Prédica: Êxodo 34.4b-10
Autor: Erhard Gerstenberger
Data Litúrgica: 19º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 01/10/1978
Proclamar Libertação – Volume: III
l – Qual texto, qual mensagem?
E bom se lembrar: Até um certo ponto o gênero de um texto determina a sua mensagem. Um hino de louvor provavelmente contém outra comunicação do que uma anedota sapiencial, um dito profético ou canções de trabalho, guerra e luto. O gênero, por sua vez, reflete uma situação vivencial, uma interação entre pessoas. Não há quaisquer expressões verbais que não tenham aquela fundamentação na vida real. E não deveria ser admitida nenhuma exegese bíblica sem uma tentativa de reconhecer as raízes do texto na realidade contemporânea. – Qual é, neste sentido, o lugar de origem do nosso texto? Ele faz parte da perícope que narra os acontecimentos no Sinai (Êx 19-34). Gerações de especialistas já tentaram analisar essa compilação complexa de contos e preceitos. Desde J. Wellhausen se desenvolveu, contudo, um certo con-senso em determinados pontos; a saber:
a) ÊX 34 não repete mas dá continuidade à mais antiga narração do encontro com Javé; este capítulo pertence à fonte J. O incidente com o bezerro de ouro (Êx 32)foi inserido posteriormente a fim de dar lugar para o decálogo mais recente, proveniente da fonte E (Êx 20.1-17).
b) Todo o trecho Êx I9-34, de uma maneira ou outra, reflete a origem cultual. Teofania, proclamação da vontade de Deus, observação de tabus sagrados por parte do povo, atividade de um intermediário sacerdotal, isso e mais outros detalhes comprovariam a afinidade cultual.
Mais recentemente, porém, este consenso foi pelo menos desafiado pela investigação de L. Perlitt (op.cit,). Este perguntou se seria possível reconhecer as circunstâncias daquela teologia da aliança, que se manifesta tão claramente nas narrações sobre o encontro no Sinai. A resposta de Perlitt: Tal sistematização teológica cabe bem na época do exílio, pois foi ali que Israel se reorganizou, depois da terrível derrota de 587 a.C., como povo de Deus, sem mais poder usar estruturas político-econômicas para realizar e fortalecer a fé em Javé. Israel se tornou uma comunidade exclusivamente eclesial, e o pacto com Javé passava a ser a coluna vertebral da nova comunhão dos fiéis. Foi principalmente o movimento teológico que nós chamamos de deuteronomista que conseguiu reunir de novo os escombros da tradição israelita e interpretá-los numa maneira construtiva. Assim, a ideia do pacto com Javé servia como ponto fixo de referência, como orientação para o povo todo e os seus membros individuais, como meio da autodeterminação contra as nações dominantes, bem como da identificação interna. O texto de Ex 19-34, em conjunto com o livro de Dt, podemos considerar a carta magna justamente desse período formativo da história de Israel.
II – Quem somos nós?
A exegese tem que incluir uma reflexão sobre a situação atual, a fim de ganharmos pontos de referência para construirmos aquela ponte entre passado e presente. Obviamente, à luz da análise literária já feita, a questão mais urgente é : Como e onde podemos achar a nossa identidade pessoal e coletiva? Será que nós nos identificamos, na busca de um sentido último da vida, com a nossa respectiva família? As estatísticas mundiais e as pesquisas sociológicas (.cf. C.A. de Medina, Família e mudança, Petrópolis/ Rio de Janeiro, 1970 mostram que existe um desejo fundamental de procurar o amparo familial. Infelizmente, porém, as forças dilacerantes da nossa sociedade tendem a enfraquecer e romper os laços íntimos de parentesco (pressões de trabalho, separação entre moradia e lugar de trabalho,especialização profissional , condições habitacionais, urbanização, abuso da TV, etc.). Assim, na realidade de hoje, a família está sucumbindo às influências superiores da economia e tecnologia moderna. Poderia a equipe no lugar do trabalho substituí-la, oferecendo sentido para viver? Certamente há exemplos dessa substituição, mas normalmente, conforme os próprios princípios da nossa sociedade, nos lugares de trabalho prevalece um espírito indiferente e até desumano de competição e contestação, que impede qualquer integração profunda. Seriam as comunidades eclesiais o lugar certo para acharmos a nossa paz? A partir da doutrina oficial e de um ponto de vista ideal a igreja, de fato, deveria oferecer comunhão a todos. As seitas, comunidades de base e ocasionalmente algumas paróquias normais cumprem esse dever. São grupos de integração, prestam calor humano, coerência emocional, plausibilidade e ajuda. A nossa igreja, contudo, construída em cima de uma teologia intelectual e uma tradição liberal-burguesa, vive ainda, na maioria das suas comunidades, a isolação dos seus membros entre si. Poderíamos, talvez, refugiar-nos sob as asas daquelas superestruturas modernas que determinam as nossas vidas? A economia mesmo, que tenta tornar-nos fiéis consumidores; a pátria,que prepara modernos mitos para o nosso gozo; a humanidade, que exige a nossa atenção diariamente? Todas essas perguntas alertam-nos quanto a um triste fato: O homem moderno tem poucas oportunidades de se identificar satisfatoriamente. Ele é um homem mais ou menos desamparado. E o melhor analista sociológico só pode constatar o profundo transtorno que está em andamento, atingindo todas as estruturas sociais. É dentro deste processo de mudanças radicais que nós proclamamos a presença desafiante de Deus. (P.S.: Estou escrevendo isto no dia da criança. A cifra de 2 milhões de menores totalmente abandonados só no Brasil é indicativo do poder integrante da nossa sociedade?)
III – O Pacto – ontem e hoje
O nosso texto culmina no v.10: Eu vou estabelecer uma aliança. Quer dizer: Deus de novo supera as barreiras erguidas pelo homem a fim de se solidarizar com o povo eleito. As condições do pacto, conforme o v. 10, são as maravilhas, que nunca se fizeram em toda a terra, são aquelas obras do Senhor, que merecem o atributo terrível. Elas incluem a dádiva dos mandamentos (vv.12-26)? Sim, pois podemos até concluir que neste contexto a velha linguagem referente aos atos salvíficos de Javé visa a promulgação da lei em primeiro lugar (cf. as maravilhas em Sl 119.18,27!). Seja como for, o pacto e a nova comunhão estabelecidos por Javé deram uma nova esperança aos exilados do século VI a.C. A mesma situação, pressupondo a promessa e o perdão de Deus, se encontra p.ex. em Dt 30; Jr 31 e Ez 11. Quais foram o significado e as consequências dessa aliança para Israel? Como podemos nos enquadrar nesse antigo esquema de pensamento?
Convém mais uma vez sublinhar o impacto positivo da teologia da aliança para com um povo derrotado. Por outro lado, apareceram bem cedo os efeitos restritivos e sufocantes dessa teologia. Israel proclamava um Deus universal e dominante,zeloso e poderoso no sentido de proteger a própria identidade em ansiosa distância dos pagãos. Talvez era um caminho legítimo de autodefesa contra inimigos superiores no século VI a.C. Mas podemos nós, cristãos de hoje, ainda usar os conceitos de eleição, do particularismo judaico, da isolação, exclusividade e superioridade? Dificilmente! Partindo do Novo Testamento e das exigências claras da nossa própria situação, na qual Deus age igualmente, temos que admitir: A oferta de comunhão proveniente de Deus mesmo vale para todos os seres humanos -e por que não? – para toda a criação. Combatamos as, tendências abertas ou sutis (cf, ÊX 34.l11s,15s) de absolutizar as próprias afirmações teológicas, de excluir outros (cf. os exemplos chocantes Nm 25.6-8; Ed 9s; Ne 13) e tornar as comunidades e igrejas sociedades fechadas (como frequentemente aconteceu na história eclesiástica). A comunhão com Deus não somente é uma comunhão aberta, mediada pelo cristianismo; mais do que isto, ela acontece em todos os lugares onde homens estão buscando a verdade e a justiça, o sentido da vida e o amor.
IV – Louvar, pedir e celebrar a comunhão
A oferta de uma comunhão vivificante (v. 10) é uma resposta de Deus ao pedido humano (v. 9). Originalmente, o nosso trecho conteve, além destes dois versículos, só uma narração do encontro entre Moisés e Javé (vv.4-5,8). Isto significa: A exclamação cultual nos vv.6-7 parece ser uma inserção posterior (cf. Dentan, op.cit.). Nesta camada mais antiga, portanto, o representante do povo faz uma petição simples: Segue em nosso meio conosco…. toma-nos por tua herança . (v.9). Linguagem profana, modelada conforme a etiqueta real (cf. Se achei graça aos teus olhos… em Gn 50.4; Jz 6.17; l Sm 20.29; 27.5; 2Sm 14.22), sem vestígios cultuais. Na sua substância o pedido revela a insegurança do exílio: Ainda pertencemos a Javé? Ele não se negou para sempre? A palavra-chave herança desempenha papel importantíssimo nos escritos do século VI e posteriores: cf. Dt 4.20; 9.26,29; 1 Rs 8.51; Is 47.6; Jl 2.17; 4.2; Sl 78.62,71 ;94.5, 14; 106.4s.40, Um redator posterior, porém, não conseguiu suportar tal realismo teológico. Pedir pela presença do Senhor sem referência ao culto? Impossível ! Ele intercalou a invocação certa (vv.6-7), pressupondo, aparentemente, que essa citação seja suficiente para sugerir toda a situação cultual, cf. também o empenho em ÊX 33.7-11 de localizar os encontros entre Moisés e Javé na tenda de revelação. Senhor, Senhor, Deus compassivo… (v.6) – isso não é uma fórmula da auto-apresentacão de Javé, como o nosso texto, além de Ex 33.19 e Nm 14.17s, poderiam insinuar. Não, ela é uma adoração hínica, confessional, da comunidade. As passagens Sl 86.15; Ne 9.17-31; Sl 103.8; 145.8 comprovam claramente esse uso cultual, por parte da assembleia. Podemos dizer: A presença e a atuação de Deus dependem da convivência cultual, da comunhão entre os fiéis, do reconhecimento da misericórdia divina, do louvor firme por parte da comunidade? Certamente nós não devemos restringir Deus, colocando tais afirmações de maneira dogmática. Mas a experiência nas nossas paróquias revela uma conexão entre vida cultual e autenticidade do testemunho cristão. Não defendo aqui o culto tradicional: Geralmente ele se tornou estéril e tende até a impedir a celebração da longanimidade de Deus. Mas a convivência na fé cristã, formalizada numa liturgia ou não, é a base da chegada de Deus.
V – Para novas identidades
Constatando que a mensagem principal do nosso texto gira ao redor da nova comunhão com Deus e entre os homens, podemos dizer: A humanidade de hoje precisa mais urgentemente do que os judeus do século VI a.C. de uma revisão dos seus fundamentos espirituais e sociais. De fato, as circunstâncias e causas do nosso desamparo moderno são outras do que na antiguidade bíblica. Por isso as nossas opções são diferentes. Mas as situações são análogas, permitem comparações. Pode mós, na verdade, receber inspiração e orientação dos judeus do século VI a.C.
Não é de estranhar que a busca da própria identidade, da nova realidade que poderio acabar com o gritante desequilíbrio do nosso mundo, inquieta todos os níveis e formas de organização da sociedade humana. O nosso século sobretudo é um século de insegurança e da busca de garantias. Todos os tipos de tendências progressistas e tradicionalistas têm essa finalidade. E as igrejas normalmente participam neste êxodo das ruínas de um passado que não mais oferecem plena proteção. O livro recém publicado por G.Burger (op. cit.) documenta o início dessa romaria por parte da IECLB. Os irmãos católicos já estão bem avançados (cf. CNBB, documentos, op.cit.). Da mesma forma, sob uma superfície mais ou menos calma, fomentam-se no Brasil, em todas as partes, novos pensamentos sobre o futuro (cf. S,F.Gomes; C.E.Martins op. cit. etc.). E no plano internacional também aumentam as conferências econômicas, científicas, políticas, bem como as assembleias, sínodos, encontros eclesiais. Isto significa: As fábricas de ideias, os responsáveis para a construção de um mundo plausível, estão em plena atividade. Aí não existe desemprego, mas antes um elevado desgaste de pessoal. A maior tarefa em todos os notáveis empenhos está na busca de fórmulas de conciliação, de caminhos para cooperação e coexistência pacífica. Acontece que a produção de antagonismos e hostilidades, tão querida entre políticos e militares de certas épocas, não tem mais sentido nenhum, quando se reconhece o seu caráter suicida. Os pregadores de cruzadas contra o inimigo, seja da direita ou extrema esquerda, são pessoas duma mentalidade obsoleta.
Há esperança, do ponto de vista cristão, nessas tentativas de achar uma nova identidade para o homem moderno? Admitindo todos os fracassos já experimentados bem como aqueles que inevitavelmente ainda vão acontecer, nós deveríamos apoiar cada busca sincera da nova realidade humana. Ela é, no nosso ver, um reflexo direto do reino de Deus e do bom relacionamento com Ele. E no meio de muita loucura e destruição no nosso planeta, podemos observar sinais de razão e de amor, ou seja, da presença benevolente de Deus. Isto vale, quando os princípios dialéticos de pluralismo e independência, por um lado, e, do destino comum, por outro, isto é, interdependência, ficam respeitados.
a) Pluralismo: A uniformidade ideológica é uma ilusão perigosa; temos que reconhecer as várias crenças e comportamentos humanos. Devemos aceitar a diversidade e combater a nossa própria tendência de colocar uma certa visão do mundo como absoluta.
b) Destino comum: O globo se tornou tão limitado que cada ato de um homem hoje afeta todos os outros. As atividades mais simples, como p.ex. comer, gastar combustível, amar, na sua multiplicação por milhões de agentes, determinam profundamente o bem-estar de todos.
Assim, o comportamento certo, que produz uma nova realidade, se fundamenta na equidade diante de todos os homens e agrupamentos de homens, por um lado, e na auto-limitação dos próprios desejos, esperanças e direitos, por outro lado.
VI – A pregação na comunidade
Evidentemente, o nosso texto dá oportunidade para várias prédicas, também em diversas situações sociais. Enquanto num ambiente rural a reflexão poderia se orientar para os fundamentos reais da comunhão (parentesco; interesses comuns), tentando descobrir neles a dimensão da fé em Deus, o pregador enfrenta uma situação muito diferente nas diversas situações urbanas. O que aí normalmente se destaca é a falta de comunhão entre os membros da paróquia. O que dizer no culto? A prédica poderia tomar a seguinte linha de pensamento:
a) Em vez de começar com denúncias da falta de comunhão, valeria a pena falar no nosso desejo comum de superar barreiras e achar o nosso lugar certo no mundo. O jovem em busca de compreensão por parte dos pais, esposo e esposa não sabendo como restabelecer uma boa comunicação, pessoas que sentem a dor de conflitos intergrupais provocados por preconceitos(racismo, sexismo, chauvinismo, etc.}, cristãos que têm toda a vontade de se engajar na comunidade sofrendo, porém, sob as divisões, a insensatez, a intransigencia ou indiferença dos próprios companheiros na fé – todos eles são exemplos muito próximos para mostrar a disposição e necessidade de uma nova comunhão.
b) Qual é a posição, quais são as possibilidades de uma congregação cristã no mundo atual? Cristãos não promovem uma fraternidade teórica ou meramente emocional (Seid umschlungen Millionen…). Cristãos têm a liberdade de respeitar a autonomia do outro como pessoa bem como do seu grupo. Eles buscam uma verdadeira convivência com os outros. Fazendo isso, testemunham a Cristo,sem jamais tentar impor a sua visão do mundo aos outros. Eles se valem da própria tradição, mas estão prontos a sacrificar tudo para os seus semelhantes, ainda que estes estejam muito distantes. Exemplos: Aqueles cristãos que se solidarizam com os pobres e sofredores.
c) Falar em pacto ou aliança hoje significa: Deus quer comunidades particulares, que se abrem para todos os homens. Clubes sociais normalmente se fecham, vivem na isolação dos próprios Interesses. Comunidades cristãs obedecem à vontade de Deus na situação de hoje: Não podem aceitar aquelas barreiras humanas como última norma. E o culto cristão deveria refletir a liberdade cristã: Ele não é um show do pastor, nem uma assembleia de sócios ou acionistas, mas é, isto sim, parte da convivência fraternal de discípulos de Cristo, que vivem e experimentam já a alegria do reino de Deus, e que estão aí para compartilhar esta alegria com todo mundo.
VII – Bibliografia
– BURGER.G, Quem assume esta tarefa? São Leopoldo, 1977.
– CHILDS, B.S. The Book of Exodus. Phidelphia, 1974.
– CNBB-documentos: Igreja e governo. Extra, no. 3. São Paulo, fevereiro 1977.
-DENTAN, R.C. The Literary Affinities of Exodus 34,6f In: VT 13, 1363, pp.34-51.
– GOMES, S.F. Tempo de mudar. Porto Alegre, 1977.
– ILLICH, I. Celebração da consciência. Petrópolis. 1975.
– KUNG,H. Was ist die Kirche? München, 1970.
– Martins, C. E. , Capitalismo de estado e modelo político no Brasil. Ed. Graal Ltda, 1977.
– NOTH, M. Das zweite Buch Mose. ATD 5. Göttingen, 1959.
– PERLITT, L. Bundestheologie im Alten Testment. WMANT 36. Neukirchen, 1969.
– SCHABERT, J. Formgeschichte und Exegese von Ex 34.6f und seiner Parallelen. In; Bíblica 38. 1957, pp. 130-150.