Prédica: 1 Reis 3.16-28
Leituras: João 19.25-27 e Efésios 6.1-4
Autora: Elaine Neuenfeldt
Data Litúrgica: 7º.Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 08/05/2005
Proclamar Libertação – Volume: XXX
1.Motivação
Não quero mais celebrar o Dia das Mães como a “rainha do lar”, nem motivada pela idéia de que mãe tudo sofre, tudo suporta, ou o velho e desgastado “padecer no paraíso”. A maternidade pode ser ressignificada a partir das experiências das mães “concretas” de nossas amigas, das mães dos amigos e amigas de nossos filhos e filhas, de nós mesmas. Não nos enquadramos num ideal de mãe, desenhado por não se sabe quem, mas, com certeza, que não tem a nossa participação, que reflete muito pouco de nossas angústias, de nossos desejos e de nossos sonhos. Não nos encaixamos no ideal de maternidade desenhado para não se sabe quem. Somos mães, mulheres, profissionais, donas de casa, numa incrível simultaneidade que nos assusta e nos cansa, às vezes! Simultaneidade que enriquece, que nos faz múltiplas, multilocais, multivocais, multi muita coisa.
Ser mãe é ser cada uma do seu jeito. É tudo isso, e mais um pouco. É não ter manual de instrução quando o filho ou a filha está doente. É aprender na caminhada, partilhar dores e alegrias, sufocar dores, é, enfim, uma pluralidade sem ideais, sem modelos, sem caixas, sem padrões fixos definidos pela mídia ou pela cultura. O critério e parâmetro do exercício da maternidade deve ser o testemunho cristão. A palavra de Deus é a orientação, a luz e a guia de nossos passos nesse processo de aprender a ser mãe. Essa palavra vem até nós de muitas formas. Às vezes, na leitura contemplativa de textos bíblicos, de salmos, de profecias, em que Deus se compara a uma mãe que geme e sofre em dores de parto. Outras vezes, essa palavra vem misturada com a vida, com o testemunho de outras mães, com a partilha em comunidade das alegrias e prazeres de ser mãe ou também das tristezas, das dificuldades, enfim, da realidade que contorna a maternidade em nossa sociedade hoje.
A maternidade não é garantia de salvação. Enquanto mães e mulheres, somos formadas e formatadas entre luzes e sombras, entre as nossas vontades e desejos de seguir o bem e fazer o que é bom e agradável aos olhos do Senhor, mas também somos insensíveis, carregamos os sinais da falta de solidariedade nas relações. O desafio é assumir nossas luzes e sombras e conviver com estas, tentando superar, transformar e recriar as relações.
Neste sentido, é desafiador celebrar o Dia das Mães tendo como motivação bíblica um relato de experiência de maternidade tão conturbada como essa do texto.
2. O texto de 1 Rs 3.16-28
O texto encontra-se num contexto onde é exaltada a sabedoria do rei Salomão. No início do capítulo, Deus mesmo aparece ao rei em sonhos, dizendo: “Pede-me o que queres que eu te dê” (3.5). Salomão pede sabedoria: “Coração compreensivo para julgar a teu povo, para que prudentemente discirna entre o bem e o mal”.
Parece que o texto que trata da disputa entre as duas mulheres é quase uma aplicação ou verificação de eficácia do rei em exercer a sua opção pela sabedoria. A história tem o objetivo de exaltar a figura do rei Salomão. Por isso, as duas personagens mulheres aparecem sem nome. O anonimato das duas mulheres tem a intenção de colocar o rei, glorificando sua sabedoria, no centro da cena. Elas são apresentadas como prostitutas (zônôt). O hebraico usa duas formas para designar as prostitutas: zonah, que é usado em sentido próprio, como é usado para Tamar em Gn 38.24; ou com conotações de idolatria, como em Ez 16.28, Jr 3.1, Is 23.17.
Outra forma para dizer prostituta no AT é qedeshim. As qedeshim são mulheres que exerciam alguma função cultual no templo, como grupo de especialistas, funcionárias consagradas. Estudos feministas propõem que a expressão “prostituição/prostituta/o sagrada/o” deve ser repensada. O termo prostituta/o sagrada/o transfere uma idéia atual, a qual liga a esfera sagrada com a de comércio sexual, o que não corresponde ao termo em hebraico. Na Bíblia Hebraica, o termo qedeshim ocorre cinco vezes no feminino: Gn 38.21-22, três vezes; Os 4. 14 e Dt 23.18. No masculino, ocorre em Jó 46.14; 1Rs 19.24; 15.12; 22.47; 2Rs 23.7.
A figura da prostituta é usada nos textos bíblicos para demonstrar a insensatez, o reverso da sabedoria. Nos capítulos 1 a 9 de Provérbios, esse contraste entre a Senhora Sabedoria e a Dama Insensatez é colocado explicitamente. Essa contextualização do texto na literatura sapiencial motiva para a pergunta pelo uso da imagem, corporeidade e sexualidade da mulher para exemplificar a ordem ou o caos social. A prostituta aparece como representação da desordem, de uma vivência corporal que está às margens e, portanto, fora do controle da sociedade patriarcal. Por outro lado, o rei, com sua sabedoria, a qual é promovida pela construção textual, evidencia a ordem e o corpo sob controle, aceita e promovida socialmente da mulher-mãe.
A cena de 1 Reis é intrigante. Duas prostitutas-mães, uma criança morta, uma criança viva e o rei. Extremos da vida que se reúnem: prostituta-mãe, criança viva-criança morta, rei (poder e riqueza)-prostituta (pobreza e exclusão). Em meio a estes extremos, a sabedoria deve desamarrar essa trama: Quem é mãe? De quem é o filho morto? Quem está mentindo? Mas o método que a narrativa da sabedoria articula na construção da história não é ditando sentenças, nem fazendo declarações e investigações. Podemos até questionar o método no sentido de sua crueldade, de sua falta de didática, ao tomar a outra criança, a única viva, como lugar da provocação. O rei toma justamente o que de mais sagrado é para essas duas mães, o que mais dói, o que mais as vai atingir: a criança. Mas é algo de mais caro que lhes arranca a voz presa e as faz falar. É delas que vem a resposta. Elas que articulam as saídas para a crise. Elas são sujeitos.
As duas mulheres convivem, supostamente, na mesma casa, dormem na mesma cama, dividem as aflições de uma vida à margem, sem homem que as “proteja” numa sociedade patriarcal, que vê o lugar social da mulher em função de sua condição de esposa e mãe. A criança de uma morre, porque a mãe se deita sobre ela (v. 19). Ora, é crucial perguntar pelos fatores que levam uma mãe a sufocar seu bebê durante o sono. O cansaço de noites de trabalho? A embriaguez? As condições deploráveis de pobreza que levam a dividir os espaços, até da cama, com outra mulher e sua criança? Todas estas são possibilidades reais, conhecidas igualmente hoje em dia em lugares de pobreza e prostituição.
O desespero de ver seu bebê morto leva a mãe a tomar um rumo atravessado. Ela troca o bebê morto pelo filho vivo da outra e o coloca “no próprio seio”. Uma cena triste. A reação desesperada de ter um filho vivo em seu seio é plasmada aqui. Resgatar essa atitude maternal é uma forma de contrapor a interpretação que geralmente coloca uma mãe dedicada contra a outra mentirosa. Uma mãe cuidadosa contra a outra descuidada. Uma mãe “falsa” da outra “verdadeira”. As duas são mães e se relacionam com a maternidade a partir das condições que enfrentam, inseridas em seu contexto social. As duas vêm até o rei movidas pela vontade de arrancar o filho para a vida.
Se a intenção do texto é evidenciar a sabedoria, pode-se sugerir que o processo de busca pela sabedoria não começa com Salomão, com o rei. A sabedoria começa a ser explicitada na casa dessas duas mulheres, que vivem a prostituição e a maternidade simultaneamente. Elas têm acesso ao rei para que este exerça os instrumentais que lhe foram concedidos para ajudar nos conflitos e nas situações de crise em grupos sociais. Ou seja, a sabedoria é delas, que buscam os mecanismos adequados, exigem das instituições responsáveis e incumbidas de exercer julgamento que cumpram seu papel. A justiça, ou o acesso à justiça, é aberta porque elas buscam as portas e as abrem solicitando a intervenção em sua disputa. Aqui começa a situação de definir onde mora a sabedoria. A sabedoria reside no fato de o texto apresentá-las superando o papel estereotipado de prostitutas e enxergá-las como mães.
Outra pergunta pode ser dirigida pela crítica implícita no texto: Que tipo de sabedoria é esta que quer cortar uma criança ao meio? Que tipo de rei é este que propõe um absurdo desses de matar a única criança viva dessas duas mulheres, que moram e convivem na mesma casa? Não estaria entretecida nas entrelinhas dessa história uma denúncia de insensatez do rei, do palácio, da monarquia em si, que gera situações em que mães esmagam crianças, pois se apertam na mesma cama, cansadas de tanta pobreza e violência? Ou de um reinado que mata crianças, que gera situações de prostituição, de conflitos e de morte?
A sabedoria que fica como desafio no texto é a pergunta: Quem é a mãe do filho vivo, afinal? A resposta parece lógica: Ora, a mãe biológica é a mãe verdadeira! Mas, com a solução sábia do rei, outros critérios são levantados para estabelecer quem é a mãe verdadeira. As duas afirmam claramente diante do rei ser mães do filho vivo. O texto abre a possibilidade para o exercício da maternidade a partir de uma postura de defesa da vida. Mais do que perguntar quem deu à luz a criança que continua viva, a cena nos abre os olhos para uma postura de maternagem. É possível ser mãe de diversas formas. Mulheres em diferentes contextos, em diferentes situações vão atuar com mães de formas e jeitos diversos. Não há um modelo-padrão e idealizado de ser mãe, nem de ser mulher. Além de desconstruir a imagem de que prostitutas também podem ser boas mães, esse texto desafia a reconceituar a idéia mesma de ser mãe.
Salomão dá a criança à mulher que demonstra maior respeito pela vida dessa mesma criança. Podemos supor que ela também seja a mais capaz de cuidar do bebê. Isso parece endossar o conceito de maternidade como uma instituição social mais do que primariamente biológica, e, de fato, talvez consista nisso a sabedoria do rei.
3. Maternidade, sabedoria e discipulado
As leituras bíblicas que acompanham o texto da pregação são indicadoras dessa possibilidade de exercício da maternidade como testemunho e discipulado. As mulheres ao pé da cruz são discípulas do crucificado. Acompanharam Jesus em toda a sua caminhada. Permaneceram fiéis e solidárias em todas as horas. A mãe de Jesus, Maria, é ligada aqui ao discípulo amado como continuidade de sua caminhada. “Desta hora em diante o discípulo a tomou para sua casa”, diz em Jo 19.27. Ou seja, incorporou-a entre os seus. Proporcionou um novo espaço de acolhida a esta mulher que sofria a perda de um filho. Mulheres que perdem filhos são acolhidas! Talvez seja esta uma outra perspectiva que pode ser desenvolvida a partir da reflexão do texto de 1 Reis e a mãe de Jesus ao pé da cruz.
O texto de Efésios lembra o respeito mútuo que deve ser experimentado nas relações familiares. O chamado pelas relações de respeito se dá para os filhos, mas igualmente para os pais/mães: que não provoquem seus/suas filhos/as. A casa, como espaço de convivência, deve ser lugar de experiências que tragam a dignidade, que sejam exercidas com justiça, que promovam o testemunho de fé.
A Bíblia nos informa sobre diversas formas de exercer a maternidade. De Débora nos é dito que exerce sua maternidade como forma de profecia, em Jz 5.7. Outra forma de maternidade é aquela exercida pelas mães dos heróis bíblicos – Ana, mãe de Samuel, a mãe de Sansão, sem nome, por exemplo. Aqui são as mulheres que recebem o anúncio da parte de Deus através de um mensageiro. Os homens são coadjuvantes numa história em que elas são protagonistas. Às vezes, os pais nem acreditam na tarefa que é anunciada por intermédio da maternidade. Duvidam. É preciso que se lhes explique mais uma vez. Seria isso porque a maternidade também naquelas épocas era vista de forma “natural” para as mulheres, ou seja, toda mulher deve ser mãe, ou é esperado e função que toda mulher deve cumprir?
Exercer essa função que lhe é dada como lugar de revelação e de testemunho é uma novidade. Mas talvez seja inspirada pelos textos em que Deus é comparado a uma mãe. Textos proféticos atribuem a Deus características atribuídas ao gênero feminino, como o cuidado, a amamentação e a educação, ou, mais especificamente, nas funções da mulher que dá à luz, sofre e geme em dores de parto (Is 42.14; 49.15; 66. 13; Jó 38.28-30; Os 11.1-4). Ou o salmista que canta os amores da mãe que dá carinho, cuida e protege (Sl 131.1-2).
São textos que mostram uma identificação muito profunda e próxima com as experiências das mulheres. Não servem para complementar a figura do Deus Pai, único e soberano. São experiências outras, que vão além, que mostram outras formas, cores, experiências e desenhos da divindade.
A sabedoria (a hokma) e o espírito (a ruah) são termos femininos em hebraico e são atributos de Deus em forma feminina.
Outra metáfora para falar do amor e da fortaleza de Deus é a rocha. E aí, muitas vezes, a gente pensa em grandeza, imensidão, fortaleza. Mas outra possibilidade é ver a rocha como aquelas pedras usadas pelas mulheres para dar à luz, para o parto. Era uma forma de “cadeira de parto”, onde pedras eram colocadas de uma forma que as mulheres se acocoravam sobre elas e nessa posição davam à luz. Esta prática era comum nas culturas do antigo Israel, bem como é atestado em evidências arqueológicas também de culturas circundantes, como o Egito e a Mesopotâmia. Essas pedras também podiam receber atribuições divinas.
Nesse contexto, usar a metáfora da rocha para Deus assume outros significados para as mulheres, que passavam pelas dificuldades do parto na época (e hoje). Partos eram momentos de crise e de perigo. As mortalidades materna e infantil eram muito altas. E nesse momento o pedido pela ajuda de Deus adquire uma voz muito maternal. Alguns textos bíblicos poderiam ser lembrança ou memória desses murmúrios e gemidos. O texto de Dt 32.3-6, 18 fala da rocha que gera e protege. O Sl 78.15-16 alude à rocha em que brota água, fonte de vida. É no Êxodo, com Moisés, que isso acontece, mas água e fonte de vida também acontecem no parto.
4. Símbolo
Sugiro que muitas pedras sejam colocadas no centro, no chão em frente ao altar. Estas pedras podem ser colocadas pelas crianças do Culto Infantil ou pelos jovens, e também pelos pais. Muitas e variadas pedras coloridas, de diversos tamanhos. Aqui pode ser usada muita criatividade. As pedras podem ser colocadas dentro de sacos com cheiros, com ervas ou em potes com água, ou também em potes de argila com terra. No final, as pedras devem ser entregues às mães. Aqui também podem ser envolvidos os pais, os filhos e as filhas, os jovens, as crianças, de acordo com a realidade que mais está em evidência ou deve ser fortalecida na comunidade.
Essas pedras, de diversos tamanhos, formas e coloridos, representam a diversidade, a pluralidade de possibilidades de ser mãe, de exercer a maternidade. Não temos UM manual, nem A forma. Mas somos aprendizes e aprendentes como e com os nossos filhos e nossas filhas. É essa atitude de processo e de aprendizado constante que marca a maternidade. As pedras mostram, num primeiro momento, o lado duro, perene, eterno, o que também é importante. Mas o seu colorido mostra a diversidade, a pluralidade, a heterogeneidade. Pedras podem representar os tropeços, as dificuldades, os momentos difíceis que encontramos na tarefa de ser mães. Mas podem lembrar também a idéia de fortaleza, de apoio, de colocar a cabeça, como Jacó colocou sua cabeça numa pedra e sonhou com Deus.
5. Bênção
Que Deus abrace vocês com amor de pai, cuide de vocês com carinho de mãe, faça vocês sorrirem com a ternura de uma criança e guie vocês com a sabedoria de avós. Amém.
Bibliografia
REINHARTZ, Adele. Mulheres anônimas e o colapso da monarquia: um estudo de técnica narrativa. In: BRENNER, Athalya. (Org.) Samuel e Reis a partir de uma perspectiva de gênero. São Paulo: Paulinas, 2003. p. 55-84.
FONTAINE, Carole. A influência na estrutura sapiencial de 2 Samuel 11-12 e 1 Reis 3. In: BRENNER, Athalya. (Org.) Samuel e Reis a partir de uma perspectiva de gênero. São Paulo: Paulinas, 2003. p. 184-205.
CAMP, Claudia V. 1 and 2 Kings. In: NEWSOM, Carol A.; RING, Sharon H. (Ed.) The Women’s Bible Commentary. Kentucky: Westerminster/John Knox Press, 1992. p. 96-109.