Prédica: Romanos 9.30b-33
Autor: Martin Volkmann
Data Litúrgica: 11º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 06/08/1978
Proclamar Libertação – Volume: III
I – A perícope em seu contexto
O presente texto faz parte Paulo nos caps. 9-11 acerca do destino de Israel ante o evento Jesus Cristo. Na parte anterior
Paulo tece considerações sobre a soberania absoluta de Deus, que usa de misericórdia onde e para quem quer (v.25s). Na parte posterior o Apóstolo procura mostrar como Israel mesmo é responsável pela sua rejeição. Assim, o nosso texto assume uma posição-chave dentro das reflexões de Paulo: esses versículos, por um lado, concluem as considerações anteriores (isso se mostra claramente na pergunta introdutória que diremos, pois?) e simultaneamente colocam a tese para o que segue no cap . 10.
II – O agir paradoxal de Deus
Povos que não buscavam justiça alcançaram justiça, ou seja, justiça que provém da fé. Porém, Israel, que buscava lei de justiça, não alcançou essa lei.
1. Nos primeiros caps. de sua carta Paulo analisa a situação desses mesmos dois grupos e conclui acerca de ambos: todos pecaram e carecem da glória de Deus (3.23). Mas nos versículos logo a seguir ele afirma que para os mesmos todos, sem distinção, é oferecida a justiça, qual seja, a justiça proveniente da fé: Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei (3.28). E agora ele constata que Israel, que anteriormente fora escolhido como o povo de Deus e que, como tal, dispunha de todas as condições para continuar nessa situação, esse povo passou a ser não-povo. Enquanto isso, outros povos, que não apresentavam essas condições, passam a ser seu povo (v.25s).
2. Qual a diferença básica entre esses dois grupos? Para caracterizá-los Paulo trabalha basicamente só com os mesmos termos: DIOKO (buscar, perseguir) e DIKAIOSYNË (justiça). O que diferencia a caracterização de ambos é, uma vez, a colocação da negação diante desses termos: para os povos vale, não DIÕKO_ – sim DIKAIOSYNÊ; para Israel vale, sim DIÔKÕ – não DIKAIOSYNË. Por outro lado, a diferença está dada no complemento ao termo DIKAIOSYNÊ. Na caracterização dos povos DIKAIOSYNÈ é objeto direto de DIÔKÕ e é complementada por EK PISTEOS (a partir da fé); com relação a Israel o objeto direto é NOMOS (lei) complementado por DIKAIOSYNËS (de justiça). Por isso, na segunda parte da oração, ao invés dizer não alcançou a justiça, Paulo pode simplesmente não alcançou essa lei (veja abaixo).
O termo DIOKO lembra a figura da corrida que Paulo usara pouco antes – v. 16 (1 Co 9.24; cp. também Fp 3.12-14 em contraposição a 3.4-6). E vendo esses dois versículos conjuntamente, já se aclara um pouco esse paradoxo: o ponto de partida e a decisão última não residem no próprio homem, no seu “querer” ou no seu “correr”, mas na misericórdia de Deus. Porque os povos, que justamente não correm a trás dessa justiça, recebem-na.
3. Qual é esta justiça? Trata-se da mesma coisa quando se fala de justiça que Israel procura e não alcança, enquanto que os povos a recebem, não obstante não correrem atrás dela? Se assim o fosse, o paradoxo seria inexplicável; seria de fato paradoxo. Porém, o termo justiça não designa a mesma coisa em ambas as situações. Isso fica evidente pela simples troca de complemento a esse termo. Israel corre atrás do NOMOS DIKAIOSYNËS (lei de justiça), isto é, Israel procura atingir a justiça que a lei lhe confere. Israel corre atrás da lei que, ao final, lhe atesta a justiça, a salvação, a vida. E o paradoxal nisso tudo é que, esforçando-se ao máximo, procurando cumprir à risca todas as regras do jogo, Israel atinge uma justiça, mas que é uma justiça que na realidade não vale, não interessa. A justiça que vale, que significa vida, salvação é a justiça a partir da fé. A justiça escatológica é aquela que consiste justamente na renúncia ao direito diante de Deus; é uma justiça por misericórdia (3.28; 9.16) e, portanto, radicalmente oposta àquela que se evidencia no buscar e querer humanos. Por isso ela não é atingível pelo buscar dos homens.
III – Um paradoxo aparente
Por quê? Porque não a procuram a partir da fé, mas como se fosse possível a partir das obras. Eles tropeçaram na pedra de tropeço, conforme está escrito: Eis que eu coloco em si ao uma pedra de tropeço e uma rocha de escândalo, e aquele que confia nela não será escandalizado.
1. Por que esse agir paradoxal de Deus? É de fato um agir paradoxal ou um paradoxo só à primeira vista? Ou um paradoxo que deixa de existir quando se esclarecem os motivos que movem os implicados? Ao expor e interpretar o agir paradoxal de Deus, já avançamos o sinal rumo a um campo que mostra não ser tão paradoxal assim esse agir de Deus. Pelo contrário, paradoxal é a reação do homem que deturpa o princípio de Deus e, consequentemente, não vê mais a maneira clara do seu agir. O motivo para explicar o aparente paradoxo é dado em dois lances: uma vez, a partir do agir do homem; outra vez, a partir do agir de Deus.
2. Israel, buscando a lei de justiça, parte de um princípio errado – e nisso reside o cerne do problema de ver no agir de Deus um agir paradoxal. Israel procura a justiça como se fosse possível a partir das obras. O princípio de Israel é alcançar a justiça por merecimento próprio. Mas uma tal justiça, a ser constatada, não é a justiça instalada por Jesus Cristo. Por isso o ponto de partida já esta errado. E se o ponto de partida está errado, necessariamente o alvo não será atingido. Logo, o agir de Deus só é paradoxal para aquele que inverte o princípio HÕS EX ERGÕN como se fosse possível a partir das obras. Porque o seu princípio é o da justiça alcançada, construída com meios próprios. E com isso rejeitam a justiça presenteada, oferecida graciosamente e tropeçam na pedra de tropeço (isso lembra novamente a figura da corrida!)
3- Mas, qual é o princípio correto? A isso Paulo responde, argumentando a partir do agir de Deus que ele vê claramente exposto no Antigo Testamento. Por isso ele o descreve em forma de citação, melhor, numa combinação de citações: A figura da pedra de tropeço e rocha de escândalo Paulo encontra em Is 8.14 e a combina com Is 28.16 – aquele que confia nela não será escandalizado (conforme o texto masorético, ao invés de não será escandalizado, deve-se ler não fugira – e isso lembra novamente a figura da corrida, tão em destaque anteriormente. Será, pois, errado dizer que, não obstante passagens como l Co 9.24; Fp 3.12, aquele que foi achado por Cristo não mais precisa correr?!). Ambas as passagens de Is são interpretadas cristologicamente (cp. l Pe 2.8; Jo 7.37ss; Lc 2.34. Todas essas passagens, que também falam de Jesus como rocha, mostram que essa combinação é muito difundida e teologicamente faz parte da polêmica com Israel – Michel , p.251)
Diante dessa pedra, que é o Cristo, há uma dupla possibilidade de reação: ou a gente tropeça nela, e assim ela se torna numa pedra de tropeço, ou a gente se baseia nela, e assim ela se torna em pedra angular. Essa dupla possibilidade se evidencia em Israel e nos povos. Israel, que corre atrás da justiça da justiça construída, própria, a partir das obras -, tropeça nessa pedra no caminho. Para Paulo, pois, o tropeçar na pedra e o buscar a lei de justiça coincidem. Enquanto isso os povos, que não procuram estabelecer a sua própria justiça, encontram nessa pedra uma pedra angular, sobre a qual podem confiar. PISTEUEIN (confiar) é a atitude radical mente oposta àquela dos judeus, que buscam a lei de justiça. Como tal é a única atitude correta diante de Deus: renúncia ao esforço pelas obras e sujeição obediente ao caminho da salvação oferecido por Deus. Fé é a renúncia às próprias realizações e a desistência de um direito que se pode exigir e defender diante de Deus (G.Voigt, p.270).
4. Essa pedra é colocação de Deus, isto é, ela evidencia o propósito de Deus desde sempre. E assim se evidenciam aqui novamente a autoridade e a liberdade de Deus: é o Deus livre que se manifesta aqui como no passado (citação do Antigo Testamento!) de quem depende de usar a sua misericórdia (9,16). Em outras palavras: trata-se de uma realidade estabelecida por Deus em liberdade e autoridade, a qual o homem pode aceitar ou rejeitar, isto é, reconhecer o momento escatológico ou não. E por isso essa colocação de Deus também evidencia o princípio correto diante de Deus.
IV – Considerações para a pregação
1. O presente texto aborda o tema central da mensagem que o apóstolo Paulo desenvolve em sua carta e que, na Reforma, passou a ser o artigo pelo qual a Igreja cai ou permanece (Confissão de Augsburgo, cap. 4). A questão da justificação, da justiça a base de merecimento ou por graça, e a questão básica de toda a mensagem cristã; é isto que faz da Igreja ser Igreja. Será que isso se reflete em nossas comunidades? Os membros, que ouvem nossas pregações, sabem eles o que é justiça, lei, obras, fé – os termos centrais desse texto e da mensagem cristã? Não acontece que, em nossa atividade pastoral, nós pressupomos que os membros o saibam (é tão badalado assim esse tema…)? Nós temos medo de enfrentar essa mensagem? Ou nós não a dizemos claramente em nossas pregações? Justamente por ser tão central, tão fundamental, tão decisivo, esse tema não é fácil. Não é difícil de exegesá-lo, de tirar o conteúdo central. Difícil é dizê-lo de forma que a comunidade compreenda, viva a justiça a partir da fé. Porque, se a igreja cai ou permanece com essa mensagem, também nossa pregação cairá ou permanecerá na medida em que soubermos reproduzir para a comunidade essa mensagem.
2. O texto fala da contraposição de Israel e os povos. Quem são esses dois grupos hoje? Não convém falar em Israel como povo do passado ou do presente, porque seria criar uma situação artificial e levaria o ouvinte a se desligar. O Israel daquela época é o fanático religioso; aquele que leva uma vida religiosa com a maior seriedade. É aquele que está cada domingo na Igreja; que não perde oportunidade de trabalhar pela comunidade. É aquele que educa seus filhos na sua fé e que não deixa de confessar essa sua fé onde for possível e necessário. Da mesma forma com relação aos povos. Propositalmente não traduzimos o termo ETHNE por gentios (Almeida), o que não seria errado. Mas esse termo traz associações, tais como ateísta,não-reliqioso, dando um caráter negativo. No Novo Testamento ETHNË designa simplesmente os povos em contraposição a Israel, mas não significa automaticamente alguém que não crê em nada, um ateísta militante. São pessoas que não dão muito valor a essas questões de religião, de uma vida segundo princípios rígidos, para os quais a transgressão de uma norma social ou moral não traz logo peso na consciência. São as pessoas que não procuram a realização pessoal pela observância desses princípios. É alguém que vive a vida sem muito se importar pela vida em si.
3. Que mundo é esse onde aquele que não merece recebe a aprovação, enquanto que justamente o que procura essa aprovação sai de mãos vazias? Se a nossa pregação coloca isso claramente, assim como Paulo o faz nos vv.30-31, a reação só pode ser essa. Na resposta a essa pergunta convém talvez inverter a sequência: primeiro ver a partir da ação de Deus e depois a partir do agir do homem.
Paulo, assim nós vimos, dá a resposta com uma citação do Antigo Testamento. Com isso ele indica: essa é a vontade de Deus. Ele assim o determinou. E disso nós só podemos tomar conhecimento. Isso é uma realidade, sobre a qual não se discute. Não cabe a nós julgar, criticar, condenar esse fato. Isso é assim. Novamente um motivo de choque. Justamente em nossos dias afirmar isso é convidar a desligar. Mas se nós conseguimos levar adiante e definir claramente o conteúdo dessa determinação divina, a reação poderá ser – oxalá seja – de alívio, de libertação e não de condenação por isso ser assim. Porque o conteúdo dessa determinação divina é que justamente os sérios, os fanáticos se escandalizam nesse Jesus. Eles não entendem que o sim de Deus possa ser da do de maneira diferente do que à base do meu esforço, de minha dedicação, de minha seriedade. O escândalo é que aqueles que nada mais têm a apresentar do que uma vida devassa, perdida são aceitos. Eles se chocam no fato de que recebe o beneplácito de Deus aquele que não merece. E por isso que esse Jesus é aceito pelos que não merecem, enquanto que outros o rejeitam.
Mas isso é resposta? Aqui não se reforça o escândalo? Que Deus é esse? Que mundo é esse? Um tal Deus só pode ser tirano. E por isso o escândalo leva à cruz e a cruz se torna em escândalo! Onde houve essa reação, o primeiro passo estará dado: Deus mesmo colocou a pedra de tropeço; ele quer que o homem se escandalize nele, para compreenda que Deus ele é, ou melhor, que ele é Deus.
4. Aqui devemos ver o agir do homem. Quem são os que dizem não a Jesus? São aqueles que não querem aceitar o fato de serem maus. O fanático religioso, aquele que vive segundo princípios éticos rígidos se torna injusto pelo seu agir. Por levar tudo tão a sério, ele se torna fechado, bitolado, inflexível, injusto: ele só mais vê a sua justiça, o seu direito, a sua razão. E assim não há mais lugar para o direito, a justiça e a razão do outro. Com isso ele destrói a possibilidade de vida para os outros e – justamente nisso se mostra o absurdo – a sua própria vida. Visto de um outro ângulo: Aquele que procura, por meios próprios, por seu esforço, por seus princípios chegar à perfeição se aproximaria de Deus e diria: Eis-me aqui; assim sou eu. Vamos ajustar contas. Tu só podes me dar o prêmio, porque eu consegui; nada mais te devo, só tu deves a mim. Esses pensamentos já mostram a absurdidade de querer alcançar a justiça por esforço próprio: como se fosse possível pelas obras não é possível! Por outro lado, aqueles que dizem sim a Jesus sabem que são maus. Eles não escondem a sua situação. Eles nada têm a oferecer; eles nada têm de que se orgulhar (Lc 18.9-l4 – o Evangelho previsto para esse domingo!). Só receber. E aqui se cumpre a vontade de Deus: onde a pessoa só pode ser presenteada e confia nisso.
Será supérfluo dizer que o pregador não fala sobre isso para os outros, como se não lhe dissesse respeito, mas em tudo isso ele mesmo está no meio da massa.
5. Que Deus é esse? Que mundo é esse? Se nós conseguimos reproduzir a mensagem do texto de tal forma que os que procuram a justiça como se fosse possível a partir das obras reconhecem que é impossível, junto virá o reconhecimento: que bom que é assim! Que bom que o meu buscar, o meu querer e correr não levam ao alvo, porque assim não Deus é um tirano ou monstro, mas eu o seria. Se a pregação conseguir estimular esse processo de aprendizagem – de nós deixarmos de ser pessoas que procuram conquistar a justiça para sermos pessoas que se deixam presentear – , ela terá sido palavra de Deus; nossa pregação permanecerá de pé. Mas também isso não está em nossas mãos. Se o quisermos forçar, terá sido obra novamente. Se não virmos resultados imediatos, olhemos para o final do cap. 11: Deus a todos encerrou na desobediência, a fim de usar de misericórdia para com todos (v.32).