Prédica: Deuteronômio 5.12-15
Autor: Milton Schwantes
Data da Pregação: 01/05/1978
Proclamar Libertação – Volume: III
Tema: Dia do Trabalhador
O assunto da prédica está colocado com o dia, o Dia do Trabalhador. Por isso precisamos iniciar como ouvintes. Neste dia precisamos ser ouvintes , especialmente de sindicatos, empresários e governo, já que o Dia do Trabalhador é um feriado oficial. Acho que até instantes antes do sermão o pregador está atento a estas vozes, comparando-as com suas experiências com o trabalho, com o trabalhador e com a tradição bíblica.
Confesso que a tradição bíblica qualifica para um ouvir especial: as vozes do dia precisam ser confrontadas com a tradição bíblica. E aí precisamos discernir. Da maneira de como vai ocorrer este discernimento vai depender a prédica. Se ele ocorrer à distância, será uma demonstração de nossa superioridade; neste caso talvez falaremos demais da dignidade do trabalho. Se ele participar da luta por um trabalho mais justo, será um sinal de solidariedade. Vejo que a tradição bíblica nos constrange para este último tipo de discernimento, pois a luta por justiça no trabalho está nas origens da comunidade de Jesus. Pode-se pensar na situação do escravo entre os primeiros cristãos; o escravo que se tornara irmão em Cristo passou a inquietar o mundo romano. Deve-se mencionar que na luta contra o trabalho forçado o povo de Deus iniciou sua caminhada. A saída do Egito foi vitória contra a escravidão, contra a exploração organizada e sistemática do trabalho de um povo. Acho que é por causa deste êxodo que no povo de Deus não se falou de maneira ingênua e ideal do trabalho, mas se relacionou o trabalho com cardos e abrolhos, com o suor do rosto (Gn 2,l7-l9). Com isso a tradição bíblica nos coloca na ânsia por um trabalho digno no mundo caído, em pecado. O trabalho digno e justo, porém, não ocorre à distância de nosso universo corrupto, mas se descobre na luta contra este mundo caído, contra a escravidão, contra a exploração do escravo e trabalhador. A tradição da comunidade de Jesus legou e preserva sinais de esperança por um trabalho justo e digno. Um destes sinais é de que todo trabalho é bom. Ele não só é bom, também é de valor igual.É tão bom cozinhar quanto escrever. O agricultor tem mãos tão limpas quanto o sacerdote. Um outro destes sinais é de que através do trabalho, através do cultivar e guardar (Gn 2,15), as pessoas participam da criação, fazem mundo e história. Neste mundo caído o trabalho não perdeu seu caráter criativo. Ainda outro destes sinais é o dia do descanso. Sugiro este sinal do sábado/domingo como ponto de referência para a prédica no Dia do Trabalhador. Escolho o texto de Deuteronômio 5,12-15:
Guarda o dia do sábado para o santificar, como te ordenou Javé, teu Deus.
Seis dias trabalharas e farás toda a tua obras e o sétimo dia é sábado para Javé, teu Deus.
Não farás nenhum trabalho, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu escravo, nem tua escrava, nem teu boi, nem teu jumento, nenhum dos teus animais, e nem o estrangeiro que está em tua vila, a fim de que teu escravo e tua escrava possam descansar como tu. E te lembrarás que foste escravo na terra do Egito e que Javé, teu Deus, dali te tirou com mão poderosa e com braço estendido, por isso Javé, teu Deus, te ordenou guardar o dia do sábado.
O dia do descanso e os seis dias de trabalho não devem ser separados. O mandamento abrange o trabalho e o descanso. Trabalho e descanso não só aqui estão juntos. O mesmo se observa em Ex 20, 8-11, no decálogo, e em Ex 3,21. Neste último texto (Ex 3.21), aliás, se supõe poder encontrar a formulação mais antiga do mandamento do descanso. E também aí descanso e trabalho estão rela-cionados: Seis dias trabalharás, e ao sétimo dia descansarás.
Não se pode dizer que isso valha para nossos dias. Pelo contrário, entre nós dia de trabalho e dia de descanso estão dissociados. São grande¬zas estanques. E o são por culpa do domingo, se vejo bem. Não mais é só um dia especial. É um dia absoluto. Na proporção em que a igreja assumiu este dia, transformando-o de maneira absoluta em seu dia, liberou os outros seis dias a outros deuses.
Urge redescobrirmos a integridade do terceiro mandamento: Seis dias trabalharás, e ao sétimo dia descansarás. Dia de trabalho e dia de descanso não podem ser separados. E com isso estamos diante do fator básico para a compreensão de Dt 5,12-15. Este fator básico exige a seguinte consequência: Tudo que é dito sobre o dia de descanso não é dito em função de culto e templo; tudo que é dito do dia de descanso é dito em função dos dias de trabalho. O sábado não é diferente em relação a si, é diferente em função do trabalho. Quando a seguir formos procurando compre¬ender a especialidade do dia de descanso, esta descoberta terá que ser aplicada.
Trabalho e descanso são um todo. Devem ocorrer no ritmo regular de sete dias. (Isso deve ter suas origens nas fases da lua.) Suponho que haja um significado especial e simbólico neste número sete. Neste ritmo constante se experimen¬ta algo pleno, se participa da esperança por plenitude. Acho que o ritmo dos sete dias se pode entender neste sentido. E a plenitude vale para os sete dias, não só para o sétimo. Esta compreensão ainda é reforçada pelo próprio conteúdo do mandamento: nos seis dias de trabalho farás toda a tua obra. No trabalho dos seis dias a obra a realizar se torna completa, pronta. Não é interrompida. Nos seis dias há plenitude. Por isso, em relação a Dt 5,12-15, não nos é permitido falar do dia de descanso como se fosse uma fuga das frustrações e dos fragmentos do trabalho. O que nele há de valor não existe às custas do pouco valor que teriam as obras dos dias de trabalho. Pelo contrário o trabalho coloca diante do todo de uma obra, ele também é pleno, é de valor. Estamos livres para a alegria diante da obra completa. Nesta satisfação o descanso tem uma de suas raízes.
Mas, não há dúvida, o dia do descanso é o mais importante para Dt 5,12-15. Penso que agora podemos dedicar-nos ao caráter peculiar do dia do descanso. De nossas descobertas anteriores, no entanto, sabemos que trabalho e descanso formam um todo e supomos que o que há de peculiar no domingo existe em função dos seis dias de trabalho. Vejamos, se estamos no caminho certo.
Não trabalhar, esta sem dúvida é a característica do sábado. Isto é 'guardar’ e 'santificar’ este dia, aqui em Dt 5,12-15 e na Bíblia toda. Trata-se de uma formulação negativa. Demarca o limite. Mas, com isso, ainda não orienta o que há de acontecer dentro deste limite. Por isso, bem que se gostaria de determinar um pouco melhor e positivamente como ocorre o 'guardar’ e 'santificar’. Qual, afinal, é a função do dia do descanso?
Diz-se: em dia de festa não se trabalha. Isto está presente em muitos povos e em suas religiões. Como a festa participa do mundo dos deuses, o não trabalhar expressa que os deuses têm direito sobre este dia. É o dia dos deuses. O dia de descanso bíblico certamente participa deste difundido fenômeno religioso.
Diz-se: a pessoa precisa de descanso. Precisa do descanso do sono, das horas de sol intenso, dos dias de chuva. É cura. O dia de descanso bíblico certamente participa desta profunda sabedoria da vida humana.
Diz-se: dia de descanso é greve. Não traba¬lhando no sábado se questiona, se relativiza o trabalho. No trabalho há correria, canseira, in¬sucesso. Nele se espelha a escravidão imposta pelas posses. Nele se explora a força do trabalhador. O sábado é greve contra tudo isso. O dia de descanso bíblico certamente participa, em nossos dias, de tais funções políticas.
Por certo, num estudo mais detalhado sobre o dia do descanso essas colocações deveriam ser aprofundadas. Pois, o sábado também é religioso, é humano, é político. Mas, em nosso texto de Dt 5,12-15, temos que ser mais precisos, quando perguntamos pelo caráter peculiar do descanso.
Pois, observando Dt 5,12-15, cai em vista que o dia do descanso existe porque Deus quer. Este dia e ordem de Deus. Sem sua vontade este dia não existiria. Isto é o característico deste dia. Que Javé é o especial deste dia não só é dito expressamente, isso até determina a estrutura deste texto. Ora vejamos. Três vezes inicia a falar do mandamento, três vezes desemboca na vontade de Deus! Da primeira vez, na formulação mais breve (v.12), é exigido o dia do descanso como Deus mandou. Da segunda vez (v. l3 e a primeira parte do v.14) é exigido trabalho em seis dias e descanso no sétimo. O sábado se dirige a Deus. Da terceira vez (segunda parte do v.14 e v.15) é exigida abstenção de trabalho por ordem do Deus libertador do Egito. Portanto: tanto o descanso, quanto o trabalho e o descanso, quanto o não trabalhar, são ordem de Deus.
Acho que não seríamos fiéis à intenção de Dt 5,12-15, se só disséssemos: o especial do sábado é que Deus o quer. É necessário desdobrar esse reconhecimento. Acontece que o texto nos pormenoriza qual é o ambiente desse Deus que quer o sábado. Se não observarmos este aspecto, nossa definição do que vem a ser o peculiar no sábado fica vazia e formal.
Acima observávamos três partes em nosso texto. Olhando agora para o número de palavras, vê-se que vão aumentando gradativamente. Na última parte (segunda parte do v.14 e v.15) há uma explosão de palavras. E aí deve estar o acento. O que o autor quer pormenorizar como mandamento de seu Deus deve estar aí concretizado. O descanso é para o filho e a filha, o escravo e a escrava, o jumento e todos os animais, para o es-trangeiro (i.e. o operário itinerante). Com isso, basicamente, estão enumerados os que pertencem à casa. E o que também evidencia o fato de que o 'tu’ – aqui o israelita bem situado – encabece a lista. O descanso é garantido para os da família, a fim de que o chefe não usufrua do descanso à custa do trabalho dos filhos, escravos e(l) animais no sábado. Mas, o dia do descanso não tem em vista só a casa, a família. No caso do estrangeiro se vê que o sábado tem validade social maior. Vale para a vila toda. Observa-se nisso uma passagem do sábado do âmbito familiar para o da sociedade. Assim o círculo de ação do dia do descanso aumenta. Mas ele, ao mesmo tempo, se intensifica em seu conteúdo. O primeiro passo nesta intensificação é a repetição. No final do v.14 se cita de novo o escravo e a escrava, os mais indefesos, para garantir-lhes o descanso do sétimo dia. O segundo passo é a igualdade que se estabelece entre senhores e escravos. O final do v.14 é corajoso. No sábado a escravatura está eliminada. Escravos e senhores são iguais, irmãos. O escravo descansa como seu senhor. Poderia isso valer só para o dia do descanso? Pode haver um constante retrocesso no dia de trabalho? O terceiro passo coloca a história de fé do povo a serviço do direito do escravo ao descanso e a serviço da igualdade real entre senhores e escravos no sábado. Pois, o v.15 não se deve entender como adendo ocasional que fundamenta o mandamento do sábado, como poderia parecer a partir do final do versículo. Pelo contrário, ele sedimenta o direito do escravo e o acontecimento democrático do sábado na história salvífica, no que há de mais específico na fede Israel: a saída do Egito. Esta ocorreu para o escravo, como se li claramente no início do v.15. Para o escravo, para o operário, Deus quer o sábado, o domingo. O especial do sábado é que Deus o quer; o ambiente de nosso Deus é o do escravo. Com isso Deus assinalou no sábado quem ele quer. Mas Deus, certamente, não escolheu o escravo só do dia do descanso. Escolhe-o também no dia do trabalho, enquanto farás toda a tua obra, a não ser que se tentasse evidenciar que o Deus da Bíblia é um deus de domingo.
Acho que este texto é atual para o Dia do Trabalhador. Mas para a prédica a questão agora é a atualidade local. E nesta continuação da meditação para dentro da atualidade local tenho que abandonar o pregador a meio caminho. A atualidade de lugar e momento tem que ser articulada no ambiente do sermão. Na análise de Dt 5,12-15 procurei mostrar que este empreendimento vale a pena. Pois, este texto fala bem alto da graça. Não impõe um dever. Ê um bem poder descansar, estar livre de escravizar. Este bom descanso vem do agir libertador de Deus. Vem da saída do Egito. Vem da ressurreição do Jesus crucificado. A grande chance de nosso texto é que não permite que recolhamos a graça para a esfera do domingo. Temos que falar do descanso em função da totalidade dos sete dias. Precisamos falar do traba¬lho justo (de toda a tua obra) e da condição dos trabalhadores (escravos). Desta maneira Dt 5, 12-15 fala bem alto da graça para os sete dias da semana. Mas ele também fala bem claro do compromisso. É o compromisso de realmente não trabalhar no domingo. Esse compromisso é radicalmente válido por causa dos fracos, dos trabalhadores. Aqui são iguais aos seus senhores. Mas não só neste dia. A igualdade no descanso é um sinal para toda a tua obra, para que a sociedade exista em favor de seu trabalhador. Esse ë o preço da graça. Temos que viver na esperança de que não só o domingo mas cada dia seja dele. Na graça do Deus que libertou os escravos do Egito e do Jesus que morreu e vive podemos crer contra os fatos, contra as realidades.
Estou com um operário. Há três anos casado. Luta pelo começo de sua nova vida. Tem duas crianças pequenas. As crianças precisam de sua mãe. O marido trabalha 12 horas por dia. Num mês estas doze horas são de dia. No outro mês são de noite. São doze horas corridas. Mas o salário é o míni¬mo. Por carteira naturalmente só são oito horas. Se não aceita as doze, se não aceita o mínimo, não tem emprego. Tem que aceitar. E trabalhar no domingo e nas férias para manter a vida. O sábado de Deus é para o escravo!