Prédica: Daniel 5.1-30
Autor: Nelson Kirst
Data Litúrgica: Antepenúltimo Domingo do Ano Eclesiástico
Data da Pregação: 12/11/1978
Proclamar Libertação – Volume: III
l – Como bem poucos, nosso texto necessita, para sua compreensão, de uma boa elucidação dos aspectos literários e históricos que o envolvem.
(Como introdução a teologia apocalíptica do AT em geral e ao livro de Daniel em particular, recomendo: PREUSS, H.D. Texte aus dem Danielbuch. In: Calwer Predigthilfen, Vol 6. Calwer Verlag, Stuttgart,1971.)
À primeira vista, Dn 5 nos parece um relato historiográfico sobre eventos específicos, ocorridos na corte babilônica, no ocaso daquele império. Surpreendemo-nos, porém, ao constatar num exame mais cuidadoso algumas incorreções históricas significativas que nos fazem desconfiar bastante da fidelidade do relato. Por exemplo:
a) Belsazar não foi o filho de Nabucodonosor (604-562) – cf. os vv.2.ll, l8.22 – nem chegou a atuar como rei. Ele era, na verdade, filho de Nabonido (556-539) este sim, o último rei do império neobabilônico , com o que também contradiz Dn 5 – tendo sido seu representante na cidade da Babilônia.
b) A queda da Babilônia não foi obra de Dario, o medo (v.31, mas do persa Ciro.
c) Finalmente, observe-se que o termo caldeus (vv.7 e 11), como é empregado aqui, não se refere mais ao povo babilônico, como era seu sentido original, mas a um certo grupo profissional.
Essas incorreções mostram que o autor do nosso capítulo possuía conhecimentos bastante imprecisos sobre o desenrolar dos fatos e os últimos anos da corte babilônica. Esta circunstância, além de outras incorreções encontradas no Livro de Daniel, deixa de surpreender-nos, quando entendemos o gênero literário que temos pela frente. O livro que leva o nome de Daniel é uma obra da literatura apocalíptica. Como tal, seu interesse não é o de relatar com fidelidade historiográfica os acontecimentos de certo período. O que os autores dos apocalipses querem é dar uma certa mensagem aos seus contemporâneos, as pessoas que com eles vivem uma certa situação histórica. Assim, o autor de Dn 5 não pretende fazer historiografia, mas transmitir uma mensagem aos seus contemporâneos. Os supostos acontecimentos ocorridos na corte babilônica são mera roupagem que envolve a mensagem. Para montar essa roupagem, o autor de Dn 5 aproveitou principalmente material existente na tradição popular sobre um certo sábio judeu, chamado Daniel, assim como histórias também populares, que se contavam sobre o rei Nabonido, da Babilônia.
Se quisermos, pois, atualizar Dn precisamos descobrir fundamentalmente qual foi a época do seu autor e qual a mensagem que ele quis transmitir aos seus contemporâneos.
A base de muitos indícios (que exigiriam muito espaço para serem arrolados aqui), pode-se dizer com segurança que o surgimento do Livro de Daniel se situa por volta do ano 165 a.C. (ou seja, quase 400 anos depois dos eventos referidos em Dn 5). Para entendermos essa época, voltemos um pouco ao passado. A partir de 539, a Palestina encontra-se sob domínio persa; entre 333 e 323, sob Alexandre o Grande. Depois de 323 o grande reino de Alexandre se divide em quatro partes. Uma destas é a dos selêucidas, com sua capital em Antioquia, que depois de marchas e contramarchas passam a dominar definitivamente a Palestina e Fenícia, a partir de 198.
Os selêucidas impulsionaram fortemente as tendências helenizantes (iniciadas já antes de Alexandre) na Palestina, ao que os judeus da terra reagiram de maneiras diversas. De um lado, estavam os mais progressistas, mais abertos ao helenismo e dispostos a aceitar o estilo grego de vida, mostrando-se também mais prontos a pactuar com os selêucidas. De outro lado, enrijecia-se a posição dos judeus ortodoxos e fiéis, arredios aos novos ventos e unidos de modo sempre mais decidido em torno de suas Escrituras Sagradas e do seu culto. Essa tensão se torna conflito flagrante com o início do governo do tirânico selêucida Antíoco IV Epífanes (175-164), que dela se aproveita ao assumir o poder.
Devido às crescentes exigências militares, Antíoco é forçado a extorquir sempre mais as regiões sob seu domínio. Assim, ao retornar de uma investida militar contra o Egito, em 169, Antíoco saqueia o Templo de Jerusalém, levando para Antioquia seus tesouros e utensílios sagrados. De volta de uma segunda e mal sucedida incursão contra o Egito, em 169/8, Antíoco invade e destrói parte de Jerusalém, mata seus habitantes ou vende-os como escravos, instala na cidade um forte núcleo militar, queima os escritos sagrados dos judeus, proíbe qualquer manifestação do seu culto.
Com tais medidas, Antíoco provoca a revolta dos macabeus, que teve início em 166. Os macabeus obtêm em pouco tempo êxitos surpreendentes, conseguindo, entre outros feitos, sitiar o núcleo militar estrangeiro e dar condições para uma nova sagração do Templo profanado, ao final do ano de 164.
O surgimento do livro que leva o nome de Daniel, cujo autor parece desconhecer a nova sagração do Templo, deve ter ocorrido no início do levante dos macabeus, tendo como pano de fundo a terrível situação de perseguição e opressão em que se encontravam os judeus de Jerusalém após os indescritíveis abusos dos selêucidas, cometidos especialmente contra os judeus que, por fidelidade ao seu Deus, não quiseram curvar-se ante o helenismo e pactuar com as forças de dominação.
O objetivo dessa obra apocalíptica, como o de suas demais congêneres é consolar os oprimidos, em situação de extrema dificuldade, ajudando-os assim a suportar os sofrimentos do momento. Como em toda situação de opressão, os autores não podem usar palavras diretas e abertas. Por isso a literatura apocalíptica, como no nosso caso Daniel, expressa seu consolo e fortalecimento através de figuras e eventos misteriosos, cujo sentido só é conhecido aos fiéis iniciados, ou então através de histórias como a nosssa, que parecem aludir a um acontecimento de séculos atrás. Mas o leitor perseguido e oprimido de Dn 5 sabe de que o seu autor esta falando. Sabe que no fundo a história não se refere a Belsazar mas a Antíoco IV Epífanes, e entende a mensagem.
II – A explicação do texto será feita a seguir por partes
Vv.1-4: Belsazar organiza uma festa digna de um grande rei babilônico. Sente-se a tranquilidade e segurança daquele que está por cima (cf. Am 6.3-6). Nesta festa, Belsazar não se contenta com bebedeira e sexo, mas extrapola os limites, investindo também contra o sagrado. Dando vazão a sua euforia orgíaca, ofende com seus convidados o Deus dos judeus, que estão sob seu domínio, profanando os utensílios sagrados roubados do Templo de Jerusalém. Com isso, Belsazar deixa registrada a inferioridade desse Deus dos judeus dominados. Ao mesmo tempo, ressalta com sua exaltação (v.4) a superioridade das divindades babilônicas.
Intenção do trecho 1-4 é descrever o evento a partir do qual se desenrolará o resto da história. Lembremo-nos de que o autor esta usando esta história para dar um recado aos seus conterrâneos, oprimidos por Antíoco IV Epífanes. Ele está querendo, então, colocar o seguinte: O chefe de uma nação estrangeira que domina militarmente os judeus, vê nesse domínio a prova da inferioridade do Deus dos judeus, julgando-se em condições de ofendê-lo, exaltando a superioridade dos seus próprios deuses.
Vv.5-9: A um simples aceno da eternidade (Kraus) inverte-se a atitude do poderoso. A segurança e a soberba transformam-se de súbito em desespero total e vergonhoso, vv.6 e 9- O poderoso sente que de repente tudo está em jogo. Daí a convocação do batalhão de funcionários (todos, v.8) e a magnitude da recompensa (v.7)- Com a impotência dos funcionários religiosos babilônicos (v.8) contrastará depois a atuação do judeu Daniel, seguidor do Deus ofendido. Como recado para os oprimidos por Antíoco, o trecho fala por si.
Vv.10-12: A rainha-mãe deve ser entendida como a viúva de Nabucodonosor. Importante aqui é que esta mulher conhece a atuação anterior de Daniel, relatada por este em 18-21 (cf. cap. 4). Esse Daniel, através do qual o Deus dos judeus já se tornara conhecido pelo chefe anterior da corte babilônica (v.21 e cap. 4), aparentemente tem sido ignorado por Belsazar. Já aqui se percebe: Belsazar não tem álibi; ele teria condições para saber sobre o Deus dos judeus e evitar o absurdo descrito em 1-4.
Vv.l3-l6: O texto não transmite uma atitude bajuladora de Belsazar, como pretendem muitos interpretadores. Pelo contrário: Na longa caracterização de Daniel (v.14 e início do 16), como na explicação do v.15, Belsazar não faz mais do que explicar por que está agora buscando os préstimos de Daniel. Em comparação com 6-9 as palavras de Belsazar são até bastante sóbrias e objetivas.É verdade que Belsazar apela agora para os serviços justamente de um fiel daquele Deus que acabou de ofender. No entanto, essa aparente submissão, esse aparente reconhecimento de um erro trágico, não parece afetá-lo demais. Não há mais vestígio de desespero, nem pressentimento de ca¬lamidade iminente. Belsazar não suplica nada a Daniel. Antes, propõe-lhe um negócio: se puderes …, serás vestido… (v.16). Belsazar ainda não captou a verdadeira dimensão do que está se passando. Parece até que, após o choque inicial,começa a sentir-se por cima outra vez.
V.17: Daniel rejeita a recompensa oferecida. Se Belsazar ainda não chegou a percebê-lo, o judeu está indicando aqui quem realmente está por cima. Daniel não age por recompensa do poder, mas por fidelidade ao seu Deus. No mais, que sentido teria aceitar recompensa de um ofensor de Deus, que por obra desse mesmo Deus está com suas horas contadas (v.30)?
Vv.18-24: A explicação de Daniel transcorre em dois sentidos: 18-24 e 25-28. Em 18-24 é apresentado o motivo do castigo iminente, do qual Belsazar ainda não está sabendo. O castigo (vv. 26-28 e 30) virá porque Belsazar conhecia o Deus dos judeus pela experiência vivida por seu pai (v.22) e apesar disso cometeu os abusos descritos em 1-4 (v.23). Nabucodonosor reconhecera que seu poder era um poder concedido por Deus e que, portanto, também devia prestação de contas a este Deus. Belsazar pôs de lado esse reconhecimento (v.22).
Novamente, como recado para os leitores da história, oprimidos por Antíoco IV Epífanes, o trecho fala por si.
Vv.25-28: Aqui é explicado o misterioso escrito. A duplicação do primeiro termo é provavelmente secundária (falta em Septuaginta, Teodócio,Vulgata e Josefo). As três palavras, na sua forma original apenas consonantal, são deliberadamente de compreensão ambígua. Podem ser entendi-das como substantivos, significando unidades monetárias, mencionadas em ordem decrescente. Daniel, porém, entendeu-as em sua interpretação co mo formas verbais: contado, pesado, dividido”. O sentido de juízo é evidente e fica suficientemente claro no próprio texto.
Vv.29-30: O fecho da história. A recompensa indesejada é dada a Daniel, o que não contradiz necessariamente o v.17. O v.29 não diz algo sobre Daniel, mas sobre Belsazar. E soa, realmente, como uma piada macabra (Perlitt, GPM 1971/72, p. 44 4j. Belsazar, com seu reino contado e dividido, ele próprio pesado e achado em falta, com apenas momentos de vida, ainda é o magnânimo recompensador, que nem agora parece captar de fato o que se passa, e que vai morrer nesse empedernimento.
III – Em resumo: A um povo oprimido e humilhado ao extremo por um dominador estrangeiro que mata os seus, que os vende como escravos, que destrói sua cidade, que saqueia e profana seu Templo, é contada a história de Dn 5, que fala de:
Belsazar: Ele é o dominador estrangeiro que tinha condições de conhecer o Deus dos judeus e saber o seu lugar de poderoso em relação a esse Deus. No entanto, ignorou esse conhecimento, abusou do seu poder, afrontando esse Deus e, por isso, tem que sucumbir diante dele.
Daniel: O sábio judeu fiel ao seu Deus, o qual, a partir dessa fidelidade, é capaz de colocar o dominador em seu devido lugar e dar-lhe o recado de Deus, sem temer consequências, sem se comprometer ou se deixar influenciar pelo poder.
Deus: Aquele que deu chance para que o dominador conhecesse o seu lugar e que o faz sucumbir, quando ultrapassa os seus limites.
Para o povo oprimido e humilhado, leitor de Dn 5, a história diz: O Deus dos judeus é o Deus de todos os homens. Ele tem algo a ver com a opressão exercida pelos dominadores e com a opressão sofrida pelos dominados impotentes. Ele não tolera nem uma nem outra, e há de acabar com elas.
IV – A atualização desse texto é bastante complexa. Raro é o texto em que ela estará tão condicionada pela subjetividade do pregador, como aqui. E isto, pelo seguinte: Numa atualização temos que perguntar quem seriam, na nossa atualidade, o dominador afastado de Deus, a comunidade oprimida e Daniel. A resposta dependerá forçosamente da visão do mundo, de cada um, a qual por sua vez estará condicionada por toda uma gama de experiências e informações que cada qual leva na bagagem, além da sua formação cristã.
Por isso, com a permissão dos leitores, só posso, a partir desse ponto, ser francamente subjetivo e expor como se colocaria dentro da minha visão do mundo uma atualização deste texto. Estou consciente de que muitos me abandonarão nesta altura e seguirão o seu próprio caminho.
Na nossa atualidade, o dominador afastado de Deus não é um indivíduo, como foi Nabucodonosor, Belsazar, Antíoco IV Epffanes; ou como foi um Hitler na Alemanha, um Papa Doc no Haiti, ou os Somoza na Nicarágua. Hoje, entre nós como no mundo ocidental dentro do qual estamos enquadrados (o que não exclui de um veredito semelhante o mundo oriental), o poder é exercido por todo um sistema econômico-político. Este encontra seus expoentes pessoais, individuais, do mais alto ao mais baixo escalão da estrutura, sem que qualquer um deles possa ser responsabilizado pelo todo.
Justamente na sua impossibilidade de ser responsabilizado e que reside um dos traços mais trágicos desse sistema sem Deus. Um sistema nunca tem consciência, não pode entender nem arrepender-se. Um sistema é simplesmente uma máquina desalmada que avança avassaladora. Por isso, um sistema também não pode submeter-se ao Deus Altíssimo.
O princípio máximo do sistema em que vivemos é o lucro a qualquer preço. Este fim justifica qualquer meio. Ele também estabelece a escala de valores para os que vivem neste sistema: vale quem produz e quem tem; quem não tem e não produz nada vale. Com isso estão automaticamente marginalizados amplos grupos sociais que, por força de idade ou de condições físicas e sociais, não têm condições de produzir.
Desta e de outras formas o sistema exerce despoticamente seu poder, abusando de Deus e do homem. Tais abusos se manifestam, entre nos, através de circunstâncias como as que seguem:
– Para atingir seu objetivo, o sistema mantém nosso operário em regime de semi-escravidão, com um salário que não lhe da condições de vida e amordaçando sua capacidade de expressão.
– O sistema expulsa o índio, proprietário secular de suas terras, e o vai dizimando num autêntico genocídio, lento e seguro,
– O sistema expulsa famílias de posseiros radicadas ha décadas em suas terras.
– O sistema persegue, tortura e mata os que, em nome de Deus e do homem, se batem em socorro das vítimas.
– Através dos meios de comunicação, o sistema invade a própria psique do homem, deformando-o, criando nele necessidades que não conhecia, desumanizando-o e transformando-o também numa máquina desalmada e sedenta de lucros e bens.
– O sistema tolera Deus e seu culto, mas apenas na medida em que funcionam como apaziguador e harmonizador, como óleo na engrenagem.
– Pela sua incapacidade de reconhecer que Deus tem o domínio, o sistema não hesita em estragar sua criação, posta à disposição e entregue à mordomia do homem; seca as entranhas da terra, envenena sua superfície, empesta sua atmosfera, enche o planeta de armas capazes de pô-lo a pique.
Assim como os oprimidos de Jerusalém, também aqui a impotência é completa. Não há como cair fora do sistema; só resta ficar e participar, ficar e sofrer ou ficar e ser jogado entre participar e sofrer. Mais ainda: neste sistema todos nós temos, em maior ou menor grau, em todos os escalões (!), algo de Belsazar e algo dos judeus oprimidos (vide acima parte III!). Todos nós somos, de uma forma ou de outra, executores e vítimas do sistema.
E nesta situação somos chamados a ser Daniel, a testemunhar que Belsazar não tem desculpa, que Deus não tolera esse poder desenfreado sem Deus, que não e isso o que Deus quis para o homem. Mas, testemunhar para quem, se não conseguimos identificar o responsável global? Testemunhar, então, para todos, que são simultaneamente executores e vítimas.
Testemunhar como? Em palavras, é claro, mas sobretudo através de ações, de atitudes, de um estilo de vida que se disponha a não se guiar pelos princípios do sistema, que se disponha a não fazer do lucro mas do homem e de Deus o alvo e a medida de toda nossa energia e esforço. Através de atitudes e de um estilo de vida, colocar marcos que sirvam de sinal e de norteio para quem mais percebe a pecaminosidade do sistema e quer rompê-lo.
Esse testemunho tem que ser dado em comunidade. Bem poucos carismáticos conseguem sustenta-lo sozinhos. Neste testemunho comunitário está a vocação da comunidade cristã de hoje, chamada a ser Daniel.
Essa existência de testemunho sempre levará a cruz de não poder desligar-se totalmente do sistema, pois sempre será parte dele, enquanto existir. Caberá a cada testemunha decidir onde está o seu limite, até que ponto pode independer do sistema. Mas será sempre uma questão de grau, entre o maior e o menor sacrifício.
A fonte de energia para essa existência em testemunho será sempre a certeza inabalável de que o Deus Altíssimo não tolera o poder sem Deus – assim como não tolerou um Belsazar ou um Antíoco IV Epífanes. Sobretudo depois de Jesus Cristo não pode abalar-se a nossa certeza de que Deus não deixara acabar assim um mundo pelo qual deu seu Filho.