Prédica: Efésios 1.3-14
Autor: Bertholdo Weber
Data Litúrgica: Domingo da Trindade
Data da Pregação: 12/05/1978
Proclamar Libertação – Volume: III
I – Texto
V.3: Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com toda benção espiritual nas regiões celestiais em Cristo:
V.4: Assim nos escolheu nele antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele, em amor,
V.5: e nos predestinou para sermos filhos, por meio de Jesus Cristo, para ele, segundo o beneplácito de sua vontade,
V.6: para louvor da glória de sua graça, com a qual ele nos agraciou no Amado.
V.7: Nele temos a redenção, pelo seu sangue, a remissão das transgressões, segundo a riqueza de sua graça,
7.9: dando-nos a conhecer o mistério de sua vontade, segundo o seu beneplácito que ele propusera nele, para, na administração (dispensação) da plenitude dos tempos,
V. 10: fazer convergir todas as cousas em Cristo, tanto as no céu como as na terra –
V. 11: nele, no qual também recebemos a nossa sorte, predestinados segundo o propósito daquele que efetua todas as cousas segundo o conselho de sua vontade,
V. 12: a fim de sermos para louvor de sua glória, nós que já antes esperamos em Cristo.
V. 13: Nele estais também vós, que ouvistes a palavra da verdade, o Evangelho da Vossa salvação, nele também, tendo abra gado a fé, fostes selados, com o Espírito Santo da promessa,
V. 14: a qual ê o penhor da nossa herança até a redenção, tornando-se sua propriedade, para o louvor da sua gloria.
II – Observações gerais
A introdução à epístola aos Efésios (Ef) apresenta vários problemas, em parte ainda hoje discutidos sem que se chegasse a resultados convergentes. Sem entrar em detalhes, pode-se dizer que Ef, muito provavelmente, não é uma carta do apóstolo Paulo, mas de autoria deuteropaulina, redigida por um discípulo ou colaborador de Paulo, cujo nome foi usado para enfatizar a relação constitutiva entre igreja e apostolado. Também o vocabulário utilizado e a estruturação caracterizada por longas frases carregadas de conteúdo teológico um tanto abstrato, revelam um estado mais evoluído da igreja constituída de judeus e gentios. Segundo a sua natureza literária, trata-se em Ef menos de uma carta, do que de um tratado circular ou ensaio teológico sem determinado endereço. Pois as palavras em Éfeso, indicadas no prefácio, faltam em vários manuscritos importantes mais antigos. O endereço atual teria sido inserido apenas posteriormente na circular dirigida aos fiéis e crentes em Cristo na Ásia Menor.
A grande afinidade com a epístola aos Colossenses provavelmente não se origina de uma dependência literária, mas do uso de tradições litúrgicas e parenéticas semelhantes em ambas as epístolas. Mas enquanto Cl precisa defrontar-se com determinada heresia, Ef pode desdobrar seu tema eclesiológico em forma meditativa. A igreja universal de judeus e gentios, unida e subordinada ao seu cabeça celestial, compreendida como igreja-instituição que se apoia sobre o fundamento dos apóstolos e profetas (2.20).
III – Gênero literário e estrutura de Ef. l.3-14
O nosso texto, redigido em prosa ritmada, que cascateia em longos períodos e concatenações de frases através de muitas expressões participiais, conexões de genitivo e orações relativas, deixa transparecer nitidamente o caráter litúrgico-hinológico do estilo.
De fato é estranho, na literatura grega, tal conglomerado monstruoso de frases intermináveis, mas corresponde ao verbalismo plerofórico da nossa epístola. Trata-se de um hino em linguagem prosaica edificante, sem estrutura poética, permeada por uma meditação doutrinaria. Este gênero literário, que combina o louvor confessante com uma anunciação doutrinal, tem paralelas tanto na sinagoga como na seita de Qumrã (cf. 1Q.S). A linguagem da benedictio inicial ('berakâh') deixa transparecer a influência da tradição litúrgica hebraica de certos grupos livres do judaísmo tardio.
Parece-me, portanto, tempo perdido querer descobrir neste texto os elementos de um poema original e dividí-lo em 3 ou 4 estrofes com as respectivas subunidades. Mais sugestiva é a hipótese que a estrutura hinológica talvez se oriente pela Trindade divina.
Após a introdução (v.3) seguem 3 parágrafos, dos quais cada um corresponde a uma das pessoas da Trindade:
4-6 tratam do desígnio salvífico de Deus, o Pai;
7-10 de sua realização pela graça, em Deus, o Filho ;
11-14 da vocação, do selo (batismo) e da união de judeus e gentios na una sancta, por Deus, o Espírito Santo.
A louvação inicial, a benedictio (eulogetós), é uma boa introdução a tudo que segue, pois o tema eulógico permeia todo o hino. É uma proclamação inspirada confessante, em forma de ação de graça e louvor pela salvação prevista pelo Pai “em Cristo e realizada pelo Espírito Santo.
O pai é o autor e a meta final da salvação. As atribuições do Filho são caracterizadas pelas preposições em e por e constituem a mediação do plano salvífico de Deus, que nos ganha a filiação.
Nós bendizemos a Deus por causa da sua bênção espiritual (Espírito Santo). Bendito e bênção têm também no hebraico a mesma raiz: berakâh, que significa a bênção e a proteção de Javé, que salva. Somos abençoados, porque fomos escolhidos por Deus, porque nos foi proporcionada a redenção, a remissão dos nossos pecados, e porque nos foi manifestado o mistério da vontade de Deus, que quer que todos os homens sejam salvos.
lV – Exegese e meditação
O louvor a Deus (Bendito, v.3), que abençoou a comunidade com bênção espiritual, a filiação (v.5), a riqueza da graça(vv.6ss),a herança e promessa (vv. lie 13), o penhor do Espírito Santo que os selou para a redenção definitiva – este é o conteúdo resumido do nosso texto para a prédica. Trata-se da doxologia de Deus, que tão abundantemente abençoa, e tudo o que segue é o desdobramento desta bênção espiritual.
Bendizer e louvar a Deus nos lembra a função constitutiva da doxologia para a vida da igreja, especialmente em seus cultos. O texto destaca não menos do que 3 vezes o louvor a Deus como o objetivo da ação salvadora de Deus em Cristo (vv. 6,12,14). O objetivo escatológico da revelação é o louvor de sua glória.
A bênção ê experimentada como espiritual, i. é., como obra do Espírito Santo. Ela não se manifesta visivelmente em bens terrenos, mas pode estar oculta em meio à opressão e perseguição da comunidade. Só a fé dos redimidos em Cristo conhece e experimenta esta bênção. O nosso bendizer é autêntico se for resposta ao agir anterior de Deus em favor da nossa redenção. Nesta bênção se revela a relação que Deus estabelece conosco, em Cristo, pelo Espírito Santo.
Todo o texto seguinte è uma explicitação desta bênção, que consiste nos seguintes atos salvíficos do trino Deus:
a) a escolha da comunidade em Cristo, antes da fundação do mundo.
A vocação dos cristãos, como ela se efetua sobretudo no batismo, tem o seu ultimo fundamento no desígnio de Deus na eternidade, antes do nosso ouvir, crer e pensar. A incondicionalidade da aceitação e justificação dos cristãos no batismo se funda na vontade graciosa de Deus. A eterna escolha se manifesta em Cristo, antes da minha experiência. Ela só pode ser aceita na fé, que vem do ouvir da mensagem do Evangelho.
Por isto a predestinação, a escolha não é um decreto eterno inflexível, mas um mistério adorável, inacessível a nossa lógica. Ela expressa a verdade que a fé não cria a nossa salvação, mas a aceita como presente de Deus. A filiação, para a qual Deus, o Pai, nos predestinou, é obra do Espírito Santo, que nos adota por amor de Cristo como filhos de Deus e irmãos e irmãs do seu Filho Amado. Só a comunidade dos justificados pela fé em Cristo pode testemunhar esta escolha e bendizer e louvar com uma vida adequada a abundante e soberana graça que Ele nos revelou e concedeu em Cristo.
b) A redenção por seu sangue. A graça preveniente de Deus, que forma o centro das bênçãos benditas, do nosso texto, consiste na redenção por seu sangue, que opera a remissão dos pecados. Com esta terminologia, familiar à tradição batismal e eucarística, é aludido à libertação de escravos (p.e. o povo de Israel no Egito) , escravos da culpa dos pecados. Só a partir do Crucificado pode-se falar da graça de Deus, se não se quer barateá-la ilicitamente. A nossa redenção da escravidão e a remissão dos pecados se fundam exclusivamente no sacrifício sangrento de Cristo na cruz. Na cruz de Cristo ê feita a paz entre Deus e o homem, entre judeus e gentios, entre as diferentes origens raciais e étnicas dos povos na união em um só corpo de Cristo. Tudo o que o prólogo de Ef fala da ação de Deus tem sua base na morte de reconciliação de Cristo, na riqueza de sua graça, que Ele derramou abundantemente sobre nós em toda a sabedoria e prudência. Deus nos concede sua graça e assim Ele nos faz crescer no conhecimento do mistério de sua vontade (Ef 3.3 ss) . – Esta função central da cruz não deve ser esquecida na prédica.
c) A revelação do mistério. A revelação sucede na história, sem se esgotar em sua aparência terrena, pois se trata de manifestação de um plano de salvação transcendental. Este é o conteúdo do mistério do qual já falou o v.5- O evento salvífico inclui a sua proclamação e sua explicitação pneumática (Espírito Santo). Pelo Evangelho é, na plenitude dos tempos, anunciado o desígnio oculto de Deus em Cristo, sua vontade de fazer convergir (anakephalaiósthai) nele todas as coisas (tá pánta). A ideia de economia (dispensação) determina a expressão plenitude do tempo. O sentido é que Deus houve por bem executar o seu plano salvífico pelo envio de seu Filho, no qual o tempo se torna pleno, isto é: no evento histórico de Jesus se cumpre a vontade escatológica de Deus, de recapitular todas, as cousas em Cristo. Apesar da terminologia gnóstica aqui usada, não se trata de uma especulação sobre o homem cósmico, que como redentor se une com o universo dividido em unidade superior. A anakephalaíosis do universo em Cristo interpreta o relacionamento com Deus, manifesto na revelação histórica e concretizado no batismo. Este ato da recapitulação tem dimensões cósmicas: Deus quer em Cristo a sua criação de volta. Este ê o plano de Deus: fazer convergir no Filho para uma unidade tudo que, fora da ação salvífica, se desmembra em partes antagónicas. A redenção assume dimensões universais, visando a integração das diferenças entre céu e terra, criador e criatura, eternidade e tempo, judeus e gentios (Instaurare omnia in Christo). Aqui é acentuada a soberania de Cristo sobre o cosmo e a convergência da multiplicidade cósmica na unidade em Cristo. O que muitas vezes esquecemos, reduzindo o cristianismo à salvação individual, merece ser realçado e lembrado com o nosso texto: Segundo a promessa de Deus, o cosmo (novo céu e nova terra) e toda a criação estão incluídos no plano de salvação divino (Rm 8). A palavra em grego para fazer convergir contém a ideia de Cristo como cabeça tanto da sua Igreja como do universo reconciliado e integrado nele. Nesta esperança os cristãos podem ver também a meta de sua própria existência: Em Cristo somos predestinados e participamos da herança no mundo futuro de Deus. E também isto deve servir para o 1ouvor da glória de Deus.
Vv.13 e 14: Também vós fostes selados (sphragis = sel o). O autor se volta agora aos destinatários, certificando-os que também eles são abençoados por Deus. Eles foram selados: sphragis era a marca, o selo usado pelo senhor ao qual pertenciam os escravos e sob cujo domínio e proteção viviam. O Espírito Santo é o selo com que os gentios foram incorporados na comunidade pelo batismo, é o elemento no qual o batizado vive uma nova existência. Deus reconheceu os gentílico-cristãos como sua propriedade, e esta ë a razão por que os outros cristãos os reconhecem também como irmãos na fé.
O Espírito Santo é o penhor da nossa herança, um primeiro pagamento, uma antecipação da vida futura, é prova e garantia da vocação celestial. A salvação não é apenas consolo para o além, mas uma realidade já presente e experimentada pelos cristãos batizados. Contudo a herança ainda está em nossa frente. Aqueles que já foram remidos ainda vivem na carne e esperam pela redenção final. Até este resgate final , quando seremos inteiramente propriedade do Senhor, vivemos da promessa, do penhor e das primícias do Espírito Santo.
No final o autor volta à doxologia, ao louvor da glória de Deus, que tão ricamente abençoou a comunidade.
Uma das preocupações de Ef é que a comunidade de Cristo poderia dividir-se em facções e grupos antagônicos. A igreja é um só corpo de um só Senhor e Cabeça. Há em todas as igrejas posicionamentos divergentes entre pessoas de origem e mentalidade diferentes, entre conservadores e progressistas, entre os engajados na mudança de estrutura e os introvertidos que cultivam sua vida religiosa, às vezes sem relacionar-se com a vida da comunidade e sociedade. O texto não permite polarizações, precoces e desnecessárias: Também vós pertenceis a Cristo e fostes selados pelo batismo com o Espírito Santo da promessa.
V – Sugestões para a prédica
Não é fácil esboçar a partir deste texto uma estrutura adequada para a prédica.
Poder-se-ia frisar o tema do domingo: a Trindade, e desenvolver ao longo do texto a ação salvífica do trino Deus, conforme acima exposto.
O texto é cristocêntrico , mas não deixa de ter uma estrutura trinitária: Por Cristo realizou -se o eterno desígnio de Deus, o Pai, para sua honra e glória. Por Cristo ê proporcionado o Espírito Santo, como sinal e penhor que aqueles que crêem em Cristo, são o povo de Deus e que a eles pertencem as bênçãos presentes e futuras de Deus.
Ë oportuno realçar na prédica a importância de louvor a Deus, que faz parte integrante da fé e da vida cultual e comunitária. Poder-se-ia partir dos elementos doxológicos da nossa liturgia e mostrar por que a louvação ('Bendito!') é uma resposta e consequência daquilo que Deus fez em favor de nós em Cristo: a escolha antes dos tempos, a redenção e revelação do mistério de sua vontade são os três temas principais da plenitude desta bênção de Deus.
A prédica deveria motivar os ouvintes a participar espontaneamente neste louvor 3 Deus pelas bênçãos recebidas. Sendo o lugar vivencial deste texto provavelmente o culto batismal, não deveria faltar o enfoque da missão, da qual fomos incumbidos pelo batismo. A comunidade dos batizados não existe para si, mas, sendo corpo de Cristo, ela estabelece a comunicação entre Cristo e o mundo através do testemunho da comunhão de fé vivencial e atuante.
B i b l i o g r a f i a
– BOFF, Leonardo. O destino do homem e do mundo. Petrópolis, Vozes, 1973
– CONZELMANN, Hans . __ Der Brief an die Epheser. NDT, 8, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, l 962.
– DAHL, Nils Alstrup. Kurze Auslegung des Eph. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1965
– EICHHOLZ , Georg & FALKENROTH, Arnold. Hören und Fragen, Neukirchener Verlag, 1971, v 6 .
– EICHHOLZ . Georg . Herr, tue meine Lippen auf. Emil Müller Verlag, Wuppertal – Barmen, 1965.
– PREDIGTSTUDIEN.Série VI. Stuttgart-Berlin, Kreuz Verlag (editor: Ernst Lange), 1972, 2 volumes.