Prédica: Josué 24.1-2a,13-25
Autor: Gernote Kirinus
Data Litúrgica: 9º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 23/07/1978
Proclamar Libertação – Volume: III
l – Considerações exegéticas
a) O texto faz parte da obra historiográfica do Deuteronomista. Ainda que o capítulo 24 do livro de Josué apareça um tanto isolado, é irrefutável a sua origem deuteronomística. Isso nos coloca num terreno teológico já conhecido, o que facilita a exegese.
Se examinarmos toda a obra historiográfica do Deuteronomista, veremos que o autor colecionou, compilou e redigiu uma série de tradições sob um determinado ponto de vista teológico que é: dar culto a um só Deus em um santuário central. A expressão máxima é a unidade do povo em torno de Javé. E essa unidade cultual pregada pelo Deuteronomista tem importância capital para a unidade política de Israel. Pois subordinar a história em si, e todo o período da história da ocupação da terra, à ideia fundamental da liderança de um só Deus, através da qual ele realiza suas promissões ao povo de Israel, como fica claro em nosso texto, cria bases histórico-cultuais para a unidade política. Diga-se de passagem que a anfictionia em nosso texto é a mais antiga forma de comunhão que denominou a si mesma de Israel, embora a unidade política do povo seja desenvolvimento posterior.
Somos levados a crer que o Deuteronomista se serviu de uma peça literária pertencente a um culto a Javé, com função de confissão de fé, e a ampliou com o intuito de explicar o passo histórico seguinte que vai da associação inconsistente de tribos até a unidade político-cultual de Israel. Nesse sentido, estamos livres do pensamento de que o Deuteronomista tenha intencionado criar apenas uma unidade política, a exemplo do teísmo pregado em nossas escolas nas aulas de moral e cívica. Assim fica claro que, segundo o Deuteronomista, a própria unidade política é criada por Deus, é consequência da fé e não a intenção básica da fé. Em outras palavras, trata-se em primeiro lugar de um só Deus e não de um só povo. Deus reúne o povo e mostra o caminho.
É exatamente o contrário do que fez Constantino com a igreja primitiva. Constantino buscou a unidade cultual dos primeiros cristãos, não para colocá-los sob a liderança de Deus, senão sob sua liderança política.
Esta última interpretação do pensamento teológico do Deuteronomista aparece bem clara no nosso texto. Observe-se que o relato do congresso de Siquém, redigido pelo Deuteronomista, é colocado sob a tensão dialética: nós queremos servir… e não podereis servir… (vv.18 e 19). Essa tensão dialética exclui a possibilidade de o homem fazer simplesmente uma escolha entre vários deuses para lograr um determinado objetivo seu (a unidade política por exemplo). O convite para que o povo faça uma opção é determinado por uma opção anterior feita por Deus na eleição deste povo, como mostra a própria história de Israel. Portanto, a pergunta feita ao povo não é: a qual Deus quereis servir?, senão: quereis servir ao vosso Deus , que vos tirou do Egito, que vos conduziu através do deserto, que vos deu esta terra, etc.? A resposta a essa pergunta é condicionada pela vontade de Deus e não pela vontade humana; pois não podereis servir… significa que o ato de servir também é dom de Deus. Diante dessa dialética torna-se impossível pretender que o autor tenha querido criar uma unidade política a partir da fé em um só Deus, utilizando-se de Deus e da fé para lograr um objetivo político. Muito pelo contrário, é Deus quem cria a unidade política em Israel para colocá-la sob sua vontade e plano promissor. Ao povo resta apenas a obediência, sem muita escolha, para continuar sendo o povo de Deus.
Para a interpretação exegética de nosso texto é importante observar que o material usado no capítulo 24 do livro de Josué é bastante antigo e, do ponto de vista literário, um tanto isolado dentro do conjunto do livro todo. Por um lado, parece-se com um credo histórico, à semelhança de Dt 26,5-9; por outro, lembra a celebração do pacto no Sinai, incluindo na presente aliança as tribos que não participaram do pacto do Sinai.
Podemos, de todo modo, considerar como válidas as duas possibilidades literárias, o que vem enriquecer teologicamente o texto. Não resta dúvida, no entanto, de que esse material foi trabalhado pelo Deuteronomista, o que transparece claramente nos versículos 19-24. Principalmente os versículos 19 e 20 refletem a situação de exílio, da época do Deuteronomista. Isso não significa que devamos excluí-los do texto, pois sua importância teológica já foi assinalada no parágrafo anterior. Fica, portanto, registrado aqui como simples observação a dificuldade de se identificar historicamente as origens da tradição do congresso de Siquém, uma tarefa bastante melindrosa para os historiadores. Mas para o pregador, a questão serve apenas de pano de fundo para o que ira falar.
b) A estrutura e o conteúdo teológicos das diversas partes.
Se formos dividir o texto segundo o seu conteúdo, teremos quatro temas centrais aqui tratados: 1) Fundamento histórico do credo, proferido pelo próprio Deus; 2) Relevância política do ato de confissão; 3) A renovação do pacto; 4) Obediência sem alternativa. ~
1) Fundamento histórico do credo, vv . 1-13.
A origem do povo é pagã como mostra o v.2. Portanto, isso significa que o fato de eles crerem em Javé foi determinação do próprio Javé. É Javé quem elege Abraão e todos seus descendentes, e não foi o povo de Israel que resolveu escolher a Javé como o Deus a quem servir. Se não fosse Javé, eles seguiriam sendo pagãos até hoje. Essa predileção de Deus para com Israel se provou através de toda sua história. Aliás, a história de Israel não existiria sem Javé. Disso o povo é sabedor. Javé poderia tê-los abandonado na mão de outros deuses, mas ele não quis ouvir a Balaão (v.10). Desde os tempos de Abraão a tendência dos israelitas é de se apegar aos deuses locais, habituados que estão aos fenômenos locais onde vivem. Porém, Javé transcende a esses deuses locais. A tendência do ser humano é de se acomodar. Ele busca satisfazer as suas necessidades mais imediatas, e para isso os deuses locais são suficientes. Mas é Deus. quem não deixa o homem se acomodar. Deus arrasta seu povo para dentro de sua infinitude – eternidade.
Seu poder se estende sobre toda a terra e céus, além dos limites de tempo e espaço, assim como está demonstrado historicamente na vocação de Abraão, cuja atuação se estende através da Mesopotâmia, do Egito até a terra de Canaã, subjugando aos outros deuses que se opunham ao plano que ele levava a cabo com o povo de Israel. Javé jamais se prende a um determinado lugar, como os deuses pagãos, e para os seus eleitos também não haverá estabilidade, senão um constante caminhar em direção a metas por ele determinadas. Sempre que o povo tende a se apegar a um deus local, isso importa em querer parar o processo evolutivo previsto por Deus. Este é o grande perigo: querer estacionar, acomodar-se sob a proteção de deuses locais, deixar de fazer história, ou, o que é pior, retroceder na história (v.15). Isso, porém, seria negar a própria fé, negar a história enunciada nesta primeira parte (vv.1-13).
2) Relevância política do ato de confissão, vv.14-15.
O chamado à unidade na mesma fé ou na mesma confissão é feito no v.l4 e está fundamentado no depoimento histórico anterior. A resposta a esse chamado está no escopo confessional do v. 15: Eu e minha casa serviremos ao Senhor. A exigência fundamental é abandonar os outros deuses. Esta exigência tem relevância política no sentido de unir o povo em torno de Javé com a finalidade de dar continuidade histórica ao plano de Deus, para com seu povo. Caso o povo quiser parar por aí mesmo, e se der por satisfeito com o progresso alcançado, estará fadado ao regresso histórico, como foi no tempo de seus antepassados. Para dar continuidade à história, Deus propõe uma nova aliança ou a renovação da aliança. O povo não pode parar; é preciso continuar aquilo que Deus iniciou tão extraordinariamente. Este é o compromisso político do povo para com Deus: unir-se em torno da mesma fé e abandonar os deuses que levam ao estancamento, ao esgotamento histórico.
3) A renovação do pacto, a partir do v. 16.
O povo se convence de seu erro em querer servir a outros deuses, e da onipresença de Deus em sua história e vida. Professa o desejo de querer servir a este Deus, confessando-lhe os seus feitos históricos (vv.17 e 18). Inicia-se aí a forma litúrgica da renovação do pacto que engloba um pensamento teológico de muita relevância. Passa remos a analisar este aspecto na parte quatro, a seguir.
4.) Obediência sem alternativa.
A renovação da aliança que Deus faz agora com as doze tribos de Israel se dá na tensão dialética, já anteriormente mencionada, do querer servir… e do não podereis servir.,.. Não poder cumprir a aliança coloca o povo em total dependência de Deus. Por outro lado, a obediência é a única alternativa para permanecer como povo do pacto. O contrário seria retroceder na história. Fidelidade e serviço, direito e obediência, são as exigências básicas do pacto. É assim que Deus preserva para si a soberania no pacto. Para o povo não é possível transformar a Deus em objeto manipulado segundo os seus próprios desejos. Servir a Deus é um dom que só Deus mesmo pode dar, pois o homem em si nem pode servir a Deus conforme os ditames de seus próprios princípios e aspirações. Para isso Deus se torna inacessível, transcendente às categorias espaciais e temporais do homem. A fidelidade de Deus na aliança com o povo, os seus princípios de justiça, colocam o povo diante de um compromisso sério. Não é possível dizer: nós serviremos ao Senhor e depois voltar-lhe-emos as costas e seguiremos a outros deuses. O povo torna-se assim testemunha contra si mesmo, caso falhar na obediência (v.22). Essas advertências podem ser interpretadas como referências indiretas e explicativas ã situação do povo no exílio, no tempo do Deuteronomista. Em toda nossa perícope transparece claramente a teologia deuteronomística de um só Deus como Senhor da história de um povo unido em torno da mesma fé.
A ação histórica deste povo é entendida como reação ao agir de Deus que precede os fatos. Enfim, um povo unido e liderado por Deus em sua história. Trata-se de uma fé histórica que se sustenta no agir de Deus no passado e em suas promissões para o futuro. E uma contribuição especial da teologia deuteronomística no nosso texto é a confissão de servir a Deus no processo histórico irreversível.
Escopo:
Eu e minha casa serviremos ao Senhor com quem fizemos alianças desde nossa origem até a consumação dos séculos.
II – Meditação
Se a nós hoje fosse feita a mesma pergunta e exigência: a quem quereis servir, aos deuses ou ao Deus que se vos revelou como Salvador em Jesus Cristo?, muitos talvez se mostrariam surpresos. Pois o homem moderno, na era atômica, já superou esta cosmovisão mitológica do mundo. Hoje, falar em deuses seria expor-se ao ridículo. Hoje, as posições se colocam em termos de ateísmo ou, no mínimo, de um teísmo filosófico diante da fé cristã. É evidente que me refiro a civilização ocidental. Sem embargo, por detrás do ateísmo ou teísmo conjugam-se forças ideológicas muito mais operantes e poderosas do que os deuses inofensivos dos tempos das mitologias. Estamos por demais empenhados em endeusar o nosso progresso econômico e tecnológico, os nossos avanços científicos, a sexualidade, etc. Embora nos seja oferecida a liberdade diante do uso das coisas que a técnica e o mundo moderno nos proporcionam, muitas vezes perdemos a liberdade diante das coisas, por abuso. Assim como Cristo libertou o homem da lei judaica, e colocou a lei em função da liberdade do homem (o sábado foi feito para o homem, e não o homem em função do sábado), assim ele também quer libertar-nos diante da técnica, do progresso, das ciências, colocando-os estritamente em função do homem e da vida. Mas o homem parece estar a serviço do progresso, da técnica e da ciência, quando deveria ser o contrário. Isto ocorre exatamente onde o homem se afasta de Deus para servir aos outros deuses de nosso mundo. Nós endeusamos a vida moderna, a técnica, o progresso, a sexualidade, a comodidade, a ciência, enfim, endeusamos a nós mesmos. E assim nós servimos a deuses criados por nós mesmos e caímos facilmente na desilusão, no desencanto e finalmente no fatalismo da resignação. A nossa decisão manifesta em Eu e minha casa serviremos ao Senhor liberta-nos de toda desilusão, de todo pessimismo ou fatalismo, e ficamos livres, livres para a esperança cristã.
Mesmo quando nos confessamos cristãos a serviço do único Deus da história, deve ser considerada a advertência do nosso texto: não podereis servir a Deus… Os deuses de nosso mundo também podem ser venerados sob o nome de Javé. Isso ocorre frequentemente quando procuramos, como cristãos, adequar Deus a nossos próprios desejos e vontades. Este Deus inspirado no nosso modo de vida capitalista, que vem ao encontro de nossa vontade de ficar sempre por cima, que beneficamente diz sim e amém a tudo que fazemos ou que planejamos sem antes perguntarmo-nos sobre a sua vontade, que nunca nos tira da comodidade inquestionável, mas nos permite ficar onde estamos, é um deus que nós criamos segundo nossa imagem e semelhança. Essa teologia antibíblica foi criticada por Feuerbach quando afirmou que o mistério da teolo-gia está na antropologia, e também por Marx em suas críticas à religião e à igreja: A vossa religião é uma ideologia, que serviu através da história para sustentar o egoísmo de certas classes sociais. Não temos como fugir à verdade dessa crítica feita por esses ateístas. Ela atinge profundamente a nossa orgulhosa presunção de considerarmo-nos servidores de um só Deus, quando na verdade justificamos com nossa vida e costumes religiosos as infames ditaduras. E os déspotas usam a nossa religião para fazer seus escravos cantarem hinos a liberdade.
Não devemos nos esquecer da advertência de Josué: não podereis servir a Deus… Ou mesmo da advertência feita por Cristo: Não podereis servir a dois senhores… A Igreja, portanto, deveria estar disposta a revisar constantemente o status quo de sua religiosidade. Deve ríamos, como Igreja, estar preparados para a revisão constante de nossos valores religiosos e dispostos a renunciar às crenças mais enraizadas, quando a pergunta de Josué vem sobre nós: A qual Deus quereis servir?. ~
Reforma, portanto, é algo mais que um simples acontecimento histórico, venerado por nós, luteranos. Ela deve ser uma constante a partir do pensamento do próprio Reformador quando diz: Ecclesia semper reformanda est, sob pena de ser envolvida pelos deuses deste mundo caso se negue a evoluir com Deus.
Decidi agora a que Deus quereis seguir. Somos convidados a optar hoje. Josué deixa o povo diante de uma opção. Não por se tratar de uma simples escolha com resultado indiferente, mas por ser uma opção condicionada pela opção já feita por Deus. Não é o povo que vai eleger para si um Deus, entre muitos outros, mas foi Deus quem elegeu o povo. Do ponto de vista democrático chega a ser uma ironia; não é o povo quem elege seu Deus, mas Deus é quem elege seu povo. Se este povo não serve, Deus o destitui e elege outro povo. Porém, essa ironia reforça a ideia de que Deus não corresponde a um ser imaginário inventado pela mente humana. Para que Deus seja realmente Deus é necessário que assim seja, do contrário teríamos mais uma vez um deus submetido à vontade de um povo, perdendo as características divinas. Portanto, não se pergunta aqui: qual é o deus que mais vos agrada?, mas: quereis servirão Deus que vos escolheu para ser seu povo santo, e que tem um plano para com toda a humanidade através de vós? Confirmar a eleição feita por Deus é a única alternativa de vida para o povo. O contrário seria a decadência histórica e a subjugação do povo a forças contrárias a ele mesmo. Aceitar a escolha que Deus faz é aceitar o caminhar com ele, rumo ao infinito, à eternidade.
A nós só é permitido optar porque Deus optou por nós primeiro. E, mesmo assim, não podereis servir a Deus”. Deus é por demais zeloso e fiel para que possais imitá-lo. Se nos fosse possível responder á mesma altura à fidelidade de Deus, então nos elevaríamos à mesma categoria de Deus. Reflete-se aqui a mesma dialética que se expressa no reinado de Deus que permanece na tensão do já agora – ainda não, ou na exigência do sermão do monte: sede perfeitos, mas nunca vos creiais perfeitos, ainda no fato de sermos declarados por Deus como santos embora pecadores. A opção a ser feita descansa sobre a opção feita por Deus, de nos acolher como seu povo. Só podemos servir a Deus a partir da escolha que ele faz em direção de nós. Essa escolha se concretizou de forma definitiva em Jesus Cristo. Só mediante a libertação que Cristo nos oferece poderemos abandonar os deuses de nossos dias e nos colocar inteiramente a serviço de Deus. A partir de Cristo, Deus renova sua escolha, reforça sua predileção agora para com toda a humanidade. A partir de Cristo vislumbram-se novos horizontes, uma nova esperança de vida para todos os homens. Somente em Cristo podemos confessar com o povo de Israel: Eu e minha casa serviremos ao Senhor!
Agora, sim, posso acreditar mais uma vez que venceremos a prepotência dos mais fortes que criam as vítimas de guerra, de torturas, da fome, do analfabetismo, pois Deus já colocou o machado às raízes desses males. Cristo já operou o milagre da vida com sua ressurreição. Os outros deuses que querem convencer o povo de que tudo é imutável, de que injustiças sempre houve, que semeiam pessimismo e desesperança em meio ao povo, já não nos importam: Eu e minha casa serviremos ao Senhor, que fará justiça aos milhares de injustiçados, que alimentará a milhares de famintos, que arrancará o manto da morte que envolve o nosso mundo e inaugurará o mundo da vida com a ressurreição de todos os mortos, assim como ressuscitou Cristo, assim como libertou o povo de Israel da terra da servidão no Egito, assim como denunciou as injustiças através de seus profetas…..assim como protegeu a sua igreja diante das mais cruéis perseguições, assim como deu forças para Lutero enfrentar o poder do papa e seus aliados, assim como dá forças e ânimo a todos os que são presos e torturados em nosso mundo por causa da mesma opção: Eu e minha casa serviremos ao Senhor. Corremos o risco de optar contra tudo e todos, de levantar testemunho contra nós mesmos sob acusação de sermos subversivos, de nos tornarmos infiéis diante de Deus ao optarmos por algo que escapa de nossa condição humana; mesmo assim, sentimos Deus mais perto de nós quando dizemos: Eu e minha casa serviremos ao Senhor'.