Prédica: Mateus 21.1-9
Autor: Hermann Brandt
Data Litúrgica: 1º. Domingo de Advento
Data da Pregação: 03/12/1978
Proclamar Libertação – Volume: III
Tema: Advento
I – Exegese
Na estrutura do evangelho de Mateus, Mt 21.1-9 constitui o início do relato da paixão. Segundo a ordem da Igreja Antiga, o relato da entrada de Jesus em Jerusalém está previsto como Evangelho para dois domingos do ano eclesiástico: para o 1o. domingo de advento e para o domingo de ramos. Com isto se diz, de saída, algo muito importante: a entrada triunfal de Jesus leva a sua paixão, e a alegria do 1o. domingo de advento não deve reprimir a paixão. É justamente isso o que requer o contexto no qual se encontra nossa perícope. (O hino de advento que melhor exprime tanto a alegria causada pela vinda quanto sua vinda para a paixão é Um barco carregado – Hinário da IECLB, no.5, todas as estrofes.)
Na exegese de detalhes faz-se necessária uma comparação com os relatos correspondentes em Mc (11,1-11), Lc (19,28-40) e Jo (12,12-19). Destacamos a seguir apenas algumas diferenças em relação a Mc .
Logo no v.1 Mt corrige as indicações geográficas de Mc (11.1): a sequência correta, olhando de Jerusalém para o leste é: Jerusalém, Betânia, Betfagé, Monte das Oliveiras. Betânia – erradamente localizada por Mc, omitida por Mt – está situada entre Jerusalém e Betfagé.
Os vv.2 e 3 descrevem a incumbência dada por Jesus a dois discípulos. Enquanto que em Mc se trata de apenas um jumento, no qual ninguém ainda montou, Mt fala de uma jumenta e de seu jumentinho. Enquanto que em Mc Jesus pretende mandar o jumento de volta depois de usá-lo, Mt deixa essa questão fora. Pressupondo que, atendendo as palavras dos discípulos, o proprietário colocará o jumento imediatamente à disposição, Mt acentua mais fortemente do que Mc o caráter senhorial da ordem de Jesus: tudo está a serviço do Rei que vem entrando. A menção de dois jumentos em Mt é fundamentada na citação de reflexão típica de Mt: ele interpreta a ocorrência como cumprimento de profecias veterotestamentárias.
Essa fundamentação é o conteúdo dos vv. 4 e 5. A introdução característica (Isto, porém, aconteceu para que se cumprisse o que foi dito…) segue uma citação na qual Is 62.11 e Zc 9.9 são combinados. A indicação do cumprimento de profecia e expectativa veterotestamentárias era tão importante para Mt e ele tomou o texto de Zc tão literalmente que, agora, tem-se a impressão de que Jesus esta montando dois jumentos ao mesmo tempo. No entanto, já Calvino em sua interpretação apontou com razão para o fato de que Zc segue a técnica do modo de expressão hebraico que consiste em exprimir uma coisa duplamente (parallelismus membrorum,cf. p. ex. Sl 2.1-5). O e entre a jumenta e seu jumentinho não se encontra no texto hebraico, também não no Almeida, mas sim na Septuaginta, a tradução grega do AT, usada por Mt. Assim, portanto, se resolve a dificuldade lógica da indicação feita no v.7.
Mais importante é que, por meio da citação, Mt designa o rei que vem entrando como PRAYS: ele vem humilde e manso. O grande peso dado a isto por Mt evidencia-se na omissão dos adjetivos justo e triunfante (Alm.: justo e salvador) encontrados em Zc. Com isto Mt reforça mais ainda o que Zc tinha dito sobre a diferença existente entre este rei e todos os demais reis: Ele – o rei pobre – destrói os carros (de guerra) de Efraim e os cavalos (de guerra) de Jerusalém. Os arcos de guerra serão abolidos, e ele anuncia paz (SHALOM) aos povos (Zc 9.10). Um rei verdadeiro se aproximaria montado num cavalo de batalha. Porém é justamente esse rei montado num jumento que, conforme Zacarias, destruirá todo o material de guerra em toda a terra. (Arco de guerra é, em Zc, pars pro toto, isto é, refere-se à guerra com tudo o que a acompanha e a ela pertence.)
Essa figura do rei que vem chegando é introduzida no relato de Mt através da inserção citação, A humildade e mansidão desse rei retoma o que Mt já havia acentuado antes em 5.5 e 11.29.
Mt omite Mc 11.4-6a. Nesses versículos, Mc descreve o maravilhoso cumprimento de tudo o que Jesus havia predito. Em lugar disso, no v.6 Mt constata de forma sucinta a obediência dos discípulos frente à ordem de Jesus. Assim, tanto para o v.6 como para o v.7, com sua dificuldade lógica acima mencionada, vale o seguinte: para Mt, o cumprimento das profecias veterotestamentárias é mais importante do que concreticidade e possibilidade do acontecimento.
Em contraposição a Mc 11.8, onde apenas se fala de muitos, Mt menciona no v.8 a presença de OCHLOI – multidões. Isto quer dizer que Mt reforçou o caráter triunfal da entrada de Jesus. Cai na vista que essas multidões não sejam identifica das com os habitantes de Jerusalém. Estamos aqui muito próximos do cerne histórico do relato. G. Brakemeier supõe que os que prestam homenagem a Jesus sejam romeiros de Galileia que conheciam Jesus e que estavam peregrinando a Jerusalém afim de lá passar a festa da páscoa, pois, enquanto mais tarde os habitantes de Jerusalém indagam: quem é este? (Mt 21.10s), as multidões o qualificam de o profeta Jesus, de Nazaré da Galileia (v. 11), sobretudo, porém, de Filho de Davi.
A aclamação reproduzida no v.9 faz parte do relato de todos os quatro evangelistas. Trata-se se de uma citação do Sl 118, que teve efeitos muito grandes não só para a cristandade primitiva, mas também na história posterior da igreja. Sl 118.25s é, originalmente, um pedido: HOSIANA = queiras ajudar. Não se pode decidir com segurança, mas é muito provável que, em Mt, esse grito não mais seja um autêntico grito de oração (como no Sl 118), mas tenha se tornado uma fórmula fixa de aclamação (como em nossas liturgias de santa ceia).
Mt incluiu ao Filho de Davi nessa citação do Sl 118. Este acréscimo, tão importante e característico para Mt, não é apresentado pelos outros evangelistas. (Neste ponto cada evangelista oferece algo de próprio!) Através da inclusão de Filho de Davi esse Jesus que vem entrando é diretamente aclamado como o messias. As massas reconhecem em Jesus o messias esperado e o proclamam como tal. Ele é o representante de Deus: vem em nome do Senhor. Por isso lhe cabe não apenas o hosana na terra, mas igualmente o hosana nas maiores alturas. Ele é festejado e cercado pela multidão; todas as suas esperanças estão dirigidas a ele.
Eu gostaria de destacar os seguintes pontos em nossa perícope:
1. O advento desse rei ocorre no contexto das expectativas messiânicas das massas e das respectivas profecias veterotestamentárias.
2. A perícope não se encontra apenas formalmente no início do relato da paixão. Mt acentuou, também em termos de conteúdo, a mansidão e humildade desse rei.
3. O júbilo em torno da chegada do esperado não pode ocultar o fato de que esse rei está a caminho de sua paixão e de sua morte (e apenas assim a caminho de seu senhorio no céu e na terra – Mt 28,18). O mesmo Jesus agora festejado pelo povo será, dentro em breve, abandonado até mesmo por seus discípulos. Assim a sombra da cruz recai sobre o entusiasmo da entrada. Jesus realiza as esperanças nele depositadas, porém de modo tal que, ao mesmo tempo, ele é o fim dessas esperanças.
4. A pergunta atual: como hei de receber-te hoje? não é diretamente respondida pelo texto. Quanto a isto, veja abaixo a sugestão de prédica.
II – Três adventos ou um advento triplo?
Uma prédica sempre tem que deixar fora. Porém isto deveria ser feito conscientemente. Por isso eu gostaria de indicar que nosso texto e nosso tema – Advento – contêm três aspectos. Seja dito logo de saída que, em última análise, esses três aspectos não podem ser separados um do outro. Por outro lado, nenhum pregador pode evitar opções e colocação de acentos. Três tipos de prédica foram e são possíveis:
1. A interpretação histórica. Neste caso o interesse se dirige aos fatos históricos de nosso relato. Também o interesse pelo cumprimento de profecias veterotestamentárias pertence a essa interpretação histórica. Neste sentido, advento significa que a gente por assim dizer acompanha Jesus em seu caminho para Jerusalém e, como naquela época, corta ramos das arvores; a gente se incorpora às multidões e se apropria de suas expectativas. Assim, por exemplo, canta-se juntamente com P. Gerhardt (hino 6,2): Recebe-te com palmas a santa multidão, também as nossas almas louvor e graças dão. Dentro dessa perspectiva histórica, o advento sofreu praticamente sempre um maior estreitamento no sentido do nascimento de Cristo. A relação neotestamentária entre nascimento (encarnação) e paixão é perdida. Com isso surgem certas formas sentimentais de nossa piedade de Natal e Advento. Apenas um exemplo plástico: Jorqe Amado, Gabriela, Cravo e Canela, o capítulo Das Irmãs dos Reis e do seu Presépio, São Paulo, Martins Editora, 1973, pp. 73-80 – recomenda-se que todo pregador o (re) leia para o domingo de advento, e para a época de Natal .
2. A vinda do Senhor também tem sempre ainda uma perspectiva escatológica. Na Didaquê, a mais antiga ordem da igreja (excetuando-se o NT), do início do séc. II, está escrito (10.6): “Venha a graça (=Cristo) e passe este mundo. Hosana ao Filho de Davi. Maranatha. Amém. O advento histórico de Cristo é, portanto, o protótipo para a gloriosa PAROUSIA de Cristo para o juízo no fim dos tempos. Essa referência escatológica ao Bendito o que vem em nome do Senhor já está contida em Mt, como vemos a partir da parte final das palavras de instituição em Mt 23.39. O advento histórico de Jesus é, assim, prefiguração do advento glorioso de Cristo para redenção e para juízo. Parece que também este traço escatológico desapareceu cada vez mais de nossa piedade de advento. Na teologia, na maior parte dos casos, a escatologia é relegada para o fim das dogmáticas. Apesar disso, o sentido escatológico do advento está contido em alguns de nossos hinos: cf. sobretudo o hino 8 (Mui breve, em Sua glória, o grande rei virá, em júbilo e vitória a dor transformará) e 236,5 (juízo).
3. A referência a Mt 23.39, a conexão de nosso texto de prédica com a santa ceia, aponta, por fim, a compreensão cultual-sacramental do advento de Cristo. Assim como a perspectiva escatológica do advento se independentizou e seja talvez considerada ao final do ano eclesiástico (Fina-dos), de igual modo também a relação entre o 1º. domingo de advento e a santa ceia foi grandemente relegada ao esquecimento. Nós cantamos a vinda de Cristo em seu sacramento em cada celebração de santa ceia, ao entoarmos a antiga liturgia de santa ceia: Bendito o que vem… Porém a vinda, o advento no sentido de nossa perícope, normalmente não é objeto de reflexão. A tal ponto chegou a separação de advento e santa ceia, pelo menos no protestantismo.
Inversamente, é raro que celebremos o 1º. domingo de advento tendo conscientemente em vista a vinda de Cristo na santa ceia, embora conforme afirmamos, nosso texto de advento cite a liturgia de santa ceia. (Talvez essa relação pudesse ser tornada novamente consciente através de um culto de santa ceia no 1º. domingo de advento?!) Tanto quanto eu sei, o único hino de advento que menciona a relação entre advento e santa ceia é 4,2: Alerta, vós aflitos, bem perto o Rei está… Em toda parte estão Seus dons consoladores: na voz dos pregadores, Batismo e Comunhão. Esta interpretação está bem dentro da concepção de Lutero, que fez a seguinte afirmação acerca da vinda de Cristo hoje, em uma de suas prédicas sobre nosso texto: Também hoje Cristo vem em prédica, batismo, sacramento ( = santa ceia)… Este é seu advento permanente.
III – Pré-reflexões para uma prédica de advento
Na exegese, falamos das expectativas dirigidas ao rei que vem chegando. Isto quer dizer que a prédica deverá expressar concretamente as expectativas dos membros da comunidade. Quais são as esperanças de nosso povo (incluindo a nós mesmos!)? Mais abaixo dou um exemplo popular para as esperanças gerais. Talvez hoje em dia elas sejam muito mais fortes do que nossas esperanças especificamente religiosas – ou serão apenas uma expressão não-religiosa das mesmas? Em todo o caso, quem vai à igreja no 1º. domingo de advento dificilmente o faz por causa de uma expectativa ardente pela vinda do messias, mas na alegria antecipada de ver uma igreja decorada com o verde dos pinheiros, com a coroa de advento e as 4 velas, na expectativa de cantar mais uma vez os antigos e belos hinos e de ouvir mais uma vez os textos de advento… Isto é, as expectativas específicas de advento de nossos membros de comunidade serão determinadas sobretudo pela tradição eclesiástica, de acordo com a maneira pela qual o 1º. domingo de advento foi comemorado desde sempre. Tendo em vista as 3 perspectivas acima mencionadas, provávelmente nossa tradição eclesiástica de advento é determinada principalmente pela primeira perspectiva, a histórica.
No entanto, tão velhos assim nossos costumes de advento também não são. O costume de 4 domingos fixos de advento pode ser comprovado já a partir da metade do séc. VI e foi confirmado como ordem eclesiástica desde o séc. XI. A época de advento foi então praticada como tempo de jejum, com base na época de paixão (!). Mas a época de advento como prospectiva para (ou até antecipação de) o Natal com simbolismo de velas e coroa de advento – este costume é muito mais recente. A estrela de advento provém da Comunidade dos Irmãos Moravianos, do séc. XVII portanto, e a coroa de advento com as 4 velas só do movimento de juventude por volta da passagem do séc. XIX para o séc. XX.
Contudo, mesmo descobrindo o condicionamento histórico da piedade de advento existente em nossas comunidades, nosso juízo sobre ela não pode ser apenas depreciativo. Também Jesus, naquela época, não rejeitou simplesmente as antigas formas de homenagem, as vestes estendidas e os ramos. Como na homenagem de então, também em nossos costumes eclesiásticos de advento está contida a intenção de preparar uma recepção condigna ao rei que vem chegando. Por outro lado, o advento do rei não confirma simplesmente nossas esperanças e nossas práticas piedosas. Em terminologia luterana: o Evangelho (o advento de Cristo) pressupõe a Lei (nossas esperanças e suas formas de expressão), porém o Evangelho não e idêntico à Lei, mas algo de novo, que é , ao mesmo tempo, o fim da Lei (nossas esperanças, nosso recepção). Em que medida? Isto nos leva à pergunta pelo conteúdo da prédica.
IV – Sugestão de prédica
1. “Nada mais além da esperança aflita, bendita, infinita”?
Nosso texto pressupõe a esperança pelo messias. A vinda de Cristo situa-se no contexto da esperança humana. Dum modo geral, é válida a afirmação de que “enquanto há vida, há esperança”. Porém o que esperam os ouvintes especificamente? O pregador deveria expressar essas esperanças, frequentemente humanas, possivelmente nada “religiosas”, de sua comunidade. Talvez elas se assemelhem às esperanças do “Pedro Pedreiro” de Chico Buarque:
PEDRO PEDREIRO
Pedro pedreiro, penseiro/ Esperando o trem/ Manhã, parece, carece/ De esperar também/ Para o bem/ De quem tem bem/ De quem não tem vintém/ Pedro pedreiro fica assim pensando/Assim pensando, o tempo passa/ E a gente vai ficando prá trás/ Esperando, esperando, esperando…/ Esperando o Sol/ Esperando o trem/ Esperando o aumento/ Desde o ano passado para o mês que vem// Pedro pedreiro, penseiro/ Esperando o trem/ Manhã, parece, carece/ De esperar também/ Para o bem/ De quem tem bem/ De quem não tem vintém/ Pedro pedreiro espera o carnaval e a sorte grande num bilhete pela Federal/ Todo mês/ Esperando, esperando, esperando…/' Esperando o Sol/ Esperando o trem/ Esperando o aumento/ Para o mês que vem/ Esperando a festa/ Esperando a sorte/ E a mulher de Pedro/ Esperando um filho/ Pra esperar também// Pedro Pedreiro, penseiro/ Esperando o trem/ Manhã, parece, carece/ De esperar também/ Para o bem/ De quem tem bem/ De quem não tem vintém/ Pedro pedreiro está esperando a morte/ Ou esperando o dia de voltar pró Norte/ Pedro não sabe mas talvez no fundo/ Espere alguma coisa/ Mais linda, que o mundo/Maior do que o mar// Mas pra que sonhar, se dá/ Um desespero de esperar demais/ Pedro pedreiro quer voltar atrás/ Quer ser pedreiro, pobre e nada mais/ Sem ficar/ Esperando, esperando, esperando,../ Esperando o Sol/ Esperando o trem/ Esperando o aumento/ Para o mês que vem/ Esperando um filho /Pra esperar também./ Esperando a festa/ Esperando a sorte/ Esperando a morte/ Esperando o Norte/ Esperando o dia/ De esperar ninguém/ Esperando enfim/ Nada mais além/ Da esperança aflita, bendita, infinita/ Do apito de um trem// Pedro pedreiro, pedreiro esperando/ Pedro pedreiro, pedreiro esperando o trem/ Que já vem, que já vem, que já vem… //
2. O advento de Cristo como escândalo para nossas esperanças.
Contra nossas esperanças não cumpridas afirma-se agora a mensagem do Evangelho: Cristo realmente veio. Com isto evidencia-se de imediato o conflito entre nossas expectativas e o advento de Cristo. Nossas esperanças humanas – também nossas esperanças cristãs são frequentemente muito humanas – dirigem-se para o que não somos e não temos. Em conformidade com isso, fazemos de Deus um ideal contrastante com nossa situação de fato. Assim visualizamos nossa salvação como um estado em que a miséria ou frustração do presente é compensada. Justamente porque todas as nossas esperanças estão implicitamente dirigidas a Deus, nós o responsabilizamos quando elas não se cumprem. Nossas esperanças frustradas voltam-se então contra Deus mesmo: foram esperanças frustradas que levaram a ele, a esperança do mundo, à cruz. Será que esse libertou Israel? Será que ele realizou as esperanças aflitas? Cristo teve que morrer porque não cumpriu as esperanças nele depositadas. Mesmo pertencendo a casa de Davi , ele era tudo menos o poderoso, astuto e genial leão Davi, mas sim um rei montado num jumento mendigado.
Ele não é um rei como os outros reis; não se aproxima a frente de um exército nem num Galaxie, mas montado num jumento que nem é dele, porém emprestado, mendigado. Justamente este contraste foi destacado por Lutero em suas prédicas sobre nosso texto, e uma prédica no Brasil de hoje pode descrever esse traço de nosso Evangelho: as carroças pobres ainda fazem parte do cenário da vida publica. O imperador e seu governo querem ser ricos e suntuosos, mas este rei é pobre, um pobre cavaleiro montado num jumento mendigado. Um jumento como símbolo do status de Deus! Este é o escândalo do advento de Cristo. O profeta, afirma Lutero, apontou de propósito para o advento do rei num jumento, porque ele sabia muito bem que eles se escandalizariam com isto quando ele viesse. Isso quer dizer que manso e humilde é tudo menos expressão de uma fé sentimental; contraria também as concepções populares do Bom Jesus ou do Jesus do Bonfim. É, isto sim, expressão de uma fé que experimentou que Cristo veio realmente, mas de maneira diferente do que esperávamos.
Por isso a fé no advento desse messias que vem em nome do Senhor sempre é também uma fé contra nossas esperanças e uma fé que destrói os ideais que fazemos de Deus em analogia a nossas esperanças. Nesta medida Cristo, como o fim da Lei, é o fim de nossas esperanças.Quem crê em Cristo, tem que reconhecer riqueza sob pobreza, honra sob ignomínia, alegria sob aflição, vida sob a morte (Lutero). O advento de Cristo não pode ser separado de sua cruz. Tão profundamente Deus se encarnou em seu Filho. Enquanto nossas esperanças querem sempre de novo afastar o Filho de Deus e Deus mesmo da cruz, ele vai, contra nossas esperanças, até a morte na cruz. Cristo é o fim de nossas esperanças. Porém nossas esperanças não são o fim de Cristo. Ele também vem ainda hoje.
3. A vinda incondicional de Deus como fundamento de nossa alegria de advento.
Caso a prédica queira ser mais do que um relato sobre a entrada de Cristo naquela época, ela não pode subtrair-se à seguinte pergunta: como, através de que, Cristo vem hoje? Na América Latina, em particular, existe uma resposta muito decidida a essa pergunta: Cristo vem a nós no próximo oprimido e por isso recebemos Cristo no compromisso pelos marginalizados. Veremos na última parte que, justamente segundo Mateus, o engajamento abnegado em favor do próximo pertence inseparavelmente à fé no advento desse rei. Mas será que, por causa disso, o próximo precisa transformar-se em sacramento (Gutierrez), no qual podemos agarrar a Deus? Onde o próximo miserável é teologicamente idealizado até tornar-se sacramento, ele não mais permanece o que em realidade é, mas é sacralizado. Através disso, é principalmente a vinda de Cristo que é mais uma vez condicionada.
A fé cristã, no entanto, vive da gratidão pela vinda incondicionada, pela presença incondicionada de Cristo. E como vem Cristo hoje? Hoje ele não vem montado num jumento, porém mais pobremente ainda; ele vem pela palavra! (Lutero). Através de nossa pobre palavra como pregadores pecadores e fracos. Através da prédica de alguém cujas fraquezas a comunidade conhece muito bem – o pregador pode tranquilamente dizer uma vez à sua comunidade que sabe que ela conhece suas fraquezas. Quão pouco corresponde a preparação de nossas prédicas (e também esta meditação!) ao advento de Cristo!
No entanto, graças a Deus, não são nosso trabalho teológico, nossas estruturas eclesiásticas, nossas velas e coroas de advento, nossos cultos, nossos sacramentos, nossas esperanças, que efetuam a vinda de Cristo. Eles não precisam efetuá-la. A ordem é inversa: a iniciativa para seu advento neste Cristo reside unicamente em Deus. Ele não vem por causa de todos os nossos preparativos, mas apesar deles. Tu não o procuras, ele é quem te procura. Tu não o achas, ele é quem te acha. Tua fé vem dele, não de ti mesmo (Lutero).
Essa vinda incondicionada de Deus é o fundamento de nossa alegria de advento, pois no reino desse rei prevalece liberdade sem pré-condições. Sem Cristo, o homem está sujeito a muitos tiranos raivosos, que não são reis, mas assassinos, sob os quais ele padece grande necessidade e medo (Lutero). Onde nossa liberdade está presa a condições, que primeiramente temos que cumprir, aí vivemos em medo e necessidade, pois não podemos cumprir essas condições. Em contraposição a isso, a fé glorifica o advento incondicional de Deus em Cristo. Por isso a fé vive, sob esse Senhor, no reino da liberdade.
O fato de Cristo ter vindo incondicionalmente torna o advento verdadeiramente uma época de alegria e impele a fé a expressar concretamente a gratidão pela vinda incondicional de Cristo. Como é que isso pode acontecer? Com esta pergunta chegamos à última parte da prédica.
4. “Como hei de receber-Te?
O hino responde com a súplica pela vinda daquele de quem se afirma: Sim tudo já fizeste. Já falamos disso: a iniciativa partiu dele. Não são nossos cultos, nossa piedade e nossos preparativos o motivo para sua vinda, mas sim seu amor para conosco.
Ao final, porém, permanece a pergunta: Como se evidencia praticamente a fé nesse rei? Como ela se evidencia justamente em obras? Aqui vale o seguinte: Se encontrares uma obra que fazes em benefício de Deus ou de seus santos ou de ti mesmo e não unicamente (!) em benefício do teu próximo, fica sabendo que essa obra não é boa. Cristo se deu a nós em sua totalidade, de modo que nada mais há nele que não fosse teu ou feito por ti (Lutero). Quem vive sob o senhorio desse rei está, por isso, liberto para servir totalmente ao próximo, com tudo. Vemos aqui mais uma vez as consequências da liberdade, desta vez em vista de nossos próximos.
Aquele a quem esse rei vem pode voltar-se totalmente ao seu próximo, tão completamente, que só vejamos a ele, não mais a nos mesmos e nossa reputação, que realmente ajamos por causa do próximo, e não, por exemplo, porque tivéssemos reconhecido a Cristo no próximo (Mt 25), não para utilizar o próximo como meio para que Deus credite nossa boa ação em nossa conta bancária no céu. Tornamo-nos, muito antes, tão livres, a ponto de podermos abstrair de tudo (também de Deus – Lc 10.30ss!) e voltar-nos para o próximo. Neste sentido a esquerda deve ignorar o que faz a nossa direita (Mt 6.3). Aqui se realiza o rompimento com todo o pensamento que ainda pretenda medir o desempenho, para reivindicar junto aos homens ou junto a Deus uma recompensa correspondente (Schweizer).
Essa volta abnegada para o próximo por causa do próximo é a consequência do advento de Cristo por nossa causa. Por isso, o fato de, na época de advento, cantarmos em hospitais (e em prisões? – Mt 25!) é um sinal legítimo para a conexão entre o advento de Cristo por nós e nossa ida ao próximo por causa do próximo. Entretanto, uma comunidade, ou apenas seu coro, não pode restringir-se a isso, caso realmente queira agradecer pelo advento de Cristo. Sei de um pastor que terminou o culto de advento antes do tempo e mandou toda a comunidade a doentes, pobres e presos do lugar. As opiniões podem se dividir quanto a esse procedimento. Em todos os casos, tais ações deveriam ser preparadas de tal modo que realmente envolvam toda a comunidade. Mas elas são parte inseparável de um culto de advento. Quem são, em cada localidade, aqueles aos quais ninguém vem? O que a comunidade pode fazer concretamente por eles (mais uma vez: não por ela própria!)? Este seria assunto não só para o culto, mas para uma assembleia ou reunião da comunidade e para uma reunião com o presbitério. Para que? Para que os Pedros, ou seja lá como se chamem, experimentem a alegria de nosso advento. E, como vimos, a alegria do advento, para nós e para todos os Pedros, consiste em que não precisamos ficar somente esperando, esperando, esperando.
V – B i b l i o g r a f i a
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