásia Menor, principalmente certas cidades, como Colossos, Laodicéia e outras. É desenvolvida uma doutrina em cujo centro se encontra uma interpretação da dependência do homem do cosmos. Este é imaginado como um espaço ameaçador, povoado de poderosos seres que determinam o destino do mundo e dos homens. O ser humano sente-se exposto, ameaçado e perdido. Nesta situação o mundo é entendido de maneira mágico-religiosa. Daí se explicam as especulações sobre os elementos do mundo (STOICHEIA TOU KOSMOU). Cuidado que ninguém vos venha a enredar com sua filosofia e vãs sutilezas, conforme a tradição dos homens, conforme os rudimentos do mundo, e não conforme Cristo (2.8; confira também 2.20). Estes rudimentos do mundo são imaginados como poderosos seres angélicos (2.18). Eles determinam o curso do mundo, mas também o destino da cada pessoa. Sendo assim, somente resta uma coita a fazer: não cair no desfavor destes poderes. É necessário servir-lhes com veneração (2. 18). Vimos acima que esta maneira de ver as coisas é chamada de filosofia. Evidentemente aqui não se trata de pensamento crítico abstrato e de discernimento cognitivo no sentido da filosofia grega.
Teremos que precisar ainda um pouco mais o que inclui o serviço prestado aos elementos do mundo. Queremos verificar em que consistiam determinadas ordenanças (DOGMATA) que tinham que tinham de ser cumpridas a rigor em relação aos elementos do mundo. Vejamos: Certos dias precisavam ser observados (2.16). Havia comidas e bebidas que eram proibidas (2.16,21). Nota-se um legalismo um tanto semelhante com o que é defendido pelos hereges da carta aos Gálatas. Distingue-se , contudo, de maneira significativa, porque as prescrições não são fundamentadas com a necessidade da lei mosaica para a salvação, mas sim relacionadas com os STOICHEIA TOU KOSMOU (E. Lohse) .
IV – Mensagem libertadora de Cl 3.1-4
Em oposição a toda esta doutrina dos hereges é dito aos Colossenses: Se, pois, ressuscitastes com Cristo, procurai as coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus”.
Não há motivos para cumprir determinadas ordenanças propostas por homens. É infundado o medo que os elementos do mundo impõem. K. Barth diz acertadamente: Nosso ser baseia-se no ser de Jesus Cristo, que está sentado à direita de Deus Pai. Tudo quanto possa acontecer no ambiente em que vivemos, seja triunfo, seja fracasso; tudo quanto nasce e perece, sempre haverá uma constante, algo duradouro, algo que se sobrepõe a tudo: o fato que Cristo está sentado à direita de Deus Pai. E não há mudança histórica possível, capaz de alterar este fato.
A referência ao Cristo glorificado não é um mito a mais no sistema das vãs sutilezas. Aqui, antes, é dissipada a espessa neblina que não deixa os cristãos colossenses verem com clareza o seu caminho. A plenitude de Deus está em Jesus Cristo e não no cosmos que, aliás, é algo criado (1.16)! Quaisquer que sejam os poderes, quaisquer que sejam os elementos que se manifestam, com a subida de Jesus Cristo ao céu eles todos receberam definitivamente o seu Senhor. Ele é o cabeça. Na ascensão de Cristo e com ela foi definitivamente estabelecido para o mundo o seu ‘em cima’ e, com isso, igualmente ficou decidido uma vez por todas o seu 'em baixo' (Iwand). Tudo o que não procede de Cristo e não se orienta para ele, está em baixo e é de baixo, sujeito ao juízo.
Neste contexto deve ser vista também a ressurreição. Pelo poder que Deus ressuscitou Jesus Cristo de entre os mortos, foi estabelecida a vida para cima e a morte para baixo. Assim, ele é o primogênito de toda criação (1,15)- Eis o lugar onde todas as ordenanças, nascidas de um medo cósmico, foram rompidas e superadas.
A vida, o perdão, o espírito estão por cima! O medo cósmico e tudo o que pudesse angustiar o homem, perderam o seu fundamento.
Sim, todos os poderes deste mundo perderam o seu domínio! Também o príncipe das trevas foi vencido. No alto está Cristo, não Satanás. Onde está Cristo, lá Deus se tornou homem, isto é, lá veio a nós, em nossa miséria, a misericórdia que excede todo o entendimento; lá nós, os marginalizados, somos aceitos; lá somos salvos do pecado e da morte. No alto não está o juízo. Este está lá onde se vive sem Cristo. Porquanto Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele (Jo 3.17). No alto, onde está Cristo, não está a morte. Ela está vencida, ela está em baixo. Isso nos leva a respirarmos liberdade. Estão eliminadas todas as tentativas frustrantes de auto-salvação! E é neste espírito de liberdade que os crentes levam a sua existência concreta aqui e agora. A ida de Jesus Cristo ao Pai traz consigo a criação de algo novo na terra. A despedida de Cristo não significa somente um final, mas também um começo, ainda que não um começo como continuação da sua vinda… A vida dos santos não é um prolongamento da revelação de Cristo sobre a terra. O que sucedeu em Jesus Cristo não necessita de nenhuma continuação (Barth – Bosquejo de Dogmática, 202).
Mas o que sucedeu uma vez para sempre, tem sua correspondência, seu reflexo, no que agora sucede na terra. O tempo iniciado com a ascensão alguns teólogos chamam de tempo da paciência de Deus. É um tempo entre a existência terrena de Jesus Cristo, que não pode ser repetida, e seu retorno em glória. Aí cabe aos cristãos viverem em irrestrita confiança naquele que agora está no alto, à direita de Deus, isto é, na absoluta confiança que as forças da vida estão por cima. Assim os cristãos em Colossos, bem como os cristãos de todos os tempos, sabem que tantos pretensos poderes por aí, na verdade, não são poderes, pois estão por baixo. Estão por baixo, porque não estimulam e facilitam verdadeira vida. Um dia todas estas coisas hão de tornar-se bem visíveis. Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então vós também sereis manifestados com ele, em glória.
Falamos o que são as coisas lá do alto, onde Cristo vive. Precisamos, agora, ainda refletir sobre os imperativos que aparecem. Já no primeiro versículo lemos: Procurai as coisas do alto. E no segundo versículo somos exortados com as palavras: Pensai nas coisas do alto, e não nas da terra. Como poderemos conseguir isso? Podemos afirmar de nós que temos disposição para tanto?
Não devemos, antes, admitir que todo o nosso procurar, todo o nosso buscar sempre se orientam para as coisas aqui da terra? Procuramos ídolos e deuses, mas o Deus vivo nos interessa? Tentamos descobrir caminhos próprios para diminuir o sofrimento dos irmãos que nos rodeiam, mas buscamos seriamente aquele, cuja destra é poderosa? Tentamos alcançar fontes de vida humana, mas procuramos a vida que já deixou a morte atrás de si? Sim, se dependesse de nós, certamente permaneceríamos presos as coisas que estão em baixo, que são da terra. Mas o autor da nossa epístola não diz somente: Procurai!, mas ele aponta, antes de tudo, para o que possibilita o buscar. Aqui a carta aos Colossenses se encontra em boa tradição paulina. Ao imperativo antecede o indicativo. Gostaria de lembrar como em Paulo indicativos e imperativos existem lado a lado. Gl 5.24 é um exemplo típico: Se vivemos no Espírito, andemos também no Espírito. O imperativo somente tem sentido porque o cristão sabe que Deus o arrancou do presente ÉON perverso e o colocou no reino de seu Filho amado. Pela morte de Cristo o homem foi reconciliado com Deus. O cristão realmente crucificou a carne e vive no Espírito. Com auxílio do Espírito ele pode invocar Deus como Pai. A nova criação, a libertação é uma realidade ligada à fé. Assim, perseverança na fé é a condição da liberdade. Isso traz consigo, como outro lado da moeda, a possibilidade de perder a liberdade quando a fé esmorece. São indispensáveis, portanto, as exortações. Mas, elas etão sempre subordinadas ao indicativo. Assim acontece também aqui. A exortação Procurai as coisas do alto antecede o ser ressuscitado juntamente com Cristo.
Isso significa que aqui se trata de um procurar diferente do que nós conhecemos do dia a dia. Aqui o procurar inicia com o ter encontrado (Barth). O procurar não é comparável com a busca de verdade no sentido filosófico. Não se trata de altos voos da imaginação da mente humana. É algo bem humilde! Tem início na pobreza (conforme critérios de homens) que, em verdade, é riqueza de Deus. Tem seu início na revelação do Pai. Em Cristo nos é dado conhecer o que é verdade. Não é qualquer um que nos possibilita este início, mas Deus mesmo. A verdade é que a Vida venceu. A vitória de Deus é um fato irreversível. Ela está garantida. Deus é Soberano! Seu reino permanece!
O Reino de Deus vem, em verdade, de si mesmo, sem a nossa prece, mas suplicamos nesta petição que venha também a nós (M. Lutero). Isto é, o reino está aí (está acontecendo). Mais uma vez, os imperativos devem ser entendidos no sentido de uma concretização daquilo que já é! Vede que a realidade conquistada através da vitória e da ascensão de Jesus se manifeste também vitoriosa e poderosa na vossa vida na terra! (Iwand).
A cruz e a ressurreição de Cristo estão inscritas na nossa vida. Podemos ter certeza que o viver com Cristo torna a nossa vida mais espe¬rançosa. Uma vida com Cristo não é sem sentido.
V – Considerações para a prédica
O texto encerra dádiva e admoestação. O ponto culminante é expresso com procurai as coisas do alto (TA ANO ZETEITE) e pensai as coisas do alto (TA ANO PHRONEITE). Parece-me de suma importância para a pregação de que maneira vamos falar e meditar sobre este no alto. As linhas elaboradas acima poderiam ser um auxílio. Em todo caso, não podemos deixar dúvidas que o no alto não tem outro conteúdo do que onde Cristo está sentado ã direita de Deus. O que isto significa em termos de estarem vencidos todos os poderes da terra, que nos querem escravizar, cada pregador terá que dizer a partir da sua situação concreta. O procurar as coisas do alto leva a um engajamento aqui e agora. Talvez o pensamento que, conforme nossa perícope, o procurar inicia com o ter encontrado deva, igualmente, tornar-se um momento da prédica.
A esperança pelo dia em que seremos manifestados com Cristo, em glória, poderá ser o desfecho.
VI – Bibliografia
– CONZELMANN, H. Die kleineren Briefe des Apostels Paulus. 9a. ed . , Göttingen, 1962 .
– LOHMEYER , E. Der Brief an die Kolosser. 1930.
– KASEMANN, E. Eine urchristliche Taufliturgie. In: Exegetische Versuche und Besinnungen. Vol. l. 4a. ed., Göttingen, l 965 .
– IWAND, H.J. Meditação sobre Colossenses 3.1-4. In: Herr, tue meine Lippen auf.Vol. 4. 5a. ed., Wuppertal-Barmen, 1965.
– BORNKAMM, G. Meditação sobre Colossenses 3.1-4. In: Göttinger Predigtmeditationen. Göttingen, 1953.
– BARTH, K. Bosquejo de Dogmática. Buenos Aires, 1954.
– BARTH , K. e THURNEYSEN, Ed. Prédica sobre Colossenses 3.1-4. In: Komm Schöpfer Geist. 3a. ed., München, 1926.