Prédica: Hebreus 9.15,24-28
Autor: Gottfried Brakemeier
Data Litúrgica: Sexta-Feira Santa
Data da Pregação: 24/03/1978
Proclamar Libertação – Volume: III
l – O culto na Sexta-feira Santa se distingue de outros pelo fato de ser frequentado por muitos membros normalmente ausentes durante o ano eclesiástico, aproveitando a Semana Santa e a oferta da Santa Ceia para saldar as suas dívidas para com Deus. Esta situação representa uma tentação para o pregador, que poderia ver ai a sua chance para dizer as verdades à comunidade e para anunciar o juízo sobre o membro afastado e indiferente. O pregador deveria resistir a esta tentação, uma vez que deste modo dificilmente alcançará o objetivo de conduzir ao arrependimento. A distinção entre o que o pregador, por motivos quaisquer, gostaria de dizer e o que o evangelho manda dizer é, nesta ocasião, mais importante do que nunca. Aliás, a situação especial exige do pregador, isto sim, que se esforce por articulação clara, simples e convincente da mensagem da Sexta-feira Santa. Cada prédica e cada culto representam chances únicas e irrecuperáveis. Isto vale de modo especial para a Sexta-feira Santa. Daí a responsabilidade do pregador.
O texto proposto, porém, parece contrariar este objetivo por apresentar sérias dificuldades de compreensão e assimilação. Considerando ainda que a prédica na Sexta-feira Santa, devido à celebração da Santa Ceia, da qual se faz acompanhada, deve ser breve, pergunta-se pela conveniência da escolha de justamente este texto. Além disto, a experiência ensina que na leitura superficial as pessoas gravam preferencialmente o que querem (!) ouvir. Isto é, neste texto, sem dúvida alguma, o perdão dos pecados, do qual falam os vv. 15.26.28, e que está no perigo de ser mal-entendido como graça barata: O ouvinte seria apenas confirmado naquilo que ele já sabia, ou seja, que Cristo cobre os pecados com o seu amor, fornecendo consciência tranquila para mais algum tempo. Naturalmente, esta caracterização do ouvinte não permite ser generalizada, mas ela reproduz um aspecto da realidade de nossas comunidades. Portanto, assim como o culto da Sexta-feira Santa não se presta para a exteriorização de agressões do pastor, assim ele também não é a oportunidade para a confirmação de uma religiosi¬dade descompromissada com a vivência evangélica. Importa ouvir, de fato, o texto que, a despeito das dificuldades inerentes, compensa ricamente o investimento de energias em sua interpretação.
Com vistas à difícil tradução de Almeida e a insuficiência da tradução da Bíblia na Linguagem de Hoje oferecemos tentativa de uma tradu¬ção própria após algumas informações gerais sobre a carta aos hebreus.
II – O escrito do Novo Testamento que chamamos de carta aos hebreus originalmente não possui título. Foi a Igreja posterior que viu nele uma carta aos hebreus, sendo esta designação, porém, não totalmente adequada. Do estilo epistolar lembram unicamente os votos finais (13.l8-25), faltando no mais as características típicas, mormente a forma pessoal em que cartas costumam ser vazadas. Hebreus é antes uma grande prédica, uma palavra de exortação (13.22), admoestando os leitores a permanecerem fiéis ao credo e voltando os seus olhares ao sumo-sacerdote Jesus Cristo, o autor e consumador da fé (12.2), em cujo sacrifício se baseia a remissão dos pecados e a esperança pela redenção final.
Apesar de possuir antes as particularidades de uma prédica do que as de uma carta, a redação de hebreus foi motivada por circunstâncias concretas. O autor, cuja identidade é desconhecida, mas que escreve por volta dos anos 80 a 90 d.C., se dirige a comunidades cansadas na fé, ameaçadas de se afastarem do Deus vivo, vítimas de perseguição e de evasão de membros (cf. 3.12; 5.llss; 10.32ss; 12.3; etc.) – comunidades em crise, portanto. Que elas tenham sido compostas por hebreus, isto é, por judaico-cristãos, não passa de uma hipótese. Ela se apoia no fato de o autor estar fortemente arraigado na tradição do Antigo Testamento, cuja linguagem, história e cujo culto lhe fornecem as categorias e o pano de fundo para o anúncio do evangelho: o AT acha em Jesus Cristo, a um só tempo, seu cumprimento e sua superação. Mesmo assim é duvidoso que as comunidades perspectivadas devam ser qualificadas de hebraicas. Pois também em comunidades gentílicas o AT era estudado e interpretado. Da mesma forma permanece incógnito onde devemos procurar as comunidades a que o autor se dirige. Pensou-se em Roma, visto que a primeira carta de Clemente, escrita em Roma no ano 96 d.C., se reporta a hebreus (cf. também 13.24). Mas certo isto não é, e também não precisa preocupar, uma vez que a questão é secundária.
Gerações antigas viam em hebreus a 14a carta do apóstolo Paulo. Hoje ninguém mais afirma isto por serem demasiadas as diferenças teológicas, terminológicas, etc. Esta afirmação negativa não diminui o valor teológico de hebreus, que reside no seu conteúdo significativamente centrado na pessoa de Jesus Cristo. Podem ser distinguidos três grandes blocos:
1) l. l-4, 13: Jesus Cristo é a revelação definitiva de Deus, maior do que os anjos e Moisés. Importa dar-lhe ouvidos para não perder a promessa do descanso escatológico.
2) 4.l4-10.18: Jesus Cristo é o verdadeiro sumo-sacerdote que, pelo seu sangue, possibilitou o acesso ao santuário celestial. Importa que a comunidade se atenha a este sumo-sacerdote e não recaía no pecado.
3) 10.19-13, 17: Jesus é o autor e consumador da fé. Nesta fé a comunidade deve permanecer firme durante a sua jornada à cidade futura (13.l4). Comunidade é, por excelência, povo de Deus em jornada (E. Käsemann). O trecho proposto para a prédica é parte do bloco central que tematiza o sumo-sacerdócio de Jesus.
III – Tradução
V. 15: Por esta razão Cristo é o mediador de uma nova aliança. Ele morreu para libertar das transgressões praticadas no tempo da primeira aliança, e para que recebessem a promessa da herança eterna os que são chamados.
V.24: Pois Cristo não entrou num santuário feito por mãos humanas, que não passa de uma imagem do verdadeiro. Mas ele entrou no próprio céu, para agora comparecer por nós diante da face de Deus.
V. 25: Isto ele fez não para sacrificar-se muitas vezes a exemplo do sumo-sacerdote que, ano por ano, entra no santuário com sangue alheio (= de animais).
V. 26: Se assim fosse, ele deveria ter sofrido muitas vezes desde o inicio do mundo. Não! Ele apareceu uma vez, ao se cumprirem os tempos, para eliminar o pecado através do seu sacrifício.
V. 27: E assim como os homens são destinados a morrerem uma vez para então enfrentarem o juízo,
V. 28: assim também Cristo foi sacrifica do uma vez por todas para levar os pecados de muitos. Pela segunda vez, porém, aparecerá para a salvação daqueles que por ele esperam, sendo o pecado já vencido.
IV – O cap. 9, dentro do qual se situa o presente trecho, mostra uma clara progressão de pensa¬mento. Dando continuidade ao tema tratado nos caps. 7 e 8, o autor fala primeiramente do santuário terrestre (9.1-51 e do culto da antiga aliança (9.6-10) para lhe contrapor o novo culto realizado por Jesus Cristo que é. simultaneamente o sumo-sacerdote e o sacrifício ofertado a Deus (9.11-14). Através deste seu culto Cristo se tornou o mediador de uma nova aliança. Pela sua morte recebemos a remissão dos pecados e a promessa da herança eterna (9.15) Os versículos 16 a 22 afirmam a necessidade da morte de Jesus mediante recurso ao duplo significado do termo DIATHEKE: aliança e testamento. Assim como uma pessoa deve morrer para que o seu testamento adquira validade jurídica, assim Cristo teve que morrer para firmar a nova aliança. O texto da prédica exclui estes versículos, o que não representa problema visto que, de fato, constituem uma espécie de excurso.
Também a exclusão do v.23 não prejudica a lógica da argumentação: O sacrifício de Jesus purifica não só coisas terrestres, mas também celes¬tiais. Isto significa que o sacrifício de Jesus tem efeitos cósmicos, bem mais abrangentes do que os sacrifícios de animais no templo de Jerusalém. Este pensamento é retomado e precisado nos vv.24 a 28. Existe um contraste entre o sumo-sacerdote Jesus e outros sumo-sacerdotes, existe uma enorme diferença qualitativa entre os sacrifícios da antiga aliança e o auto-sacrifício de Jesus, entre o santuário feito por mãos humanas e o santuário, no qual entrou Jesus. O sacrifício de Jesus é definitivo (uma vez por todas!), cumprindo assim a ordem cultual do antigo testamento e pondo termo a ela.
Que diz então o texto? Eis aí uma rápida paráfrase que procura acompanhar e explicar a lógica dos pensamentos: Uma vez que Jesus Cristo se ofereceu a Deus como sacrifício impecável (v. 14), ele veio a ser o mediador de uma nova aliança, colocando a humanidade numa nova situação. Os pecados de outrora estão perdoados e é dada a promessa de eterna salvação (v.15). Sexta-feira Santa, ou seja, a cruz de Cristo, é compreendida, pois, como um ato cultual, no qual Jesus é simultaneamente o oficiante respectivamente o sumo-sacerdote e o sacrifício. Isto continua sendo explicado nos vv.24-28. Este culto não aconteceu num santuário feito por mãos humanas, mas sim na presença imediata de Deus. O v.24 diz que Cristo entrou no próprio céu. Atrás desta formulação se esconde uma visão impressionante: Jesus morreu no Calvário. Foi lá que seu sangue foi derramado, lá ele se sacrificou. Mas a esfera da cruz se torna o santuário celeste, o lugar da presença de Deus, o novo templo. Lá ele compareceu por nós diante da face de Deus e, assim podemos interpretar, desde então o ressuscitado continua intercedendo por nós junto ao pai celeste. Foi na cruz que Jesus selou com o seu sangue a nova aliança, e através deste seu ato cultual aconteceu salvação definitiva.
O autor de hebreus não se cansa em sempre de novo ressaltar a dissemelhança entre a antiga e a nova aliança. Jesus atuou como sumo-sacerdote não só num santuário diferente, ele também se distingue sob outros aspectos fundamentais: O seu sacrifício não precisa de repetição, ele não ofertou sangue alheio, mas o seu próprio (vv.25-26), portanto vale em todos os sentidos: O culto antigo não passa de fraca imagem do que Cristo fez ao dar a sua vida na cruz. A nova aliança é válida – não há necessidade de Cristo morrer outra vez, ainda que os que nele esperam ainda tenham a sua morte pela frente e vivam num mundo que de modo algum pode ser chamado de santuário de Deus. Mas Cristo virá pela segunda vez, não para morrer de novo e carregar outra vez os pecados, mas para introduzir na glória celeste e salvar de todo o mal os que nele depositam a sua confiança.
V – O pensamento central do texto é o do auto-sacrifício de Jesus que, por esta razão, também deveria orientar a prédica. Contudo, o pregador não deveria simplesmente repetir a linguagem dogmática do texto, considerando que o pano de fundo e a terminologia cultual, tão característica da carta aos hebreus, são estranhos do homem de hoje. Não mais vivemos no mundo dos holocaustos e das outras formas de sacrifícios religiosos. Como traduzir, pois, a mensagem do texto e ouvi-la na realidade das comunidades do século XX? Para tanto algumas reflexões.
A primeira vista enxergamos na cruz de Cristo não um sumo-sacerdote nem um auto-sacrifício, mas uma vítima. Um homem está sendo assassinado e morre miseravelmente à semelhança de muitos antes e depois dele. Ele é objeto de violenta agressão, de calúnia, abuso de poder, sadismo, intriga. E bom ressaltar este aspecto, porque impede a contemplação sentimental da cruz, eliminando a brutalidade, da qual esta se reveste. O que lá na cruz se observa, isto é típico para este nosso mundo, tanto no que se refere à agressão contra o próximo como também à agressão contra Deus. Não será difícil indicar exemplos concretos da atualidade: exemplos de vítimas e exemplos dos que praticam os crimes, sendo que os papéis podem variar. Os criminosos de hoje podem ser as vítimas de amanhã e vice-versa. Sob esta perspectiva a cruz de Jesus é como um espelho da nossa realidade, realidade esta, na qual participamos ora mais ativa ora mais passivamente, realidade de um mundo que sempre de novo produz vítimas e assassina ou prejudica a vida das criaturas de Deus.
Entretanto, a cruz de Jesus não seria nada de especial, se a sua função se resumisse em ser símbolo dos crimes humanos e de suas vítimas. A importância da cruz reside no fato de lá não morrer uma simples vítima, mas alguém que conscientemente se sacrificou, que, portanto, assumiu a tua morte e disse sim a ela. Jesus certamente não procurou o seu martírio – o episódio no jardim de Getsêmani o mostra com toda clareza. Mas ele também não fugiu da cruz, sacrificando-se em favor de sua missão. Por isto o sacrifício de Jesus não será compreendido desconsiderando-se a missão e o ministério do crucificado. Sexta-feira Santa é a consequência do fato de os homens não terem aguentado a voz de Deus manifestada por Jesus (cf. Hb 1.2). A oposição dos homens a Deus, em Jesus ela encontra o seu alvo – e a sua vítima. Mas Jesus não responde nem com a fuga nem com os meios da violência. Ele se sacrifica e permanece assim coerente com a sua pregação que ofereceu graça ao pecador e não castigo. O seu sacrifício se torna, por isto, a expressão mais enfática desta graça: Jesus morreu por causa do seu amor àqueles que, a despeito de seus pecados, não deixam de ser criaturas de Deus, demonstrando assim que Deus não quer a morte, mas sim a vida de todos.
Do sacrifício de Jesus nós vivemos. A sua prece, dizendo: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem (Lc 23.34), abrange não só os seus carrascos de então, mas a todos os que ferem os direitos de Deus, prejudicam ou tiram a vida de seus próximos e colaboram na transformação do mundo em inferno. Que Deus atende esta prece do seu Filho, que ele aceita o seu sacrifício e concede, por isto, remissão dos pecados, nisto consiste a mensagem do nosso texto, a boa nova, a nova aliança .
A palavra nova aliança merece neste contexto dupla atenção. Ela expressa, em primeiro lugar, que o perdão dos pecados, a manifestação do amor e da graça de Deus inerente ao sacrifício de Jesus, tem caráter definitivo. A cruz de Jesus Cristo inaugura uma nova realidade neste mundo e o coloca numa nova situação. Deve-se falar de uma nova situação, porque, a partir de Jesus Cristo, vale uma nova lei, não a lei da violência, do castigo e da agressão, mas sim a lei da graça e da fé. Nós precisamos de nenhuma outra demonstração do amor de Deus do que a cruz de Cristo e a sua morte única. Por isto também não há necessidade de Cristo morrer mais uma vez pelos pecados. Simultânea mente, porém, o termo aliança expressa o compromisso no qual a nova lei implica. A cruz de Jesus estabeleceu uma nova ordem a ser respeitada por todo aquele que faz questão do perdão dos pecados e do amor de Deus. Sem dúvida, no mundo continua sendo praticada a lei da violência, do assassínio, da exploração e do terror – nós sempre de novo somos testemunhas, participantes e vítimas disto. Felizmente, porém, Deus age para conosco não conforme esta lei , mas conforme a lei do amor e do perdão. Nisto reside a nossa salvação. Justamente por isso, porém, vale também para nós uma outra lei , não a lei segundo a qual agem Pilatos, os soldados romanos, o povo que grita: Crucifica-o!, mas a lei conforme a qual age o crucificado, isto é, o amor que sabe sacrificar.
A prédica da Sexta-feira Santa deve precaver-se contra dois perigos. Ela será falha se ela entender a cruz de Cristo como mero símbolo do que nós devemos fazer e o crucificado como alguém a quem devemos imitar. E o perigo de uma prédica legalista que teria o seu escopo na exortação: Sacrificai -vos pelos próximos assim como Cristo o fez. Isto significaria nivelar a cruz de Jesus, tirar-lhe o específico e reduzir o crucificado a um herói humanista que nos deu apenas um exemplo ético. Na cruz acontece antes de qualquer coisa a nossa reconciliação com Deus, desempenhando Jesus a função de sumo-sacerdote.
O outro perigo, porém, reside em que a prédica permaneça fixada no que há dois mil anos aconteceu como drama entre Deus e seu Filho, do qual os homens seriam apenas espectadores e objetos. Neste caso, a morte de Jesus permaneceria sendo um evento isolado dentro da nossa realidade, sem efeitos renovadores e sem levar a uma nova conduta. Ambos os perigos deveriam ser evitados. Naquela Sexta-feira Santa, no Calvário, Jesus celebrou culto ao oferecer-se como sacrifício a Deus em demonstração de seu amor. Mas este culto, pelo qual recebemos a remissão dos pecados, quer e deve traduzir-se em nosso culto racional hoje, no qual oferecemos os nossos membros como sacrifício vivo a Deus e ao próximo, expressando nossa gratidão (cf. Rm 12.1). A lei da violência mata, a lei do amor que se sacrifica, dá vida. Para isto o pregador certamente terá muitos exemplos à mão, dando à sua prédica a necessária concreticidade na comunidade à qual esta se destina.
VI – Bibliografia
– MICHEL, Otto. Der Brief an die Hebräer. ed., Göttingen, 1966.
– KÄSEMANN, Ernst. Das wandernde Gottesvolk. 2a ed. , Göttingen, 1957.
– VOIGT, Gottfried. Die Neue Kreatur. Homiletische Auslegung der Predigttexte der Reihe VI. Vol. I. Göttingen, 1964.
– SPIEGEL, Y./JANOWSKI, H.N. Predigtstudien. Série VI/1. Stuttgart/Berlin, 1971, pp.176ss.
– KRATZ, W./KRUSE, M. Für uns gestorben – Gedanken zum Karfreitag. In: Theologia Practica. Ano 4. Furche Verlag,1969,pp.156ss.
– MARQUARDT, F. -W. Göttinger Predigtmeditationen . Ano 61. Caderno 2. Göttingen, 1972, p p. l 6 3 s s .