Prédica: 1 Pedro 2.18-25
Leituras: Salmo 23 e João 10.1-10
Autor: Gerd Uwe Kliewer
Data Litúrgica: 4º.Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 17/04/2005
Proclamar Libertação – Volume: XXX
1.Observação preliminar
O texto indicado para a pregação do 4º Domingo da Páscoa é 1 Pe 2.19-25. Parece-me imprescindível, porém, incluir o versículo 18 na reflexão, por ele especificar os destinatários da exortação que o texto faz. O seu tema é a postura das escravas e dos escravos ante os seus donos e senhores. Não há relação evidente das outras duas leituras (o salmo e a perícope de João) com esse tema. Ou sugere-se que, para pessoas que sofrem sob relações sociais injustas, a imagem de Deus, respectivamente Jesus como o “Bom Pastor”, possa ser um consolo ou um exemplo?
2. Quem escreve?
O remetente da carta identifica-se, em 1.1, como Pedro, o apóstolo. No fim da carta, em 5.12, é mencionado Silvano como aquele que redigiu a carta, sob orientação de Pedro. Este Silvano seria Silas, companheiro de Paulo (At 15.22ss e 2 Co 1.19). Sua redação explicaria a semelhança e concordância da carta com a teologia de Paulo. A carta foi escrita em Roma, pois a “Babilônia”, mencionada em 5.15, é sigla para essa cidade usada pelos cristãos no fim do primeiro século. A autoria de Pedro é contestada por muitos estudiosos com bons argumentos. Mesmo assim, usarei a seguir o nome “Pedro” para designar o autor da carta.
3. A quem a carta é dirigida?
Aos “eleitos” e “forasteiros” nas regiões de Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia (1.1). São regiões do interior da Ásia Menor, entre o Mar Mediterrâneo e o Mar Negro, incorporadas ao Império Romano, onde o trabalho missionário da jovem igreja cristã criara comunidades entre os judeus da diáspora e seus simpatizantes. Hoje fazem parte da Turquia e seus habitantes são muçulmanos. Essas comunidades cristãs já têm algum tempo de existência, se a gente considera que a carta foi escrita após o ano 80 d. C. (Hauck, p. 36), mas boa parte dos membros ainda é da primeira geração. O autor da carta esclarece, no desenvolvimento de sua exposição, melhor os termos “eleitos” e “forasteiros”, com os quais rotula esses cristãos. Chama-os de “raça eleita”, “povo da propriedade de Deus” (2.9); “eleitos, segundo a presciência de Deus Pai, em santificação de Espírito, para a obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo” (1.2). Como tais, são “forasteiros” e “peregrinos” neste mundo. Não fazem parte dessa sociedade e dos seus valores. Têm uma visão diferente daquela do povo entre o qual vivem, têm outras metas. Obedecem a um poder maior que o do Império Romano, obedecem a Jesus Cristo. Essa distância crítica para com a sociedade circundante, essa consciência de pertencer a algo maior do que aos poderes que reinam neste mundo é uma característica da cristandade primitiva. É nessa base que o autor da carta em Roma e as comunidades da Ásia Menor se comunicam e se entendem.
Para um grupo que assume essa atitude em relação ao meio social em que vive colocam-se dois problemas: Primeiro, como viver dentro de uma ordem social com a qual não concordam e que consideram errada? Até que ponto podem participar dela? E, sendo obrigados a participar, o que isso significa para a sua fé? Segundo, como lidar com a hostilidade que toda sociedade dispensa àquelas pessoas, àqueles grupos que são e querem ser diferentes, que pensam e crêem de outra maneira, que se negam a participar integralmente. A primeira carta de Pedro quer dar orientação nessa situação. Apesar de ainda não haver perseguição sistemática e generalizada aos cristãos, eles já são alvo de repressão, chicanices, processos e castigos por parte dos tribunais no reinado do imperador Domiciano entre 81 e 96 (Heussi, p. 46). Fica perigoso ser conhecido como cristão em todo o Império Romano. Há o risco de ser acusado de desordeiro, de cidadão desobediente, de desrespeito à autoridade e à religião por não aceitar certas práticas e normas oficiais. Na época da carta, isso vale também na região em que vivem as comunidades destinatárias da carta. Por isso o tema geral da carta é a postura cristã diante do sofrimento imerecido por causa dessa opressão e perseguição da sociedade circundante.
4. A quem fala o nosso texto?
O texto de 1 Pe 2.18 é dirigido aos servos, às escravas e aos escravos. Ele segue a exortação de que os cristãos devem sujeitar-se a “toda instituição humana” (2.13). Instituição humana, no entendimento dos cristãos, era o Império Romano, com suas leis, sua administração e seus funcionários. Instituição humana eram também as regras que definiam o trabalho e o comércio, as normas que regiam as relações entre mulheres e homens, pais e filhos, familiares e colegas. Uma instituição muito importante para a sociedade daquela época era a escravidão, que dava a um ser humano poder total sobre a vida e o corpo de outro ser humano. A essas instituições humanas os cristãos devem obediência “por causa do Senhor” (2.13). Esta é a “vontade de Deus” e “prática do bem”, escreve Pedro.
Entre os membros das comunidades cristãs do primeiro século havia muitos escravos e escravas. A mensagem do evangelho de Jesus Cristo, apontando para a esperança de uma vida melhor e uma liberdade além das amarras e limitações em que estavam forçados a viver, teve um apelo muito forte para essa gente escravizada. A imagem do Cristo sofredor assemelhava-se à de seu próprio sofrimento. E a afirmação de que em Cristo todas as pessoas – senhores e escravos, chefes e empregados, homens e mulheres – eram iguais significava um questionamento incrível. Havia escravos que, motivados por essa mensagem, fugiram de seus senhores. Isto pode ter sido o caso com Onésimo, o escravo fugitivo que conhecemos na carta de Paulo a Filemom. Onésimo tinha um senhor que era cristão, e Paulo pode apelar a este que recebesse o seu escravo fugido de volta como irmão. Mas seguramente a maioria dos esravos que aderiram à fé cristã não tinha senhores da mesma fé, como podemos concluir a partir de 1 Co 1.26.
5. O que o texto diz aos escravos?
A orientação que o autor da carta dá aos escravos e escravas é: Sejam submissos! Respeitem os seus senhores! E não só os que são corretos e justos, mas também os que são ruins, imprevisíveis, perversos. Pois é uma graça de Deus suportar injustiça e sofrer injustamente. Agir bem e corretamente e mesmo assim ser castigado e oprimido faz parte da vocação cristã. Jesus Cristo não sofreu também por vocês? Ele deixou o exemplo que devem seguir. Pois não tinha cometido crime algum e foi levado a julgamento, foi xingado, mas não respondeu, chicoteado, mas não reagiu, porém entregou tudo nas mãos de Deus, cujos desígnios são retos e justos. E assim carregou os nossos pecados para a cruz, para que nós, livres dos pecados, vivamos para a justiça. Por suas feridas vocês foram sarados, e isto os torna capazes de, seguindo as pegadas dele, suportar também tratamento injusto como parte da peregrinação cristã.
Vemos que a paixão e a morte de Jesus Cristo recebem aqui um segundo significado. Além de ato salvífico para a nossa redenção, também é exemplo a ser seguido. O autor da carta quer transmitir o seguinte aos servos: Como cristãos não somente nos regozijamos na redenção proporcionada a nós no sofrimento e morte do nosso Senhor por nós, mas também procuramos segui-lo, se nos toca sofrer injustamente. Não que o nosso sofrimento se igualasse ao de nosso Senhor e tivesse efeito salvífico como o dele. O nosso sofrimento não se compara ao dele. Mas, conscientes do que Ele sofreu por nós, conseguimos suportar com paciência a injustiça que sofremos.
6. Pedro se conforma com a maldade dos senhores?
Temos dificuldade, hoje, para aceitar uma postura como essa. Ela parece confirmar o que os críticos da igreja cristã têm afirmado: A religião serve para acalmar, para controlar as camadas sociais oprimidas, exploradas e injustiçadas pelos que estão no poder e possuem a riqueza. Dizendo aos escravos que devem obedecer e respeitar os senhores, inclusive os maus e perversos, a igreja coloca-se a serviço da classe dominante. Dando essa orientação aos escravos, ela aceita a injustiça e se conforma com ela.
É necessário, porém, analisar a questão no seu contexto. A sociedade do Império Romano baseava a sua economia e todo o seu funcionamento na escravidão. Sem os escravos não havia produção. Estes, juntamente com os escravos libertos e a população rural semi-escravizada, formavam a base produtiva da sociedade. Por isso, qualquer idéia libertária, qualquer vestígio de rebelião entre a massa de escravos, o mais leve que fosse, era erradicada a ferro e fogo. Os senhores tinham poder de castigar os seus escravos com a morte. Um movimento religioso no meio das camadas populares precisava, para se manter, conformar-se à ordem vigente. Era questão de sobrevivência, tanto para a fé cristã como para as escravas e escravos que a seguiam. Por isso a igreja, seguindo a orientação do apóstolo Paulo, que mandou o escravo fugido de volta a seu senhor, apelando apenas que este o recebesse como irmão (Fm 12-18), orientava os escravos a serem submissos a seus senhores, apelando para estes, se eram cristãos, a tratarem os seus escravos com justiça (além do nosso texto, também em Ef 6.5ss e Cl 3.22ss). Esta orientação aos escravos, adotada na segunda metade do primeiro século, foi mantida durante a maior parte da história da igreja. Somente no século XIX venceu, na teologia e prática cristãs, a tese de que a escravidão era uma instituição abominável e anticristã.
Mas há elementos nessa exortação de Pedro que apontam para além da injustiça presente. Quando ele, no versículo 13 do mesmo capítulo, resume o império, as autoridades civis, as normas familiares e a instituição da escravidão como “instituições humanas”, ele tira da ordem vigente o caráter do sagrado. Implicitamente ele diz aos cristãos, e especificamente aos escravos em nossa perícope: Essas instituições são temporais e temporárias, foram feitas por homens e têm poder limitado. Não podem negar a liberdade que vocês receberam em Jesus Cristo. Não têm força para destruir a vida nova que há em vós. Podem ser mudadas com o tempo. Mas, nas circunstâncias do tempo presente, vocês precisam submeter-se a elas de bom grado para que a redenção oferecida à humanidade em Jesus Cristo possa ser divulgada e a igreja cresça. Se isto implica sofrimento para vocês, tenham diante de si o exemplo de Jesus Cristo, que sofreu injustamente, salvando-os por meio de sua paixão e morte.
7. Há sentido no sofrimento das pessoas escravizadas?
Pedro sugere que esse sofrimento recebe sentido a partir do sofrimento de Jesus Cristo. Seguindo o exemplo de Jesus de não revidar a agressão, de não retornar a palavra ofensiva e hostil, de suportar pacientemente tratamento injusto e perseguição, o escravo cristão e a escrava cristã colaboram, por intermédio do bom exemplo, com a pregação do evangelho. A carta aponta para isso quando, em 2.12, destaca o comportamento exemplar dos cristãos entre os gentios, que fará com que estes, observando as boas obras, glorifiquem a Deus no dia da visitação, isto é, se converterão e estarão juntos quando o Senhor Jesus Cristo voltar. E mais, sofrendo imerecidamente como o seu Salvador, os escravos cristãos se conscientizam ainda mais da grandeza e da profundidade da obra salvífica de Jesus Cristo. Entendem que o seu sofrimento no tempo presente aponta para o mundo melhor, preparado para eles em Jesus Cristo, o reino de Deus, para o qual o seu sofrimento atual contribui, também se não entendem como.
8. O que pregar?
Sofrimento imerecido faz parte da vida cristã. Mas não é necessário para a salvação. Não encontro elementos na carta de Pedro que digam isso. A obra salvífica de Jesus Cristo é única e completa. Não precisa de complementação. Não há mérito no sofrimento imerecido, e muito menos no merecido. Mas, na hora de sofrer injustamente, nós cristãos podemos tirar paciência, força e consolo do exemplo que Jesus nos deu em sua paixão. Isto nos pode valer em circunstâncias adversas, que, no tempo presente, não podem ser mudadas.
Apesar de a escravidão hoje ser uma situação excepcional (ainda existe trabalho escravo no Brasil e há resquícios de escravidão na África), há muitas situações em que pessoas são obrigadas pelas circunstâncias a sujeitar-se a sofrimento: a empregada doméstica que sofre com os desmandos e caprichos da patroa, mas tem que engolir tudo para não perder o emprego, está numa situação comparável, em certos aspectos, à dos escravos e escravas no tempo da carta de Pedro. Não é diferente com a funcionária ou o funcionário que são demitidos porque sua consciência não permite encobrir a sonegação e desonestidade do dono da firma. A própria situação do desempregado que procura desesperadamente um emprego e só acumula negativas é um sofrimento imerecido. E que dizer da esposa que agüenta um matrimônio de abuso e desrespeito por parte do marido, para que as crianças não percam o seu lar?
Olhando para a vida diária das pessoas e famílias, para a vida de nossa sociedade tão desigual, para as nossas instituições, descobriremos muitas situações de sofrimento irremediáveis, pelo menos no tempo presente. Situações que, fortalecidas no exemplo do Jesus sofredor, precisamos suportar na esperança de que, de uma maneira que só Deus sabe, esse nosso sofrimento contribuirá para que o seu reino cresça. É claro que, assumindo essa postura, não se quer pregar a passividade ou o conformismo total. É mister discernir o que é irremediável no tempo presente do que pode ser mudado. É necessário avaliar se a obediência trará melhores resultados do que a resistência, sempre tendo em vista o alvo, que é a promessa de um mundo de paz e justiça em que somos regenerados para uma viva esperança, mediante a ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, para uma herança incorruptível, sem mácula, imarcescível, reservada nos céus para nós (1.3bs).
9. Sugestões litúrgicas
O culto ainda está sob a luz da paixão e ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo. Sugiro usar como versículo de entrada 1 Pe 1.3-5. Como hino o nº 318 do HPD 2: “Vem, Espírito de Deus”. Para o anúncio da graça, após a confissão dos pecados, pode-se aproveitar Jo 10.9, da leitura do evangelho. O Kyrie da liturgia-modelo do “Livro de Culto” (p. III.47) combina muito bem com a temática proposta da pregação. Pode-se cantar também o Kyrie eleison de Rodolfo Gaede (Livro de Culto, p VIII.341). Nas leituras bíblicas procede-se como de costume. Após a pregação, o hino 435 do HPD 2, ou outro que fale da esperança de vencer a desigualdade social. A oração geral não poderá esquecer as pessoas que sofrem devido à injustiça social e outras situações adversas.
Bibliografia
HAUCK, Friedrich. NTD 10. Die Kirchenbriefe. Göttingen, 1954.
HEUSSI, Karl. Kompendium der Kirchengeschichte. 11. Auflage. Tübingen, 1957.