Prédica: Isaías 49.1-6
Autor: Martin N. Dreher
Data Litúrgica: Época após Trindade
Data da Pregação: 04/06/1978
Proclamar Libertação – Volume: III
l – Sugestão de Tradução
V.1. Ouvi-me, ilhas,
e prestai, atenção, nações distantes! Javê chamou-me do ventre materno, lembrou-se do meu nome desde o ventre de minha mãe.
V.2. Fez minha boca como uma espada afiada, na sombra de sua mão me escondeu. Fez-me uma flecha afiada, escondeu-me em sua aljava.
V.3: Ele me disse: Tu és meu servo,1a)no qual eu quero me glorificar!
V.4: Eu, porém, pensei: em vão tenho me esforçado, para nada e inutilmente gastei minha força. Mesmo assim meu direito está com Javé, e minha recompensa está com meu Deus.
V.5. Mas agora, assim 1) diz Javé, que me formou desde o ventre para ser seu servo, para trazer Jacó de volta a ele,
e para que Israel fosse reunido a 2) ele (e eu fui considerado digno aos olhos de Javé e o meu Deus foi a minha força):
V. 6. 3) Pouco e seres tu meu servo, para restaurares as tribos de Jacó e tornares a trazer os de Israel que foram preservados;
faço-te luz dos povos, para que minha salvação se estenda até os confins da terra.
II – Considerações Gerais
O texto previsto para a pregação é uma das quatro canções Ebed-Javé (servo de Deus)que encontramos em Dêutero-lsaías4) (42.1-8; 49.1-6; 50.1-9; 52.13-53.12). Não pode mais haver dúvidas quanto à autoria das canções. Elas provêm de Dêutero-Isaías. Mais difícil é, porém, a questão quanto ao consenso em torno da identificação do Ebed. Cremos que dificilmente poder-se-a chegar a um consenso. Talvez o único possível seja este: não sabemos de quem se trata. Sabemos, porém, que a pessoa designada de Ebed é uma pessoa à qual foi confiada uma missão profética universal5, trata-se de um homem que ainda está por vir.
Para nós torna-se particularmente importante estudarmos a visão do Ebed, apresentada por nosso texto. Ao que tudo indica, trata-se de uma só pessoa e não de um coletivo. Foi predestinado e ordenado como servo de Deus. Teve fracassos, mas estes não o fizeram desesperar de Deus; apesar dos pesares, ele confia em Deus. Ele recebe uma dupla missão da parte de Deus: deve fazer regressar as tribos de Jacó e levar a luz da salvação a todos os gentios. O início do texto deixa ver claramente que sua função é a de pregar a mensagem de Deus. Ele é, pois, um homem determinado por uma missão profética. Mas, lendo-se o texto, pode-se constatar também que ele não pode ser inserido na imagem de um personagem histórico. Quem ele é, não pode ser deduzido a partir do texto. A tipologia neotestamentaria tentou uma resposta e encontrou esta resposta, apontando para Cristo, cf. At 8.34s; Lc 2.32 (cf. também At 13.47!)6
A palavra contida na perícope, está dirigida aos povos; por isso é de se observar com Westermann7 seguinte estrutura básica:
Ouvi-me, ilhas…
Assim Javé me falou…
Eu te fiz luz dos povos…
Cada uma destas frases é dirigida aos povos. A canção tem caráter de um auto-relato profético8, devendo-se porém notar também a existência de mais uma outra estrutura, aquela na qual o profeta relata o que aconteceu antes de Deus lhe dirigir a palavra que agora lhe foi confiada. Este relato envolve três fases:
Vv.lb-3: eleição, vocação e preparo do servo
V.4: o desânimo do servo
Vv.5-6: a nova comissão9.
O esquema do texto é, pois, o seguinte: O servo anuncia aos povos que Deus lhe disse: faço-te luz dos povos! O significado deste chamado é explicado pelo servo aos povos: Deus fez de mim seu servo para realizar por meu intermédio uma obra em seu povo, mas eu fracassei e julguei vã a minha tentativa. Deus, porém, ampliou a missão a mim confiada, fazendo com que ela também já abrangesse os povos, para que a sua salvação fosse até os confins da terra.
III – Exegese detalhada
O v.49.1a cita o receptor da mensagem: o mundo inteiro. Esta visão não é algo estranho à mensagem bíblica: cf. Is 41.1-4; Jr 6.18; Jr 31.1º;Sl 2.10; Jz 5.3; cf. também Mt 28.19! O v.1b e também o v.2 nos apresentam o transmissor da mensagem. Nele há três aspectos a serem destacados:
a) Deus o escolheu antes que ele se pudesse decidir (cf. Is 44.2.24; Jr 1.5; Rm 1.1; Gl 1.15).
b) Ele se sabe guardado nas mãos de Deus e mais ainda: ele se sabe escondido nas mãos desse Deus10.
c) Sua existência depende única e exclusivamente daquele que o fez sua boca e seu instrumento11.
Estes três pontos caracterizam o transmissor da mensagem como profeta chamado por Deus para transmitir a sua palavra (cf. Jr 1.5 e Jr 23.29; Hb 4.12; Ap 1.16; Ef 6.17). A espada e a flecha são instrumentos de ataque, e por isso é de se pensar em uma mensagem agressiva, semelhante a de Jeremias. Diante desta agressividade, o Ebed-Javé dificilmente poderia ser Dêutero-lsaías, pois esta agressividade não lhe é peculiar!12
No v.3 o Ebed anuncia aos povos o motivo pe¬o qual Deus o chamou: Deus fez de mim seu Ebed, fez de mim seu servo! Esta designação nos mostra que o transmissor da mensagem é mais que um profeta, pois jamais encontramos na Bíblia a referência ao fato de que Javé conceda um título ao profeta por ocasião de sua vocação. E, mais ainda, jamais encontramos referência ao fato de que Javé venha a se glorificar por intermédio de um profeta13.
Quem é o Ebed? O texto deixa a questão aberta. Uma tentativa de resposta é dada com a interpolação 'Israel'14). Mas esta não satisfaz. – Is 44.23 fala de um glorificar-se de Deus em Israel, mas quão diferente é o glorificar-se de Deus no Ebed! A glorificação de Javé no Ebed adquire um caráter paradoxal e abscôndito. Veja-se Is 50.4-9 e, principalmente, Is 53!
No v.4 o Ebed contrapõe à vocação divina o resultado de sua atividade: ela foi vã e inútil! Aqui nós temos uma pessoa que recebeu uma incumbência e que desesperou diante dela. Os três sinônimos hebraicos: em vão, para nada, inutilmente, são o superlativo do negativo15. E, mesmo assim, apesar de todos os pesares, o Ebed permanece fiel ao chamado de Javé. von Rad aponta aqui para o paralelismo existente com as confissões de Jeremias (cf. Jr 15,15ss; 20,7ss)16.
Ele havia sido chamado para anunciar a palavra de Javé a Israel, mas fracassara diante desta incumbência. Apesar deste aparente fracasso, Jave lhe dá nova incumbência: ser luz dos povos, e quer me parecer que esta nova incumbência implica em um sim de Deus à incumbência anterior, aparentemente mal sucedida. (Veja-se a certeza do servo no v.5!) .
Com a afirmação do servo de que (v.4b) mesmo assim meu direito esta com Javé, e minha recompensa esta com meu Deus, fica claro que a relação do servo com Javé não sofreu solução de continuidade. A justificativa e o sentido de sua atividade estão ocultos em Deus 17. E, tanto a justificativa como o sentido da atividade do Ebed, são obra de Deus no Ebed 18.
Com o v.5 nos é introduzida a nova incumbência do servo. Esta somente se torna explícita no v.6. O v.5 deve ser visto como uma introdução à nova incumbência. A introdução apresenta-nos novamente o servo como uma pessoa que se sabe guardada nas mãos de Javé 20, que sabe a respeito dê sua incumbência passada e que a sabe reconfirmada por Deus. Sua incumbência anterior frente à qual falhara, mas na qual fora confirmado por Deus, era e é a de trazer de volta os que foram preservados, e as tribos de Jacó21. O polel de schub refere-se ao regresso da dispersão (cf. Jr 15,19; Ez 39,27)22.
O servo que ainda não conseguiu se desincumbir de sua primeira missão, recebe agora a segunda: Pouco é seres tu meu servo, para restaurares as tribos de Jacóve tornares a trazer os de Israel que foram preservados; faço-te luz dos povos, para que minha salvação se estenda até os confins da terra. Será que o hino se refere à restauração do sistema anfietiônico? Quem seriam os preservados? O texto não permite uma dedução.
Na hora da maior depressão, Javé amplia a missão do Ebed, dando-lhe caráter universal. Confrontando-se esta nova missão com a confissão de fracasso, feita pelo Ebed, só se pode dizer que esta nova missão é irreal. E parece que isto é justamente o efeito que o texto quer alcançar. Quem ouve a respeito da primeira incumbência de Deus ao Ebed e sabe a respeito de seu fracasso, este somente pode considerar o Ebed um ser iludido ao ouvir falar da segunda incumbência, uma incumbência, que abrange a primeira e que ainda por cima a amplia. Mas, o Ebed não é uma pessoa iludida, ele vive completamente a partir da promessa de Deus (v.4b). Ele deve se tornar luz para todos os povos da terra.
Assim o servo é incumbido de trazer Israel de volta, mas também de levar a mensagem de salvação a todos os povos para que todos participem do triunfo futuro de Javé.
IV – Meditacão
1. Uma pregação a respeito deste texto tem duas alternativas: a) Ela pode fugir de uma caracterização do Ebed ou b) caracteriza-lo. – A primeira das duas possibilidades não me parece viável, pois o Ebed está no centro do texto e nós não nos podemos furtar a uma caracterização deste servo de Deus. A segunda possibilidade, por seu turno, não pode de modo algum ser vista como algo fácil, de maneira que se venha a caracterizar, sem mais nem menos, o Ebed de Jesus Cristo e a apresentar uma pregação cristológica. Ao fazermos a exegese do texto, somos quase que levados a identificar, passo a passo, todo o texto com a historia sinótica e a ver nos relatos sinóticos nada mais que um cumprimento da profecia de Is 49,lss. Mas, e este mas é vital, nós não nos podemos esquecer de que este texto foi proferido dentro de uma determinada situação! Quem escreve estas palavras é Dêutero-Isaías no final da época do exílio babilônico. E estas suas palavras são dirigidas para dentro da situação histórica de Israel, e o gentio que ouve a promessa que lhe é feita, deve ouvi-la como sendo proferida dentro da situação histórica de Israel.
No v.6b o portador da mensagem e a mensagem se identificam: luz dos povos – minha salvação. Aqui o Ebed e a mensagem de salvação são uma única e a mesma coisa! Isso também nos deve dar o que pensar.
A missão do servo que nos é apresentada nos vv.5s, não foi concluída em Jesus Cristo. O texto de Is 49.1ss espera pelo final dos tempos, espera pela revelação definitiva da salvação, espera, pois, por aquele que há de vir, espera pela segunda vinda, rompendo assim um mero relato sinótico. E é justamente por este fato que uma mera identificação da história sinótica com o nosso texto não faria justiça a Is 49.1ss.
Um problema para a prédica é sem dúvida a questão da restauração das tribos de Israel. Aqui ter-se-ia, sem dúvida, que entrar na problemática abordada em Rm 9-11. Mas, com isso a prédica ficaria sobrecarregada. Por isso é aconselhável deixar-se este problema de lado.
Mas o texto não fala apenas do Ebed como aquele que há de vir. Ele também aponta exemplarmente para a situação da comunidade, do ouvinte que foi chama¬do por Deus desde o seu batismo, ao qual foi confiada a sua palavra e que, segui das vezes , se vê em situação de fracasso, todavia, apesar destes fracas¬sos, ainda é convidado pelo texto a se ver seguro nas mãos de Deus.
2. Olhemos agora para a pregação, a pregação que o texto faz a mim como pregador.
Aqui alguém anuncia, e ninguém ouve! Quem teria ouvido este pregador na situação de Israel? E, hoje, quando eu prego: quem me ouve?
Aqui se oferece luz e salvação. Há tanta gente oferecendo luz e salvação, na política, na publicidade. Quem está por trás destas ofertas de luz e de salvação? O texto me fala de alguém que está por trás desta oferta de luz e salvação. O texto me diz que é Deus quem faz esta oferta. Mas, como é que ele faz esta oferta? Entenda-se este Deus! Ele me oferece luz e salvação através de fracasso e desânimo! Entenda-se este Deus! Tu és meu servo, no qual eu quero me glorificar! Como é este servo? Ele diz de si mesmo: Em vão tenho me esforçado, para nada e inutilmente gastei minha força.
Deus se revela na fraqueza. Este Deus, que se revela aos antigos, na fraqueza, é o Deus que se revelou a nós na fraqueza da manjedoura e na fraqueza da cruz. Entenda-se este Deus. Deus se revelou aos antigos através de um povo fraco e insignificante, Israel; Deus se revela a ti e a mim através da fraqueza de Jesus de Nazaré. Ele foge àquilo que procuro fazer dele. Dou-lhe os predicados de onipotente, onipresente, onisciente, eterno… E como é que ele se me apresenta? Como impotente, sujo nas estradas da Palestina, fraco, morrendo… Ele faz uso da fraqueza para mostrar seu poder. E quem é o fraco através do qual ele se revela? Este fraco é admirável. Ele se sabe guardado nas mãos de Deus. Ele diz de si mesmo que Deus o escolheu desde o ventre de sua mãe. Ele se sabe instrumento nas mãos de Deus, sabe-se proclamador da mensagem de Deus. Ele se sabe totalmente pertencente a Deus e, mesmo de¬sesperando diante da missão a ele confiada, ele continua a se saber guardado nas mãos de Deus.
Aqui ele difere de mim, que tantas vezes tenho dúvida. Houve alguns seguidores que puderam dizer de si que foram escolhidos por Deus; Paulo é um deles (Rm 1.1). Mas talvez nenhum tenha se entregado de tal maneira a ele como Cristo. Ali houve entrega total: não como eu quero, mas como tu queres …
O servo que anunciou, que fracassou, mas que mesmo assim se entregou totalmente às mãos de Deus, é feito por Deus mesmo mensagem. Ele passa a ser luz dos povos, ele passa a ser palavra. E o verbo se fez carne… Essa entrega total fala a mim. Ele o fez luz para mim, para que eu ficasse sabendo de sua salvação. Mas, acho que a coisa vai mais longe ainda, pois o texto me chama: ele pede a mim entrega total às mãos do Senhor, que através do batismo me chamou, ele pede que eu também seja luz. Vós sois a luz do mundo. O texto me convida a que também eu leve o mensageiro feito mensagem ao mundo para que todos ouçam a mensagem da salvação.
A missão do servo não chegou ao fim, eu espero pelo dia em que ela será concluída: Maranatha!
3. Esta pregação que o texto faz a mim como pregador, ele também quer fazer à comunidade. Esta comunidade confessa a Cristo como o seu Senhor. Ele é o Senhor que veio e que há de vir. Por meio dele ela ficou conhecendo o Pai, meio dela o mundo deve ficar conhecendo-o. Ela é chamada a uma atividade missionária. Este foi um chamado à atividade missionária de Israel 23, ele é um chamado à comunidade missionária de hoje.
V – Notas:
1a. É interpolação cf. v.Rad, Theol II, 262; Westermann, 196s; Homburg, l74. Ver, porém, também Breit,77.
1. Incluir loh com Westermann, 167.
2. lo’ tem que ser transformado com BH em lov.
3. vayo'mär deve ser riscado.
4. Cf. quanto ao que segue Homburg, 173ss, e v. Rad,260-270
5. v.Rad II, 268.
6. Quanto à interpretação tipológica no NT, cf. L. Goppelt, Typos. Die typologische Deutung des Alten Testaments im Neuen, reimpr. Darmstadt, 1969.
7. p.167
8. Westermann, 167.
9. Estas três fases estão bem caracterizadas pelo wãw-adversativum que encontramos nos versos 4 e 5. Westermann, 167.
10. Quer me parecer que Herbert Breit destacou muito bem este aspecto da abscondidade do Ebed-Javé em Is 49.2. Breit formula inclusive a hipótese de que a concepção da abscondidade do Messias no NT tenha suas raízes em Is 49.2. Cf. Breit, 76.
11 Cf. quanto ao todo Breit, 76, e Westermann,168.
12 Cf. Homburg, 170s
13. Cf. Westermann,169
14. Cf. nota 1a
15. Breit, 78
16. Cf. v. Rad II, 262.
17. Westermann, 170.
18 Breit, 79.
19. Quanto à estrutura desta palavra, cf. Westermann, 170s.
20.Cf. o que foi dito a respeito dos vv.1-2.
21. v.Rad II, 262.
22. Breit, 79.
23. Hans Lietzmann, Geschichte der Alten Kirche, 4a./5a. edição, 1975, 76s.
VI – Bibliografia:
– BREIT, Herbert. Isaías 49.1-6. In: Herbert Breit/Claus Westermann, eds. Calwer Predigthilfen Vol.2. Série 4. Stuttgart, 1963, 72-85.
– HOMBURG, Klaus. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo, 1975.
– v. RAD, Gerhard. Theologie des Alten Testaments (Vol . II: Die Theologie der Prophetischen Überlieferungen Israels). 4a.ed., München, 1965.
– WESTERMANN. Claus. Das Buch Jesaja, Kapitel 40-66. ATD 19, Göttingen,1966.