Prédica: Gênesis 1.26-31; 2.1-3
Autor: Silvio Meincke
Data Litúrgica: 7º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 09/07/1978
Proclamar Libertação – Volume: III
I – O t e x t o
Um estudado sacerdote ensina neste texto como ele (e a tradição em que vive) se imagina a criação do mundo: Deus cria o mundo do meio do caos, cria meios para protegê-lo contra os poderes da destruição que sempre o ameaçam, cria uma estrutura de ordem muito bem pensada, enche-o de vida e fertilidade e nele coloca o homem como protetor e senhor.
Como não poderia ser de outra forma, o autor recorre, para a sua descrição, a figuras, imagens e concepções do mundo da sua época.
A forma do plural façamos o homem à nossa imagem espelha o pensamento de que Deus se faz assessorar dos seus anjos, quando empreende algo. O plural é usado apenas no versículo 26, com o que o autor quer dizer que aqui acontece algo de especial, algo que transcende os atos de criação anteriores.
A concepção de que o homem é a imagem de Deus tem enormes consequências para o conceito do homem de si mesmo. O autor usa esta ideia (já existente no pensamento oriental) para descrever o homem como alguém que está voltado para Deus, condição única, sob a qual pode ser e permanecer homem (pessoa humana). E nesta condição recebe a tarefa: dominar a terra, sujeitá-la. Com isto recebe uma tarefa que em si pertence e continua pertencendo a Deus. Mas o Criador delega esta tarefa ao homem, a qual devera desempenhar voltado para ele. No domínio do homem sobre a terra, portanto, espelha-se a sua condição de ser imagem de Deus.
O homem é criado como homem e mulher. Desde o começo ele existe, portanto, como homem e mulher. A possibilidade de reproduzir-se, encher a terra e determinar a sujeição da mesma com o seu saber, isto ele deve entender como dom de Deus. Com isto o autor certamente quer eliminar velhos mitos sobre o sexo e a reprodução, bem como a idolatria do sexo.
Na conclusão de cada obra Deus dá o seu veredito: e viu Deus que isso era bom. Que o homem existe, que é imagem de Deus, que existe como homem e mulher – isto é muito bom.
II- As dificuldades com o texto
Ao abordar este texto em estudos bíblicos, constatei três principais posicionamentos entre os membros da Comunidade:
1) Pessoas que não costumam refletir muito sobre o texto e o aceitam literalmente. Talvez, porque, desde crianças, ouvem-no e, de tão embebidos dele, conseguem aceitá-lo literalmente com ingenuidade; talvez, porque, para não entrar em conflitos com o seu mundo de fé, evitam, consciente ou inconscientemente, qualquer reflexão; talvez, porque, sabe lá com que artifícios da mente humana, conseguem viver, sem conflitos, o mundo do autor de Gênesis e o mundo da ciência dos nossos dias, paralelamente.
2) Pessoas que defendem decididamente a interpretação literal de Gênesis l e brigam por ela, rejeitando todas as descobertas científicas sobre o surgimento da terra e do que nela habita, como demoníacas. Ainda há pouco li que um grupo de pais nos Estados Unidos conseguiu que fosse proibido um livro usado nos colégios de seus filhos, o qual fazia uma interpretação crítico-literária da História da Criação. Literatura que defende a interpretação literal de Gênesis l, aliás, encontramos muito difundida em nossas comunidades ultimamente: Editora Betânia e tal.
3) Pessoas que entram em conflito quando comparam o que diz a ciência e o que ensina a interpretação literal da Bíblia.
Penso que o pregador não deve abordar especificamente esta problemática de maneira polemizante ou apologética (o lugar para isto seria o estudo bíblico, o retiro ou o seminário), mas deve, isto sim, ter em mente toda esta questão, como pano de fundo, ao fazer as suas colocações.
O pregador deverá ter em mente também os problemas da ecologia, como os vivemos em nossos dias, sem contudo reduzir a pregação a uma simples repetição de dados sobre a poluição e sobre a destruição da natureza, que todos já conhecem e que a televisão e as revistas ilustradas nos podem apresentar com ilustrações muito mais cativantes do que uma prédica o poderá fazer.
A prédica deverá manter-se acima do enumeração de problemas e da acusação dos causadores dos mesmos.
III – Meditação
Deus nos criou. Somos suas criaturas. Ele é o nosso Criador. É isto que o nosso texto nos quer dizer. Não nos quer dizer, em primeiro lugar, que Deus criou Adão e Eva, como o primeiro casal, mas quer, sobretudo, dizer-nos que nós temos um Criador.
Deus nos criou a sua imagem e semelhança. Isto quer dizer que nos criou voltados para ele. Criou-nos assim que podemos falar com ele; que ele se pode comunicar conosco e nós com ele; que podemos ter uma relação com ele e ele pode ter uma relação e uma história conosco; que podemos ter contato com ele, por meio da sua palavra, por meio da oração e por meio da fé. A partir desta comunicação ele quer agir por nosso intermédio; através dos nossos olhos ele quer olhar este mundo e através do nosso agir ele quer atuar neste mundo; no nosso senhorio sobre a criação ele quer que fique patente o seu senhorio; pelas nossas atitudes ele quer preservar a sua criação, que colocou em nossas mãos; através de nós ele quer manifestar o seu amor pela criação e pelos homens.
Apenas e unicamente nesta qualidade de semelhança de Deus realiza-se a humanidade do homem. A semelhança de Deus faz a essência do ser pessoa, homem, ser humano.
O Criador quer ter uma história também com o outro, também com o que pensa diferente de nós, também com o que vive diferente de nós, também com o maltrapilho que vagueia pelas ruas da nossa cidade. O fato do outro ter este valor aos seus olhos, faz com que ele deva ter valor aos nossos olhos.
Por nos ter criado à sua imagem, o Criador espera de nós que desempenhemos a tarefa que dele recebemos, voltados para ele, perante a sua face, em resposta a ele, responsavelmente. Isto nós podemos fazer, porque ele nos deu a capacidade de entender a sua palavra e de responder a ela em nossos atos e em nossas decisões. A partir disto nos confia a sua criação: sujeitai a terra e dominai sobre…
Portanto ele confia a nós a sua criação e nos concede a sua bênção para tanto: sede fecundos, multiplicai-vos , enchei a terra e sujeitai-a. E a sua bênção vai tão longe que institui um dia de descanso. Quer que o homem encontre descanso, paz, realização, alegria e plenitude de vida no desempenho da tarefa recebida.
A tudo isto o Criador diz o seu sim: Viu Deus tudo o que fizera e eis que era muito bom. É bom que o homem existe; que ele tem espaço para a vida e que pode preencher este espaço e organizá-lo, voltado para o Criador, em responsabilidade perante ele; é bom que o homem pode pensar, planejar e decidir-se e que pode fazer isto na condição de imagem de Deus, em contato com ele; é bom que o homem não precisa viver só, mas que pode viver como homem e mulher e que pode viver dentro da comunhão com os seus semelhantes; é bom que o homem faz parte de uma história que o Criador tem com ele; é bom que o próprio homem pode determinar esta história, a partir do seu contato com Deus; é bom que o homem está inserido dentro da história que o Criador tem com a sua criação e que o homem pode determinar esta história, dentro de uma orientação que recebe do próprio Criador, na condição de imagem de Deus.
Obs. : Aqui pode-se recorrer à seguinte ilustração:
[Veja Ilustração 1 anexa.]
Relação para com a criação a nós confiada e para com o semelhante, dentro da condição de imagem de Deus. Assim Deus criou o homem, e nesta condição encontra plenitude de vida.
E só o homem é imagem de Deus. Nenhum outro ser criado o é. Por isto o autor do Salmo 8 pode cantar a sua admiração a respeito do homem e do seu Criador, que tanto elevou o homem.
Obs.: O Salmo 8 pode ser usado como leitura bíblica, quando já se poderá apontar para a temática da prédica. Melhor ainda seria se no início do culto se anunciasse a temática do culto e se toda a liturgia, com seus cantos, suas orações e confissões formasse um todo com a pregação.
Mas, será que é realmente tão bom assim o mundo em que vivemos?
Olhemos ao nosso redor e vejamos do que o homem é capaz!
Acontece que nós cortamos a boa relação como Criador.
Obs.: Aqui pode ser usada a seguinte ilustração:
[Veja Ilustração 2 anexa.]
A criatura quebra a sua boa relação com o Criador e, consequentemente, quebra a boa relação com o semelhante e o domínio responsável sobre a terra. É a queda do homem, com todas as suas consequências .
Nós não queremos viver voltados para o Criador. Queremos ser os nossos próprios senhores e tomar em nossas próprias mãos as rédeas da vida. Nós nos colocamos a nós mesmos no centro. Se comerdes desta arvore sereis- iguais a Deus, isto quer dizer: sereis o vosso próprio senhor, esta¬reis vós mesmos no centro, não precisareis viver responsavelmente perante ninguém.
E nós comemos esta fruta constantemente.
E é aí que tudo começa: destruímos a natureza, que o Criador nos confiou, para que a preservássemos; exploramos a terra egoisticamente; tomamos posse da terra conforme a medida do nosso poder e das nossas possibilidades financeiras, e impedimos uma legítima reforma agrária, para dar possibilidade de mais- pessoas participarem do seu cultivo; vendemos milhões de hectares da abundante terra do nosso país a poucas empresas milionárias e a consórcios paulistas ou multinacionais, ao invés de fixar à terra o campesino, que expulsamos para os grandes centros, onde vai formar os cordões de miséria. Expulsos para os grandes centros, passam a viver toda sorte de misérias, como: falta de emprego decente, falta de habitação, falta de alimentação adequada, falta de luz, falta de água, falta de esgoto, falta de escola, e a cidade passa a viver as dificuldades daí consequentes, como: poluição, falta de transporte, prostituição, criminalidade, flagelados entre os moradores dos lugares onde não devia morar ninguém. E ali então é gasto o que sobra do bolo, sobra esta que sempre se promete distribuir, mas o que nunca acontece, a não ser em migalhas, como o PIS e o PASEP. Assim os administradores pagam rapidamente o pecado que mesmo cometem, isto é, quando realmente se interessam com a miséria alheia, pois a sociedade geralmente só se apercebe do problema quando todos estes contingentes de ex-campesinos se tornam uma ameaça para a burguesia bem instalada em seus palacetes. E então entra em ação a repressão da polícia, para esmagar a miséria com ainda maior miséria. É a queda do homem, é a consequência da nossa opção de sermos os nossos próprios senhores, de cortarmos a boa relação com o Criador, de querermos colocar-nos a nós mesmos no centro das nossas decisões; e o pior de tudo, criamos sistemas, esquemas, estruturas para garantir esta situação, ou calamos e assim colaboramos com elas, com argumentos como: democracia, tradição cristã ocidental, segurança nacional e outros chavões. Calando ou sendo neutros, optamos por estas estruturas e as cimentamos.
Mas, que impressionante graça! O Criador, apesar de tudo, repete o seu decidido SIM ao homem, à criatura caída.. Repete e renova o seu amoroso sim, enviando o seu Filho Jesus Cristo, que se torna, ele mesmo, parte da criação, ao se encarnar na forma humana. A aprovação que o Criador dá ã sua criação ele não a cancela. Renova-a a tal ponto que se torna parte dela, no Cristo.
E onde este Cristo se encontra conosco e onde nós, por nosso turno, dizemos o nosso sim a ele, aí nós podemos experimentar, em nossa vida, um pedaço deste mundo bom. Aí podemos também prever a plenitude do bom mundo que nos é prometido e que aqui podemos viver apenas parcialmente.
Por isso devemos aprender sempre de novo com o Cristo a viver a nossa condição de criatura feita à imagem do Criador: ouvindo-o, quando ele nos fala; respondendo-lhe, quando nos chama; orientando-nos por ele, quando nos indica seus valores e seus critérios; dando-nos a ele, quando ele se dá a nós.
E assim poderemos então experimentar o que diz o Criador, quando fala que tudo era muito bom”.