Prédica: Romanos 14.7-13
Autor: Yedo Brandenburg
Data Litúrgica: 4º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 18/06/1978
Proclamar Libertação – Volume: III
I – Considerações Preliminares
A perícope Rm 14.7-13 encontra-se inserida dentro do contexto Rm 14 e 15, cuja temática é o relacionamento entre os fracos e fortes na fé. Rm l4 e 15 não significam necessariamente uma tomada de posição frente a uma situação bem específica na comunidade cristã romana, mas muito antes uma apresentação da ética de Paulo frente a conflitos que já encontrara anteriormente em outras comunidades no que tange às questões do comer carne, tomar vinho e observar certos dias (l Co 8.10; Cl 2.16; Gl 2.11ss; 4.10). Implicitamente defrontarmo-nos-íamos novamente em Rm 14 e 15 com a temática: lei e evangelho. A situação em nosso texto, porém, não pode ser comparada com a de outras cartas (Gl e Co), já que em Rm 14.1-15.13 Paulo menciona dois grupos na comunidade cristã: os fortes e os fracos na fé (14.1; 15.1). Em jogo não estava, pois, em primeiro lugar a liberdade da lei, mas sim a unidade, a comunhão, o convívio dos cristãos, a edificação da comunidade (14.17,19,2o; 15.2.7). Paulo tem, por conseguinte, em Rm 14.1-15.13 uma grande preocupação poimênica no tocante ao relacionamento entre os irmãos na fé em Jesus Cristo.
Quanto a questões da história da forma: Rm 14.7-13 chama a atenção pelo seu cunho argumentativo. As frases iniciam com EAN TE GAR ou EAN TÉ OUN (v.8: porque – quer, pois). Uma tese encontra uma argumentação. A argumentação, por sua vez, é avaliada e dá lugar a outra tese. O estilo usado por Paulo é o da diatribe cínico-estóica, i.e., a forma de diálogo ou de polêmica usada em prédicas sinagogais helenísticas. A partir do estilo denota-se que Paulo se encontra envolvido numa polêmica e não numa exposição tranquila de uma doutrina. A polêmica, porém, não diz respeito necessariamente a uma situação específica romana, mas é uma discussão, um assunto quente no cristianismo primitivo: o relacionamento entre os fracos e fortes na fé.
II – Análise de detalhes
Vv.7-9: Os vv.7-9 formam uma unidade que está relacionada aos versículos anteriores através do GAR (porque) no v.7. A ideia do pensamento inicia no v.4, onde o próximo é designado de ALLOTRIOS OIKETES (servo, escravo alheio – Lc 16.13; At 10.7 e l Pe 2.18) e continua até no v. 9. O cristão é um escravo de casa (OIKETES, não DOULOS!) que apenas é responsável ao seu Senhor. Nenhum escravo pode julgar a outro escravo. Apenas o Senhor o pode. E nenhum escravo vive e morre para si mesmo, e, sim, para o seu Senhor. Os dativos KYRIÕ (vv.4,6,7- para o Senhor – em contraposição ao HEAUTO v.7 – para si mesmo) expressam o pertencer ao Senhor e têm o mesmo sentido que TOU KYRIOU ESMEN (somos do Senhor) no final do v.8. Tanto na vida quanto na morte o cristão é responsável ao seu Senhor; ele vive e morre para Cristo. Este senhorio de Jesus sobre vivos e mortos é a consequência da Sexta-feira Santa e Páscoa (v. 9). Paulo acentua, pois, que o próximo se encontra totalmente sob o poder de Deus, assim que um julgar das ações do mesmo da parte de terceiros e impossível.
Vv. 10-13: O v.10 retoma a pergunta retórica do v.4. A responsabilidade do escravo de casa perante o seu Senhor torna-se agora na responsabilidade escatológica perante o tribunal de Deus, do qual ninguém escapa. A citação de Is 45.23, com acréscimos de Is 49.18, no v.11, que nos lembra de Fp 2.10, mostra quão importante é para Paulo a admoestação de não julgar o irmão. ZÕ EGÕ (tão bem como eu vivo) é uma afirmação muito forte que introduz uma espécie de juramento de Cristo/Deus. Paulo não faz distinção entre Cristo. (Rm 2.16; l Co 4.4s) e Deus (Rm 2.3ss; 3.6), pois o senhorio de Cristo tem como conteúdo e sentido levar-nos novamente a Deus e mostrar-nos, concomitantemente, a verdadeira maneira de ser em relação ao próximo e a nós mesmos.
O v. 12 é como que uma consequência dos vv.l0-11: Cada pessoa dará contas de si mesmo a Deus – o indivíduo perante Deus. O v.13 reforça a exortação de não julgar ao próximo. No v.13b temos as expressões PROSKOMMA (tropeço) e SKANDALON (escândalo). PROSKOMMA se relaciona à imagem da pedra ou do obstáculo no caminho; a pedra significa possibilidade e motivo de queda. Também pessoas são motivo de queda. SKANDALON é uma espécie de cilada que leva o outro à queda e que contém algo de inesperado, traiçoeiro e brutal. SKANDALON se refere ao relacionamento do homem para com Deus: a expressão é tanto obstáculo para a fé como também motivo para deixar de crer, motivo de corrupção e culpa, pois uma queda na fé é a queda por excelência. O v.13 exorta-nos, portanto, a não sermos uma pedra de tropeço e a não corrompermos ao irmão.
III – Conteúdo Teológico
O bloco Rm 14.1-15.13 versa sobre o relacionamento entre os fortes e fracos na fé. A perícope Rm 14.7-13 deve ser compreendida a partir deste contexto.
Quem são os fortes na fé? Os fortes comem carne (14.3), julgam iguais todos os dias (14.5), tomam vinho (14.21) e tendem a desprezar aos fracos (14.3) por estes não se sentirem livres para tal.
Quem são os fracos na fé? Os fracos não comem carne (14.3), observam determinados dias (14.5), não tomam vinho (14.21) e tendem a julgar aos fortes (14.4.
Abster-se de carne e vinho (14.21) não era raro na época do cristianismo primitivo. Os fracos para Paulo eram talvez cristãos que, a partir da sua fé, desistiram de comer carne sacrificada aos ídolos e de tomar do vinho de libação. Paulo ressalta em 14.6 que tanto fortes quanto fracos agem a partir da sua fé. A oração de graças (14.6) elimina a ideia de carne e vinho dedicados aos deuses. Em l Co 8 Paulo fala da comida sacrificada aos ídolos, sendo que l Co 8.9,11-13 em muito se assemelha com Rm 14.13,15,21. Uma comparação entre l Co 8 e Rm 14, contudo, mostra uma diferença na maneira de Paulo argumentar: Em Rm 14 Paulo não se preocupa essencialmente com o caráter de sacrifício de carne e vinho aos deuses, mas, isso sim, com a conservação da comunhão de mesa entre os cristãos apesar da divergência de pensamento e de maneira de viver de ambos os grupos.Em jogo está a unidade da Igreja, a edificação da comunidade e do Reino de Deus ( Rm 14.17,19,20;15.2). Os fortes, a partir da sua fé, sentem-se livres para comer carne, tomar vinho e julgar iguais todos os dias. Os fracos, ao contrário, não comem carne, não tomam vinho e distinguem entre dia e dia também a partir da sua fé. Temos, por conseguinte, duas maneiras de pensar e agir diferentes a partir da fé em Jesus Cristo. Estas duas maneiras de ser diferentes a partir da fé originam o problema do desprezo por parte dos fortes(14.3) e o do julgar por parte dos fracos (14.4). Os grupos não se aceitam. O julgar mútuo, pois o desprezo também implica em julgamento, qera o conflito que ameaça destruir a unidade, a comunhão entre os cristãos, e é este o ponto cruciante para Paulo.
Paulo revela no bloco Rm 14.1-15.13 uma preocupação poimênica e a intenção de restabelecer a comunhão entre os fracos e fortes.Como Paulo intenta alcançar o seu propósito? Usando estilo da diatribe cínico-estóica, Paulo argumenta que todos nos somos escravos de casa(14.4) de um único Senhor: O Deus que se revelou em Jesus Cristo, morreu e ganhou a vida para ser Senhor tanto sobre mortos como sobre vivos. O senhorio de Jesus Cristo abrange toda a nossa existência, ultrapassa-a(14.9) e impede que vivamos e morramos para nós mesmos. Por pertencermos a Cristo, que é Senhor sobre vivos e mortos, o senhorio de pessoas sobre pessoas, de cristãos sobre cristãos, é impossível. O senhorio de pessoas sobre pessoas é contrário ao senhorio de Cristo. O senhorio de Cristo liberta a pessoa para uma ação em prol do próximo e não o torna um escravo de si mesmo ou de outros. Este senhorio de Cristo impede o julgamento mútuo. O julgamento pertence exclusivamente a Deus. Por isso, tanto na vida quanto na morte, o cristão é responsável unicamente a Deus. Deus nos julgará a cada um de nós, individualmente (l4.l0,11,12). O indivíduo perante Deus – uma característica paulina que tem continuidade em Lutero, Kierkegaard e em teólogos existencialistas (principalmente Tillich) – salienta que a pessoa, individualmente, é julgada pelo Deus que se revelou em Jesus Cristo e por ninguém mais (compare com o segundo artigo – Catecismo!). Os versículos Rm 14.7-9 mostram que o senhorio absoluto de Jesus Cristo encontra-se no centro de nosso texto. Este senhorio de Cristo elimina, portanto, o desprezar que também implica em julgamento dos fracos por parte dos fortes e o julgar dos fortes por parte dos fracos. Paulo segue nitidamente a Jesus quando este diz: Não julgueis para que não
sejais julgados (Mt 7.1).
Paulo, que se considera um forte na fé (15.1), exorta os fortes a não provocarem deliberadamente aos fracos através de seu procedimento(14.l3), pois o PROSKOMMA e o SKANDALON podem levar a uma separação entre a comunidade, ou, então, a uma ação dos fracos contra a sua consciência e a uma indecisão na fé (Rm 14.14,20,23). O forte pode corromper com a sua liberdade o irmão que foi salvo por Cristo (Rm 14.15), destruindo assim tanto a obra de Deus (14.20), i.e., a cruz de Cristo, que significa a aceitação incondicional de Deus do pecador, quanto o fraco que age contra a sua consciência e fé.
Paulo coloca toda a sua autoridade e convicção na tese que nada é impuro de si mesmo. O acréscimo no Senhor Jesus (Rm 14.14) significa que o apóstolo se volta à autoridade de Cristo, a quem é responsável. Ele sabe que o afirma em concordância com Jesus. O apóstolo limita, porém, a validade da tese: Nenhum alimento é impuro de si mesmo, mas ele se torna impuro através daquele que assim o considera. A liberdade dos fortes é vista sob o ponto de vista do PROSKOMMA e SKANDALON. Paulo concorda com a liberdade dos fortes, mas a partir da cruz de Cristo ele coloca esta liberdade na luz do amor. O próprio contexto maior em que Rm 14 e 15 se encontram, enfatiza o amor de uns para com os outros (Rm 12,9-21) e o amor ao próximo como o cumprimento da lei (Rm 13,8-10; compare também com o hino do amor em l Co 13). Apenas a liberdade que é unida ao amor pelo próximo corresponde a morte de Cristo por nós (Rm 14.15), pois o reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo (14.17). Justiça é a dádiva escatológica que muda o relacionamento para com o irmão; paz é a reconciliação com Deus (Rm 5.1) que também elimina a falta de paz como irmão; alegria é a dádiva do Espírito Santo que torna impossível a tristeza do irmão. Assim, pois, seguimos as coisas da paz e também as da edificação de uns para com os outros (Rm 14.19). Portanto cada um de nós agrade ao próximo no que é bom para a edificação (15.2). Mais relevante do que a comida e a bebida é que o cristão não se agrade a si mesmo, pois o próprio Cristo não se agradou a si mesmo (15.31, mas ao próximo, contribuindo deste modo para a edificação da comunidade e do Reino de Deus (15.2). Paulo exorta os grupos a acolherem-se uns aos outros, como também Cristo os acolheu para a glória de Deus (15.7).
A enumeração das exortações atesta que o amor de Deus em Cristo por nós, através de sua morte e ressurreição, é maior do que as maneiras diferentes de pensar sobre Jesus. Denota-se, portanto, que todos nós já fomos acolhidos, aceitos por Jesus Cristo (sola gratia!), o que é a mola propulsora para nos aceitarmos uns aos outros e vivermos em comunhão não obstante a diversidade na maneira de ser e de opinar, pois Igreja é tanto mais igreja quanto puder comportar em suas fronteiras opiniões e maneiras de ser diferentes.
IV – Escopo
O senhorio absoluto de Jesus Cristo e a sua aceitação incondicional de cada um de nós através de sua cruz e ressurreição impede o julgamento do irmão e chama a cada um de nós à responsabilidade perante Deus sobre nós mesmos e sobre a edificação do próximo e da comunidade sob a luz do amor.
V – Meditação
Um dos maiores problemas em nossas comunidades é o da falta de aceitação dos membros entre si, o julgamento e a condenação mútua, o que gera discórdias e inimizades. A unidade da Igreja fica ameaçada. Como o texto de Rm l4 pode transmitir o evangelho, a boa nova de libertação em tais situações?
Em Rm 14 e 15 Paulo fala sobre o relacionamento entre os fortes” e fracos na fé. O que levou Paulo a usar as expressões fortes e fracos na fé? Paulo diz que a partir da cruz e ressurreição de Cristo é impossível o julgamento do irmão. Ao meu ver, no entanto, há uma espécie de julgamento da parte de Paulo nos termos fracos e fortes na fé. Além do mais, não possui a expressão fraco na fé uma conotação depreciativa? A partir destas considerações, o pregador deve evitar as expressões fracos e fortes na fé para designar grupos na comunidade. O que interessa na pregação é o fato de que, mediante a cruz e ressurreição de Jesus Cristo, Deus nos aceita incondicionalmente assim como somos (sola gratia), o que nos leva a uma maior auto-aceitação e aceitação do irmão. Reconcilia-me a morte de Cristo com Deus, comigo mesmo e como próximo? Aceito eu o senhorio absoluto de Jesus Cristo? Aceito eu a mim mesmo e ao próximo? O que me impede de auto-aceitar-me e de aceitar ao próximo? Propagandas perfeicionistas? Sou eu livre para servir a Jesus Cristo ou sou um escravo de mim mesmo e de outras pessoas? Não vivo eu para mim mesmo? O que significa viver para mim mesmo? Significa não ter a Jesus Cristo como oposto (Gegenüber), mas sim a mim mesmo e a outras pessoas. O meu oposto sempre deve ser Jesus Cristo. Nos extra nos esse (Lutero): O nosso ser está fora de nós mesmos, está em Cristo. Como vivemos para Jesus Cristo? Vivemos para Jesus Cristo quando aceitamos a ele como nosso Senhor único e exclusivo, quando nos libertamos de todos os outros poderes e senhores que nos querem escravizar. Cada pregador deverá denunciar estes poderes e senhores escravizantes dentro de sua situação específica. Eu vivo para Cristo quando não faço do meu próximo um objeto, uma coisa que eu uso, exploro e jogo fora quando não mais me serve. Eu vivo para Cristo quando aceito o próximo como um ser humano que tem as suas próprias necessidades, que tem maneiras de pensar e de viver diferentes da minha e que tem o seu valor por ser uma pessoa única, uma pessoa que já foi aceita por Deus em Jesus Cristo. A medida de todo o nosso pensar, falar e agir sempre deve ser Jesus Cristo. As diferentes maneiras de interpretar Jesus Cristo não podem me separar do meu irmão. Onde Jesus Cristo é Senhor há diversidade de opiniões, mas não há cisões, pois uma Igreja deve em suas fronteiras maneiras divergentes de pensar e viver. A máxima do amor a Deus e do amor ao próximo deve reger o relacionamento interpessoal.
Julgo eu o próximo? Julgamos nós? Qual me leva a julgar outras pessoas? O fato melhor do que elas? Não esquço o simul iustus et peccator
(simultaneamente justo e pecador)? Éo meu agir voltado para a edificação do próximo e da comunidade? Tenho que pedir sempre de novo a Deus o dom do Espírito Santo para que me ilumine para uma fé viva em Jesus Cristo e para uma atividade voltada para o próximo e para a edificação da comunidade. O senhorio absoluto de Cristo me liberta da tendência de julgar o próximo e de fazer dele um objeto, um escravo meu. O senhorio de pessoas sobre pessoas, de cristãos sobre cristãos é impossível. Não quero eu dominar muitas vezes aos outros? Não quero ser eu senhor sobre outras pessoas? Não sou eu frequentemente uma pedra de tropeço e escândalo? Quando?
Importa salientar na prédica:
– O amor de Deus em Jesus Cristo (sola gratia) e o seu senhorio absoluto nos liberta de nós mesmos para uma ação em prol do próximo para a edificação da comunidade.
– Deus, mediante a morte e ressurreição de Jesus Cristo, nos aceita incondicionalmente, nos habilita para aceitarmo-nos a nós mesmos e ao próximo e impede o julgamento do irmão pelo irmão.
VI – Bibliografia
– ALTHAUS, Paul. Der Brief an die Römer. In: Das Neue Testament Deutsch. 8a. ed. Vandenhoeck & Ruprecht. Göttingen, 1954.
– BORNKAMM, Günther. Paulus. W. Kohlhammer Verlag. Stuttgart, 1969.
– MICHEL, Otto. Der Brief an die Römer. In: Kritisch-exegetischer Kommentar über das Neue Testament. 4a. ed. Vandenhoeck & Ruprecht. Göttingen, l966.
– STÄHLIN, Gustav. PROSKOMMA. In: Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament. Vt. W. Kohlhammer Verlag. Stuttgart.
– STÄHLIN, Gustav. SKANDALON. In: Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament. VII. W. Kohlhammer Verlag. Stuttgart.
– SURKAU, Hans-Werner. Rm 14.7-13. In: Göttinger Predigtmeditationen. Ano 61. Caderno 5, maio 1972.
– TRAUTWEIN, Joachim. Die Kunst des Konfliktes. In: Für Arbeit und Besinnung. Ano 26. No.11, junho 1972.