Prédica: 1 Coríntios 15.20-28
Leituras: Ezequiel 34.11-16,23-24 e Mateus 25.31-46
Autor: Mauro Schwalm
Data Litúrgica: Último Domingo do ano Eclesiástico
Data da Pregação: 20/11/2005
Proclamar Libertação – Volume: XXX
1. Introdução
Esta é a sétima vez que o texto de 1Co 15.20-28 está sendo objeto de estudo em PL, sendo que cinco vezes para o domingo da Páscoa e duas vezes para o último domingo do Ano Eclesiástico, incluindo este auxílio de PL XXX. Isto significa que há um farto material acerca do mesmo na coleção de PL. Trata-se de um texto de conteúdo doutrinário-teológico. Se, por um lado, é basilar como ponto de referência para a fundamentação de aspectos essenciais aos ensinamentos da fé cristã, por outro, exige especial atenção com vistas à pregação. Inegavelmente é um texto mais denso, que exigirá mais reflexão e compenetração dos ouvintes e dedicação do/da pregador/a para comunicar adequadamente essa sua densidade. O texto oferece oportunidade para instruir e orientar a comunidade acerca de um tema que não tem muito espaço em nosso cotidiano imediatista e marcado pelo pragmatismo, que só valoriza o que se mostra útil aqui e agora. Certamente é preciso proclamar libertação de uma visão espiritualizante e transcendente da fé. Mas o texto em questão oferece a oportunidade de proclamar libertação do vazio de sentido com base numa esperança que faz olhar para o reino de Deus e para a vida a partir dele. O conjunto dos textos do dia colabora para essa ênfase.
2. Apresentação do texto e observações exegéticas
A perícope que se estende entre os v. 20-28 está vinculada com todo o conteúdo do capítulo 15 de 1 Coríntios. Ou seja, precisa ser lida e compreendida no horizonte de um contexto mais abrangente e que está subdividido em blocos de ênfases distintas! Mas o v. 20 por si só já nos situa no núcleo da polêmica e do debate! O apóstolo Paulo anuncia e declara o que considera uma verdade fundamental da doutrina e da fé cristãs: ele ratifica o ensino acerca da ressurreição de Cristo dentre os mortos. E essa verdade é apresentada como o fundamento – a garantia – da ressurreição dentre os mortos daqueles que estão unidos com Cristo. Entendo, como Martin Dreher (PL XVIII, p. 280-281), que, para Paulo, a ressurreição tem um significado soteriológico: para os que crêem (v. 23) a ressurreição significará salvação e vida eterna. Paulo contesta a afirmação de algumas pessoas entre a comunidade que se reunia em Corinto de que não haveria ressurreição de mortos. “Toda a idéia da crença cristã na ressurreição dos mortos era negada por uma parcela da comunidade” (15.12) (Kümmel, p. 351). E Paulo aponta para Cristo como aquele que deu início a essa esperança! O ponto de partida do texto, portanto, é expressão vigorosa de uma convicção! Isto certamente tem relevância para a meditação e para a pregação.
Para ajudar os cristãos de Corinto a entenderem o que está afirmando, Paulo lança mão de uma comparação entre o que se realizou para a humanidade por meio de Adão e de Cristo: se por intermédio do primeiro a morte passou a se manifestar e se tornou realidade para a criação, por meio do segundo abriu-se a possibilidade da superação da morte mediante a ressurreição, passou a existir a possibilidade de vitória sobre a morte (v. 21-22). Essa abordagem e explicação são ampliadas no contexto posterior, na continuação do capítulo: 15.45,47-49,57. É de pressupor que essa comparação e contraposição de papéis e funções entre Adão (queda, velha criação) e Cristo (superação da queda, nova criação) já estavam presentes em outras pregações de Paulo também entre os coríntios. Dessa forma Paulo pretendia facilitar a compreensão do significado da ressurreição de Cristo. Com esse paralelo ele apresenta eventos distintos em termos temporais e de conteúdo como chaves comparativas e hermenêuticas.
Se no v. 20 Paulo havia falado de Cristo como sendo “as primícias dos que dormem”, nos v. 23-24 ele retoma esse aspecto da “ordem” (seqüência), ampliando-o e incluindo a dimensão do fim de todas as coisas. Paulo enfatiza que, em primeiro lugar, Cristo ressuscitou. Portanto, a ressurreição de Cristo é a referência sobre a qual se pode construir a esperança da ressurreição dos que a ele pertencem, em segundo lugar. Subentende-se o questionamento de Paulo: a ressurreição de Cristo não teria sentido se não implicasse a possibilidade da ressurreição para quem nele crê (isto está formulado de forma precisa em 15.16-19). Porém, como diz Paulo, a ressurreição dos mortos se dará na sua vinda. Com isso um novo tema é trazido à tona: a parusia, a esperança do retorno de Cristo como plenificação do reino. Finalmente, como terceiro ponto nessa ordem sucederá o fim! Este fim é descrito como a vitória sobre todas as formas de poder e a entrega do reino a Deus: fim como reinício em novas bases.
Embora exista uma vinculação clara entre o v. 24 e o v. 25, o v. 25 inicia um
a nova abordagem temática na qual se passa a discorrer a respeito da relação do reinado de Cristo com o poder que lhe foi outorgado por Deus mesmo. Ou seja, o reinado de Cristo se estenderá até que todos os inimigos lhe sejam submissos, sendo que a morte é o último inimigo a ser destruído, cujo poder se manifestará até o momento derradeiro antes do fim (apesar de Cristo já a ter vencido mediante a sua ressurreição). Mas Paulo faz questão de ressalvar que essa submissão não inclui o poder de Deus, que, na verdade, é a origem do poder de Cristo. Retoma-se aqui a idéia de ordem: Deus colocou Cristo como aquele que tem poder sobre tudo e todos, mas que está ele mesmo submisso à majestade de Deus. No fim de todas as coisas, o próprio Cristo se sujeitará a Deus e terá sua posição incorporada definitivamente na comunhão divina.
De acordo com Heinz Dietrich Wendland, Paulo trata dos aspectos finais da história, de sua plenitude, tendo a ressurreição de Cristo como fundamento de suas convicções! Contra certo entusiasmo carismático Paulo procura resgatar a necessidade de uma compreensão sóbria para a tensão que há entre o que é realidade (já) e o que é promessa (ainda não). Ignorar essa tensão seria deixar-se iludir. Ou seja, entre os coríntios havia um segmento de pessoas que não entendia a ressurreição em termos escatológicos, futuros, mas apenas presentes: “Para os coríntios Cristo nada mais significa do que o início [primícia] da sua própria ressurreição” (Wendland, 127). Para Paulo, a ressurreição dentre os mortos e a plenificação do mandato messiânico de Cristo são esperanças, ainda não realidades consumadas. Paulo precisava colocar ênfase na “ordem” das coisas, pois a herança gnóstica dos coríntios os impedia de entender a situação de oposição vivenciada pela comunidade: apesar da ressurreição de Cristo, o poder dos inimigos de Deus e de sua palavra ainda se faz sentir e se manifesta. O final da história, a vitória definitiva de Cristo sobre a morte, ainda está por ocorrer, pois a salvação ainda não é posse definitiva (Wendland, 128-129). “Ao negarem a ressurreição [no final dos tempos], estavam negando a vitória final de Cristo. Eliminar a perspectiva desse futuro é tirar o sentido presente [atual] da existência bem como da fé da comunidade” (Wendland, 129).
De acordo com o pensamento de Paulo, o final de todas as coisas, o final da história, não é a absorção de tudo por parte de Deus, como se tudo se fundisse num nada cósmico, mas sim o estabelecimento da comunidade plena de Deus de todas as coisas, de acordo com a sua vontade e seu querer na fundação de um novo mundo. “O evento definitivo da plenitude do tempo, que tem seu início com a ressurreição de Cristo, tem seu sentido justamente na superação da divisão entre tempo e eternidade, história e supra-história, mundo e reino de Deus” (Wendland, 130).
3. As leituras do dia em relação com o texto da pregação
Os textos do dia permitem uma relação muito estreita com o texto da pregação. Partindo do princípio de que o evangelho determina o tema do domingo, Mt 25. 31-46 deixa-o muito claro: haverá um grande julgamento na presença de Jesus Cristo, no qual se evidenciará a diferença entre seus seguidores em palavra e obra e aqueles que enganaram a si mesmos. Este também é o tema do último domingo do Ano Eclesiástico: apontar para o Cristo que será colocado por Deus acima de todas as coisas e lembrar de nossa esperança escatológica. Embora a parte do capítulo 15 de 1 Coríntios, que serve à pregação neste domingo, não aborde a questão prático-ética e se restrinja mais à questão doutrinário-teológica, convém lembrar que na continuação do capítulo 15, v. 32-34, Paulo aponta para o imperativo ético: crer na ressurreição precisa mobilizar o cristão a desejar mais do que satisfazer o próprio estômago! Portanto o evangelho do dia resgata essa dimensão fundamental da fé e da esperança que leva a uma forma de condução da vida concretizada no servir. 1 Coríntios lembra que a fé na ressurreição dentre os mortos é a âncora que dá estabilidade desde agora até o fim de todas as coisas e o encontro definitivo com Jesus Cristo. Mateus 25 lembra do amor solidário! Ambas as dimensões não podem ser separadas.
Já Ez 34.11-16,23-24 é um texto por excelência de anúncio de graça e misericórdia. Proclama a vontade de Deus em reunir seu povo de todos os cantos do mundo para dar-lhes o que precisam. Também este é um tema importante do domingo. Nossa esperança consiste em que o reino de Deus se concretize entre nós. E o desejo de Deus é conceder a seu povo um lugar em que possa viver plena e intensamente, assim como ele desde o princípio planejou. Obviamente, o contexto específico das palavras de Ezequiel não pode ser ignorado. Mas certamente convém proclamar no dia de Cristo Rei que Deus buscará seus filhos e filhas de todos os lugares para a realidade do seu reino. Reino do qual também Paulo falou aos coríntios: “Para que Deus seja tudo em todos” (1 Co 15. 28).
4. Meditação com vistas à pregação
Penso que são três os principais temas deste texto de 1 Coríntios com vistas à pregação. Três temas que precisam ser amarrados entre si, pois estão no horizonte da esperança cristã, além de estar intrinsecamente unidos com o motivo litúrgico do dia. O primeiro deles obviamente é o tema da ressurreição. O segundo é o tema do fim de todas as coisas, da plenitude do reino de Deus. E o terceiro, a lembrança de que Deus quer ser tudo em todos.
O tema da ressurreição apresenta-se como lastro doutrinário, como luz que ilumina o caminho. É impossível separar a esperança por ressurreição da esperança por vida eterna. Nesta fé se dividem águas. E crer ou não na ressurreição tem implicações distintas tanto para a vida eterna como para a vida presente (o evangelho do dia que o diga!). Se a minha ressurreição já fosse posse, não haveria necessidade de comprometimento ético; não haveria necessidade de arrependimento e perdão; não haveria necessidade de amor ou serviço. E se eu não contasse com a ressurreição no futuro, a vida perderia seu sentido e sua razão de ser.
Portanto, a esperança pela ressurreição coloca-me no devido lugar: na dependência do criador. Se ela ainda não é minha posse, preciso, dependo do amor e da misericórdia de Deus. Se ela ainda não é minha posse, preciso avaliar regularmente a minha vida e reorientá-la a partir do evangelho. Mas simultaneamente sou animado a não desesperar, pois a primícia que foi a ressurreição de Cristo me faz crer que o tempo presente e os sofrimentos que gera (e que eu gero no presente!) serão vencidos. Estabelece-se uma tensão da qual não é possível fugir. Imagino o tema da ressurreição como a motivação que leva o cristão a caminhar, a mover-se entre certezas e inseguranças. Imagine uma pessoa atravessando um túnel longo e escuro. O que a move, apesar da possível insegurança? A esperança de que, se continuar caminhando (e só se continuar caminhando!), chegará ao outro extremo. E o caminhar não é mérito seu. É resposta ao chamado!
O último domingo do Ano Eclesiástico também é conhecido como domingo de Cristo Rei. Em outras palavras, o domingo que encerra a jornada litúrgica do povo de Deus faz pensar acerca de como será no extremo final do túnel (para ficarmos nessa ilustração). No final estará a plenitude do reino de Deus. Não é justamente isto que incansavelmente suplicamos nas palavras do Pai-nosso: “Venha a nós o teu reino”? Reino no qual definitivamente se fará a sua vontade! Vontade que está expressamente manifesta nas inúmeras parábolas de Jesus Cristo, em suas manifestações de poder e cura, em seu acolhimento e aceitação das pessoas independentemente de seu status, gênero, idade, etnia; em sua disposição de perdoar e em sua disposição de proclamar libertação aos cativos… A esperança pela ressurreição guia-me por um caminho em cujo desfecho aguardo a vitória do poder amoroso de Deus revelado em Cristo sobre todos os poderes que se lhe opõem. O que espero que se realize no final se torna inspiração para a forma como vou vivendo… Corresponder à proposta de Deus não pode ser atitude apenas para depois de chegar ao extremo final do túnel. É atitude para a caminhada! Aí está novamente o evangelho do dia, que evidencia diferentes formas de caminhar, nem sempre conscientes…
Impossível de separar disso é a afirmação paulina de que Deus quer ser tudo em todos. Talvez aqui o texto da leitura de Ezequiel se aproxime melhor: Deus deseja reunir os seus debaixo dos seus cuidados, deseja oferecer-lhes campo vasto no qual se sintam incluídos e protegidos. O propósito de Deus para com seu povo é propósito de unidade, de integridade, de restauração. Se eu olho para o futuro de Deus, para o seu povo como um futuro de vida plena e abundante, como um futuro de superação de poderes e forças que se opõem à vida; como um futuro de inclusão comunitária no horizonte da comunhão de Deus e com Deus, então isso implica necessariamente duas formas de vivência da esperança: a) esperança vivenciada interiormente (pessoal, comunitária, celebrativa, intransferível), que sustenta contra todas as aparências e forças opositoras; e b) esperança vivenciada concretamente como antecipação, ou seja, como tentativa incansável de corresponder ao futuro almejado e desejado.
O conjunto desses três temas lembra que vivemos alimentados e movidos por um futuro que não nos deixa sucumbir. Que nos mobiliza na busca da concretização daquilo pelo que ansiamos! Penso que os passos desta meditação podem servir de base para a pregação!
5. Celebração
Sugestão de hinos do Hinos do Povo de Deus: 161; 165; 176; 184; 200; 432; 439; 441.
Sugestão de temas para a confissão de pecados: confessar que nossas ações e omissões são fontes de muitos males e muitas dores causados a nossos semelhantes e à criação; confessar que nosso testemunho é vacilante; confessar que já não conseguimos mais crer e confiar que o reino de Deus será implantado de forma definitiva e que isso inibe nossa ação em favor da paz e da justiça; pedir perdão por nossa incapacidade em perceber os sofrimentos alheios que existem à nossa volta; pedir perdão pela tendência com que separamos a fé no futuro de Deus da necessidade do amor solidário no presente.
Sugestão para o anúncio da graça: “O Senhor, vosso Deus, é misericordioso e compassivo e não desviará de vós o rosto, se vos converterdes a ele” (2Cr 30.9).
Sugestão de palavra bíblica após o kyrie: “Cristo destruirá todos os governos espirituais, todas as autoridades e poderes e entregará o reino a Deus, o Pai” (1Co 15.24). Por causa dessa esperança, cantemos glória a Deus nas maiores alturas!
Sugestão de temas para a oração do dia: agradecer pelo dom da ressurreição manifesto em Jesus Cristo; agradecer pela esperança que podemos ter em nossa própria ressurreição; pedir que se cumpra a vontade de Deus e que o seu reino se concretize por intermédio de Jesus Cristo. Que a esperança da concretização do seu reino nos leve a agir contra tudo o que destrói a vida!
Sugestão para o envio:
“Cristo ressuscitou!
Vão e vivam como gente que espera pela ressurreição!
Deus nos promete a plenitude do seu reino!
Vão e creiam nesta promessa. Que ela conduza os seus passos, suas palavras, seus atos.
Deus será tudo em todos!
Vão e permitam que isto se mostre em suas vidas já agora!
Amém.”
Bibliografia
BAPTISTA, Roberto N. Meditação sobre 1 Coríntios 15. 19-28 (domingo da Páscoa). In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1999. v. XXV. p. 175-180.
DREHER, Martin N. Meditação sobre 1 Coríntios 15. 20-28 (último domingo do Ano Eclesiástico – Cristo Rei). In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1992. v. XVIII. p. 280-285.
KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Edições Paulinas, 1982.
QUESNEL, Michel. As Epístolas aos Coríntios. São Paulo: Edições Paulinas, 1983.
WENDLAND, Heinz Dietrich. Das Neue Testament Deutsch. Die Briefe an die Korinther. Teilband 7. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1965.