Prédica: Colossenses 3.1-11
Leituras: Salmo 49.1-6,11-13,18-20 e Lucas 12.13-21
Autor: Albérico Baeske
Data Litúrgica: Festa da Ascensão de Jesus Cristo
Data da Pregação: 05/05/2005
Proclamar Libertação – Volume: XXX
Saudando Eduard Haller,
contemplador da lógica de Deus,
consolador,
intercessor.
I. A festa
Que festa? Por acaso consta em algum calendário? Ela fica registrada apenas no calendário eclesiástico e nos devocionários Castelo Forte, Semente de Esperança, Orando em Família – contudo, nem sempre acompanhada de reflexão que elucide o intuito autêntico da festa. Já que não é feriado, alude-se a ela no culto dominical subseqüente (como na Prússia iluminista, entre 1773-89, e na Alemanha sob o jugo nazista). Nos 28 volumes de Proclamar Libertação [PL] existentes, encontram-se auxílios homiléticos, salvo engano, em 17(!). A pergunta é se foram aproveitados ou considerados inaproveitáveis. Pois de que maneira explicar que se escute, em comunidades filiadas à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil [IECLB]: Ascensão? Não é assunção – de Maria? Ora, nós recitamos no culto, religiosamente, o credo apostólico com a assertiva: “[Jesus Cristo] subiu ao céu, e está sentado à direita de Deus Pai, todo-poderoso”!
Faltam só informação e conscientização quanto à ascensão de Jesus Cristo, ou a confusão e a conseqüente esquivança a seu respeito têm origens mais complicadas? Suspeito de que seja o último. Pessoas encarregadas de pregar e/ou de ensinar o elementar sentem-se inseguras pelo seguinte:
1) No âmbito das religiões, sobretudo entre as universais, assegura-se que o personagem central / o fundador experimenta ou realiza uma ascensão (p. ex., G. Mensching, Leben und Legende der Religionsstifter – Texte ausgewählt und erklärt. Darmstadt/Baden-Baden/Genf: Holle, s. a., passim). Ressalta-se a deidade dos “inventores do signo transcendental” (P. Leminski), sua eternidade e imortalidade, seu poder ilimitado e sabedoria ímpar, o céu sendo entendido como lugar das divindades, local da perpétua alegria e derradeira solução de todos os enigmas ou mistérios e domicílio definitivo do séquito feliz dos “criadores de religiões” (Leminski). O paralelismo da afirmação de “ascensão” em diferentes ambientes religiosos desestabiliza predicantes e catequistas, razão pela qual são tentados a evitar o desdobramento do evento conforme a assertiva do Credo Apostólico.
2) Sem dúvida, é absurdo chamar Jesus Cristo, que “sobe ao céu”, de “o divino astronauta”. Seriam teatralidade e carpintaria teológicas. Porém, como encaixar a “subida ao céu” na visão de mundo em nossos dias, que desconhece em cima e embaixo, que rejeita a divisão “em terrenal como oposto ao supralunar”, de tal forma que não se confirme “a acusação, tão estendida” de que a fé cristã “pertence irremediavelmente a uma mitologia passada” (A. Torres Queiruga, Fim do cristianismo pré-moderno. São Paulo: Paulus, 2003. p. 82)? Dificilmente se arranja tempo e se tem disposição para acrobacias cristã-apologéticas ante a teoria superada dos três andares/níveis ou para malabarismos astronômico-metafísicos concernentes à ascensão corporal. Oxalá isso suceda com convicção teo-lógica (cf. pl 25, p. 56s., e 28, p. 340-3) e não por preguiça intelectual ou medo de safar-se de apuros pastoral-comunitários! Pois a tarefa da gente que prega e ensina não é, em absoluto, “geografia celestial” (R. Bohren, Predigtlehre. 2. ed. München: Kaiser, 1972. p. 286) penosa, mas, sim, alegre proclamação de deus que – com, em e por Jesus Cristo – é ubíquo, onífero e monoagente.
3) Aí é que está o busílis. Pregamos e ensinamos, via de regra, o que o espírito de nossa época julga verossímil: Deus, o vizinho compreensivo, e Jesus Cristo, o exemplo a ser imitado (conforme o refrão raso “amar como Jesus amou” [pastoral popular luterana {PPL}, O Povo Canta {OPC}. Palmitos, 1994. p. 120]; já raramente sob o enfoque da “utopia ética”, na qual P. Leminski vê o Jesus a. Cr. [grifo meu] empenhado [Vida. Porto Alegre: Sulinas, 1998. p. 113-72]). Perdemos a quintessência cristológica e sua adequada asserção. em palavras de M. Lutero, Jesus Lristo exemplum absorve Jesus Cristo sacramentum. O que nada mais é do que obstruir o acesso a deus que se auto-revela em Jesus Cristo, que carrega até ele. O que nada mais é do que espiritualizar, aliás evaporar a Deus, que está aqui em pessoa, porque vive e ama. Resultado: em lugar do evangelho, que não é divulgado, e da “prédica, privada do seu ponto culminante” (Bohren, o.c., p. 283), o sermão e a catequese viram alerta para bons modos e a poimênica se resume a rápidos serviços anímico-psíquicos anestésicos (cf. PL 28, p. 340s.; em especial: D. Bonhoeffer, Vida em Comunhão. 3. ed. São Leopoldo: Sinodal, 1997. p. 22s.). O Jesus Cristo que “apagou … o título de dívida que existe contra nós; e o suprimiu, pregando-o na cruz” (Cl 2.14) virou o psicólogo para elevar nossas condições emocionais. Uma vez que tal supressão do proprium christianum pouco ou nada resolve, irrompe a frustração e, se esta não força a desistir de labutar junto à base comunitária, reforça o legalismo, o liturgismo e o igrejeirismo no exercício ministerial.
Perante a “ascensão de Jesus Cristo” verifica-se a quantas anda nossa cristologia. Lutero afirma que aquela é plenissimus articulus desta. A partir do século IV, a igreja comemora “a ascensão de Jesus Cristo” como “festa em grande estilo” (A. Agostinho). Ela a mantém entre as chamadas festas do Senhor, cujo escopo reside direta e exclusivamente no próprio Jesus Cristo. Correspondendo à localização da “ascensão” entre “páscoa” e “pentecoste”, a igreja insiste na “exaltação/sobreexaltação” de Jesus Cristo / no seu “sentar à direita de Deus Pai, todo-poderoso” (seg. Sl 110 [a perícope da Bíblia Hebraica mais citada e refletida no testemunho das comunidades primordiais que confessam a Jesus Cristo]; Mc 14.62 par.; At 2.33-36; 3.21; 5.31; 7.55; 1 Tm 3.16; Fp 2.9-11; 3.20; Rm 8.34; Ef 1.20-22; 4.7-12; Cl 3.1; Mt 28.18.20; Hb 1.3; 4.14; 6.19s.; 7.26; 9.12,24; 1 Pe 3.18-22; Jo 7.39; 12.32; 14.2s.; 16.7; 20.17) em detrimento do fenômeno de sua “subida ao céu” (seg. Lc 24.50s.; At 1.9-11; Ac 16.19). A igreja “camufla, escamoteia e maquila” (Leminski) o testemunho do qual é incumbido quando se debruça sobre o jeito da “subida” no espaço e, destarte, se emaranha nas questões aludidas de física e astronomia (cf., acima, i.2). Ela cai em “lucubrações infantis” e fantasia de “um céu de bufonarias” (Lutero).
A igreja é “sã na fé” (cf. Tt 1.13) e transmite “a doutrina salutar” (cf. 2.1; 2 Tm 4.3) à medida que testemunha “o sobreexaltado” que, anteriormente, além de se encarnar, lutar e morrer, foi sepultado e desceu ao inferno – tudo pro nobis. Ele “subiu” para nos poder servir ainda mais e melhor: aquele que agora intercede junto ao Pai pelos seus; aquele que “está agindo entre nós / com seu espírito e dons” (M. Lutero, Obras Selecionadas [os] v. 7. São Leopoldo: Sinodal / Porto Alegre: Concórdia, 2000. p. 538.17s.) e em toda a parte; aquele que intervém hoje e aqui, inclusive quando lhe apraz – e lhe apraz por nossa causa! –, de modo pessoal e real, material e localizado nos meios de sua livre graça poderosa; aquele que “há de vir”, sem demora e disfarce, “a julgar os vivos e os mortos”, salvando os seus. Dito diferente: na e através da “festa da ascensão de Jesus Cristo”, a igreja não fita um acontecimento passado, mas, sim, Jesus Cristo, o ainda encoberto todavia presente, que domina a atualidade, que luta diariamente nos seus contra “pecado, morte, diabo, lei e mundo” (Lutero), que vence a seu modo onde e quando quiser e a quem pertence o futuro. Logo, a igreja é exercitada na fé e agraciada com a certeza na fé – e explode em alegria à vista da iminente substituição de crer por ver. Certeza e alegria são os pilares da vivência da fé. Eis a caracterização da cristologia deduzida biblicamente e vivida presencialmente. Antes de muitos, J. Chr. Blumhardt (1805-1880) com seu hino confessante: “Jesus vence. / que Jesus vence é um fato, para sempre, / seu será todo mundo… / sim, Jesus vence, embora o povo do Senhor / esteja ainda duramente prostrado… / assim, no final, de todas as correntes / o Senhor a criatura irá salvar … / sim, Jesus vence! cremos nisto com certeza / e confiadamente lutamos… / sim, Jesus vence“ (id., Alles und in allen Christus. Gesammelte Aufsätze. Neuendettelsau: Freimund, 1975. p. 308; grifo meu) ajuda nesta percepção e comunicação apropriada; igualmente Bonhoeffer, para ele, “a festa da ascensão de Jesus Cristo” é a festa de alegria por excelência (cf. id., Gesammelte Schriften, v. 4. München: Kaiser, 1961. p. 118-22; v. 3. Ibd., 1960. p. 409-15).
II. A Comunidade
1) Testemunhar a Jesus Cristo, “o sobreexaltado”, é a maior honra, a maior satisfação, a maior alegria de seu povo. Tal fato não o cega, pelo contrário, aguça sua perspicácia para seu ambiente e os endereçados de seu testemunho. Testemunhas de Jesus Cristo foram convencidas por ele próprio e sabem agora: ele é inevitável e dispõe de um modo particular em qualquer contexto. Não podem viver sem o entranhamento bíblico-confessional, a acurácia convivencial e a procura constante da concreção balizada pela existencialidade de seu depoimento. seu testemunho sucede não na lua, no imaginário, no virtual, mas no experimentado a duras penas, na terra tal qual é, nua e crua, dura e cheia de abismos, sobressaltos e salteadores. É imprescindível ter em mente uma comunidade real ao falar de “o sobreexaltado”. A exemplo daquela com que convivi cinco anos e a qual apresento, doravante, em breves traços, dentro do pastoralmente responsável.
2) É uma comunidade em formação. Há pouco foi desmembrada da paróquia vizinha. O que se julgou conveniente, uma vez devido à distância geográfica da antiga sede paroquial e no propósito de melhorar o dito atendimento pastoral; e outra, para auxiliar na viabilização financeira da nova paróquia. Daí o pessoal se sente, simultaneamente, marginalizado e cortejado. Motivo para fortalecer nele a tendência enraizada em gente desbravadora nas frentes agrícolas do país e filiada à IECLB via tradição familiar, de se virar sozinha e quebrar os galhos de seu jeito, sobretudo “os troço da igreja”. Esta tendência aumenta quando a comuna é pequena e isolada.
Vista de fora, tal conjuntura poderia formar contexto promissor para descoberta e exercício do sacerdócio geral dos crentes. Porém quatro contingências o dificultam bastante.
A primeira: a idéia de que a fé é questão de foro íntimo, combinada com falta de saber elementar a seu respeito, resulta em analfabetismo na articulação da fé. Formulando agudamente, a fé fica encastelada e muda.
A segunda: a composição sociológica da comuna. Alguns são donos de consideráveis extensões de terra ou representantes de multinacionais ligadas ao agronegócio. A expressiva maioria é formada por capatazes, empregados fixos e trabalhadores sazonais. todos dependem dos grandes proprietários em tudo, desde a corrida para buscar um remédio na longínqua farmácia, até a vinda do pastor, paga ou intermediada pelos “home”. Contudo, estes não são tão importantes e eles o percebem sem o admitir, pois sofrem humilhação nas mãos dos bancos; um perdeu, em pouco tempo, dois terços de sua vasta área. Em compensação, precisam ser alguém, pelo menos nas famílias e na comuna. ai daquele “sujeito [mulher ou filhos, pior ainda, um empregado] que complique [adicionalmente] a vida” por ter participado em encontros (p. ex. sindicais e eclesiais) fora de seu ambiente diário ou por “ler demais na Bíblia”.
A terceira contingência: cada um – patrão, peão e familiares – traz consigo uma imagem de igreja. Na solidão da diáspora absoluta, a mesma interioriza-se com vigor inextinguível. Embrenha-se de tal forma nas pessoas que passa a integrar sua identidade. O que acontece, precipuamente, entre mães e donas de casa. Em regra, os pais acompanham o afã de suas parceiras para não perder também as rédeas debaixo do próprio teto. Trata-se, quase sempre, da imagem de igreja como prestadora de serviços religiosos em situações de passagem e circunstâncias limítrofes de vida. Se em algum lugar tal imagem de igreja é plausível, então o é nas vicissitudes da existência toda incerta em regiões de desbravamento primário. Inclusive, parece lógico que – na ânsia de alcançar o almejado serviço religioso – se mude de igreja quando não se é atendido de pronto conforme a própria cabeça ou, ao menos, se brigue para que “nossa igreja” desempenhe de novo o papel que se crê lhe caiba.
Ligado a isso, a quarta contingência: o conceito que se possui do pastor. Sua tarefa é a de feiticeiro de batina, de pistolão entre o povo e o que se entende por deus. Quase todo mundo se lembra da figura e gosta de contar “causo” a seu respeito; às vezes aparecem frases soltas, de caráter moralístico, pronunciadas por tal pastor; normal e abundantemente, no entanto, citam suas extravagâncias ou fraquezas “que a gente relevava porque o pastor fez o que nois queria”. Na memória, o pastor – tenha ele sido desse jeito mesmo ou apenas imaginado, não interessa agora – se funde com a igreja e é critério para avaliação de seus colegas. Quando o atual pároco se assemelha àquele “nosso pastor”, é bem-vindo, recebe paga, assam-se churrascos para ele, organizam-se caçadas e pescarias com ele, cuida-se que sempre leve algum produto da estação “pra muié e os fio” – pode até defender, uma vez, “os índio, estes bicho à-toa”. Se frustra as expectativas armazenadas nas cabeças, então não só perde todas as regalias, mas corre o risco de ser tirado da comuna na marra.
Dada a situação surgida, pessoas mais à margem da comuna começam a questionar. iniciando, evidentemente, com o pastor, acabam se informando sobre a ordem vigente e a base confessional da IECLB. Devagarzinho, abrem a Bíblia. Notam, admitem e enfrentam “a fé subnutrida”. Procuram por alfabetização no expressar a fé em jesus cristo. Adquirem literatura esclarecedora. Deixam-se animar a participar de encontros supraparoquiais de formação de líderes. Visitam recém-chegados, possíveis futuros membros. Em horas vagas ou em meses sem serviço colocam-se à disposição dos demais. Convidam pessoas para estudos bíblicos em casa. Reúnem mulheres, crianças e jovens para rever conhecimentos básicos da fé e de sua vivência. Confia-se a eles o que acontece às escondidas, pedindo conselhos em ocasiões como: senhora benfeitora da comuna ajuda a organizar sessões de baixo espiritismo, avó benzedeira constrange confirmanda, pai de família traz amante para casa. Assim são levados a fazer uma leitura crítica da comuna e de seu ideário. Denunciam “o comércio com batismo e casamento na igreja”. Arriscam, embora hesitantes, alguma contestação aos “home e suas patroa”. Tudo sob os olhares cada vez mais desconfiados da comuna, mas também sob os olhares do “sobreexaltado”.
III. O texto-base para a prédica
1) A Epístola aos Colossenses (Cl) junta-se ao grupo das deuteropaulinas. A afirmação se baseia na comparação entre ela e as paulinas (1 Ts, 1 e 2 Co, Gl, Fp, Fm, Rm), especialmente no que se refere à construção das frases, ao jeito de raciocinar e à abordagem teológica (de certa maneira semelhante a Ef). O conjunto dessas constatações legitima a afirmação. Uma leitura entranhante, já na versão portuguesa, pode apurar: na Cl não aparecem “pecado” no singular, “justiça de Deus” e “crer”, termos empregados por Paulo e objeto de sua constante reflexão; os destinatários não são tratados de “[meus] irmãos”, como nas epístolas paulinas; forma e conteúdo da argumentação em Cl 2.6-23 são diferentes dos em Rm 6.
Não se nega que o autor anônimo tenha, de seu jeito, continuado a linha de Paulo, reinterpretando o testemunho deste para seu contexto (assim como Paulo fez com as confissões anteriores a ele, p. ex.: 1 Ts 1.10; 1 Co 11.23-26, 15.3b-5; Gl 4.6 par.; Fp 2.6-11; Rm 1.3s., 10.9 par.). Que justamente aí reside a intenção do remetente desconhecido, deduz-se do fato que temos cl sob o nome do apóstolo.
Na cristandade dos primórdios não se pensava, como hoje, em direitos autorais individuais, mas em autoridades da revelação, da doutrina e da tradição (cf. Cl 1.23d-25; 1.29 – 2.5.7b; 4.3d-18) – lógico dentro do conceito fundante da encarnação e central para o posterior reconhecimento canônico da epístola. Recorria-se aos nomes das mencionadas autoridades a fim de frisar a importância daquilo que se queria “ensinar” (cl 1.7,28; 2.7; Paulo, passim, “anuncia”/“prega”/“proclama”, não “ensina”): o que o apóstolo dos gentios (cf. Gl 2.6-9; Rm 1.5; 15.15s.) escreve tem incomparavelmente mais peso do que o que escrevem discípulos dele. O autor de Cl é tão cristalino nessa convicção – qualquer truque ou enganação nem por sonhos! – quanto é veemente na objeção a uma “filosofia” (polêmica direta: 2.4,8,16-23; polêmica indireta: 2.9-15 [cf. 1.15-20]), visceralmente contrária à pregação do apóstolo dos gentios (no início, veiculada por Epafras? [cf. 1.7s.; 4.12s.]), que está em voga em Colossos e cidades vizinhas ou que já grassa nas comunidades bem novas da região (cf. Cl 2.1; 4.13,15s. [veja Ap 3.14-22]), situada no vale do rio Lico, sudoeste da atual Turquia. Cl é, pois, um verdadeiro panfleto.
2) Eis o tema de Cl: Jesus Cristo e o cosmo. Seu testemunho consiste numa cristologia dinâmica (cf. Blumhardt, acima, i.3.-fim) ou cósmica (1.13-20, 2.3.9, 3.1bc), provocada por uma cosmovisão, concreta e peculiar – que impõe regras (2.11a.20-23) e exige determinado comportamento (v. 16-19) –, e/ou aplicada de modo crítico à mesma. Tal testemunho se articula em categorias de espaço e de substância, diferente do de Paulo, que usa categorias de tempo e de esferas de domínio em sua asserção cristológica. Cl assevera:
a) O criador reconciliou o universo (não só o planeta azul!) consigo mediante a morte de Jesus Cristo na cruz, realizando a paz entre si e o universo (1.20-22; 2.21; 4.3). Jesus Cristo triunfou sobre “os elementos/rudimentos do cosmo” (a transcrição de stoicheia tou kosmou com “espíritos {maus} que dominam o universo” [2.8c,20b] na Bíblia Sagrada – Nova Tradução na Linguagem de Hoje, 2000, é infeliz, por abrir espaço para espiritualizações), sobre as potências, imaginadas ou reais, destruidoras e contrárias a deus (1.13; 2.10b), pondo-as a nu e ridicularizando-as perante todo mundo (2.15), reduzindo-as a meras criaturas (1.16s.). Jesus Cristo é o da cruz: palpável, corporal e concreto, não etéreo, espiritual e abstrato.
b) A comunidade, receptora da epístola, foi inteirada da referida ação salvífica concluída (1.21-23,26s.; 2.2s.), integrada nela por batismo, fé e perdão das transgressões (2. 10-14,20a; cf. 1.13s.; 3.3.4a), e está na iminente dependência de “ser manifesta em glória” (3. 4c).
c) Jesus Cristo, o senhor do cosmo, é “a cabeça do corpo”, ou seja, da igreja (1. 18,24; 3.15), a qual nele “crê”, o “ensina e confessa” (Fórmula de Concórdia), sendo mediador da criação do cosmo e seu reconciliador (1.20). Esta igreja integram aquelas ínfimas comunidades recém-surgidas à margem do Lico e cujos membros crescem em direção a Jesus Cristo (1.18; 2.10,19), que está no “alto” (3.1). Ele e a igreja toda são inseparáveis. O seu corpo é visível, também lá junto ao Lico – fato que corresponde à corporeidade de Jesus Cristo na cruz.
d) Daí urge que os membros incorporados no crucificado, “sua vida” (3.4a; cf. v. 3), em vez de se evadirem para o mundo das idéias e especulações, visões e êxtases, conscientizem-se do comprometimento de Jesus Cristo com eles e, simultaneamente, do compromisso deles com ele, andando “de maneira digna” dele, sendo “férteis em boas obras” (1.10; 2.6s.), procurando “as coisas do alto” (3.1s.), enfim, vivenciando (3.5 – 4.6), em comunidade e família (!), seu status salvífico (1.2a,5-6a,6d,11a-c,12-14,22,26s.; 2.6s.,10-14; 3.1a.3s.) entre os ribeirinhos do Lico.
3) Constitui desafio para a labuta interpretativa no novo testamento de entender e descrever a “filosofia” que cl rejeita de todo. a meu ver, G. Bornkamm elaborou, até o momento, a mais lúcida caracterização da mesma (Die Häresie im Kolosserbrief. in: id, Das Ende des Gesetzes – Paulusstudien [Gesammelte Aufsätze / Band i]. 2. ed. München: Kaiser, 1958. p. 139-56). Bornkamm parte de alusões da própria epístola e as interpreta, colocando-as para dentro do universo religioso da época. Resumido ao extremo:
a) A “filosofia” recriminada é uma prática religiosa sincretista-mágica, que mistura componentes judaicos heterodoxos (cf. 2.11s,14s.,16-18,21s.) com iranianos/persas (cf. v. 8-10,15s.,19s. [cf. gl 3.13,19,23, 4.5]) e cristãos. Ela não combate a fé em Jesus Cristo, mas cisma em superá-la, cultuando tanto a Jesus Cristo como o sol. Ambos são considerados revelações misteriosas do “maioral dos altíssimos – hipsistos”, da suprema divindade completa, do éon imortal, que produz, perpassa e preenche o cosmo e suas forças, dando-lhes fundo e rumo. Para os iniciados, as revelações são transparentes e convincentes (cf. 2.18cd, 23a-b). Cristo figura como o princípio por excelência da moral, e o sol como o princípio por excelência da luz e da força geradora/salvífica do cosmo.
b) Hipsistos, a divindade cósmica, a luz imortal, oferece refúgio, mais: participação nele, plena deificação ante todo tipo de adversidades e libertação total de qualquer mal, desde que o neófito se coloque solito a caminho das esferas do poder absoluto e da luz completa, isolando-se do mundo e observando rigorosos dogmas (cf. 2.18b,20bc) e regulamentos ascéticos (cf. v. 23c). A prática em tela persistia, tanto é que pais da igreja dos primórdios se referem a pessoas que se autodenominam “hipsistários” (ao que tudo indica, J. W. v. Goethe, falecido em 1832, foi um deles).
c) A fusão de Jesus Cristo com “os elementos/rudimentos do cosmo”, sim, a substituição do primeiro pelos últimos, faz com que Cl assere a radical incomparabilidade e incompatibilidade entre ambos (2.8-10). Ora, a comunidade – por causa, mediante e em Jesus Cristo – foi libertada da dominação dos “elementos/rudimentos do cosmo” (cf. 1.13s.,20; 2. 10b b-15), participa já da “plenitude da deidade [autêntica]” (2.9b,10a) e não necessita de mais nada “como se ainda vivesse no mundo [velho, tiranizado pelos ‘elementos/rudimentos do cosmo’]” (v. 20c). O veredito irônico-sarcástico de Cl a respeito da “filosofia” exprobada acha-se em 2.23. Bornkamm traduz, parafraseando: “embora isto [a obediência aos dogmas estabelecidos pelos ‘elementos/rudimentos do cosmo’] aparente ser sabedoria – o que se costuma chamar de ‘serviço voluntário’, ‘humildade’, ‘dominação do corpo’, não tem, porém, nada a ver com ‘honra’ e serve [tão-só] para abarrotar a carne” (o. c., p. 152 – nota 27).
4) Cl 3.1-11 é o caput da inerente lógica prática / do natural desdobro parenético (que 4.6 encerra) do testemunho teológico central de Cl que consta, imediatamente antes, em 2.6-23. Enquanto 3.1-4 sintetiza ou reafirma a verdadeira apreensão da salvação, 3.5-11 a “puxa [como não pode ser diferente] para dentro da vida [como ela é]” (Lutero). Eis a dinâmica bíblica: a salvação motu proprio fica virulenta na vida cotidiana. “A palavra da verdade do evangelho chega, produz frutos e cresce” (1.5s.). Trata-se de uma só ação – ação sempre desencadeada por Jesus Cristo mesmo (já em 1.21-23b; 2.16-23) – , nunca sucede em dois tempos consecutivos, primeiro a salvação e, depois, sua vivência localizada. A fórmula calcedonense também se aplica a ela: é inconfundível e imutável, inseparável e indivisível. No afã de acompanhar a dinâmica bíblica, não me restrinjo, no que segue, a 3.1-4 (cf. PL III, p. 70-7, e XXI, p. 117-20).
a) 3.1-4: Rebuscando 2.12s,17b, o trecho insta pela junção indissolúvel de Jesus Cristo com a comunidade; ele é a vida dela e ela é seu corpo. Esta realidade não é chavão igrejeiro, nem abstração dogmática; veja suas três características interligadas. A primeira: o ser com Jesus Cristo é exclusivamente comunitário (sete formulações referentes à 2ª pessoa do plural). A segunda: o ser com Jesus Cristo explode no testemunho – ressurreição (CF. 3.1a), exaltação (cf. v. 1c), vinda em glória de Jesus Cristo (cf. v. 4a) e esperança da comunidade (cf. v. 4bc). A terceira característica: o ser com Jesus Cristo inclui per se uma conduta da presente vida que diferencia a comunidade de seu ambiente (cf. v. 2[s.]). “Em meio ao mundo do pecado, a igreja dos pecadores perdoados” tem “de testemunhar que ela é tão-só a propriedade de Jesus Cristo, vive e quer viver tão-só de seu consolo e de sua determinação na esperança de sua epifania” (Declaração Teológica de Barmen da Igreja Evangélica Alemã, 1934 [Barmen]).
aa)A conjunção “portanto” (3.1a)” liga, no sentido gramatical, os versículos que seguem com 2.6-23 e, sobretudo, esmiuça, no sentido teológico, o que 2.10-14,20a significa existencialmente. A transplantação da ação salvífica de Jesus Cristo – sucedida no batismo, na fé e no perdão das transgressões – relativiza a morte como fim desta vida e, ao mesmo tempo, a vindoura conclusão daquela ação. A salvação “lá do alto” (3.1b,2b; cf. 1.5) já alcançou a comunidade. Jesus Cristo já incorporou a comunidade em si – acontecimento que constitui base, sustento e força motriz da esperança desta. Devido a Jesus Cristo, a comunidade já passou pela morte como abismo entre Deus e ela própria (3.3a), estando entrementes em “vida e salvação” (Lutero), ou seja, “escondida com cristo em Deus” (v. 3c). falta apenas abrir a cortina (segundo Lutero) para que tal realidade seja desvelada e conhecida, “epifânea” – não à comunidade, que dela já está ciente, pois foi-lhe “manifestada” (1.26b) em virtude da “proclamação da palavra da verdade, o evangelho” (1.5b) e “do mistério [da salvação por causa, mediante e em Cristo]” (1.25s.; cf. 2.2d; 4.3c), de sua outorgação pelo batismo e de sua aceitação em fé, sujeita a atribulações (3.3b), mas, sim, ao cosmo e aos ainda “mortos por causa de suas transgressões” e práticas religiosas (2.13a). o que ocorre na “epifania” de Jesus Cristo (cf. v. 3.4), a qual implica a transformação do cosmo. então, o crer da comunidade será substituído pelo ver e as atribulações acabarão.
A comunidade saberá e experimentará “coisas inauditas, jamais ocorridas, jamais experimentadas” (F.-W. Marquardt, Was dürfen wir hoffen, wenn wir hoffen dürften? – Eine Eschatologie. Güterloh: Kaiser / Gütersloher, 1993. vol 1. p. 28). Elas não consistem de espetáculos celestes e, sim, de um novo, mais profundo compreender do mundo que conhecemos, “numa forma agora [transparente e palpavelmente] permeada pelo amor de Deus, reconciliada, livre de todas as feridas da alienação da vida” – de um mundo, pois, “mantido coeso pelo schalom…, que simultaneamente é zedaka [paz total com justiça integral]…, que satisfaz a cada um na necessidade específica de sua existência” (o. c., p. 24; cf. M. Lutero, os v. 7, p. 555.11-5; J. C. Maraschin (edit.), O Novo Canto da Terra. São Paulo: IAET, 1987. p. 65; PPL, OPC, p. 32s.; p. 92s.; p. 158s.).
ab) Os verbos “buscar” (3.1b) e “pensar” (v. 2a) assinalam a percepção de vida das pessoas in loco et concreto. “lá do alto” não quer dizer “lá em cima”; jamais é categoria espacial, mas teológica / cristológica. “Lá do alto” é tropo para Deus, que está perto dos seres humanos de forma imediata e tremenda, concedendo-lhes fôlego e sentido de vida e decidindo a seu respeito, e “onde cristo vive” (v. 1c). Sob hipótese alguma, Jesus Cristo está lá em cima. Pelo contrário, lá onde ele está há “as coisas lá do alto”; aliás, elas são ele mesmo. Ele diz: “onde eu estou terás o céu. / nada há de separar-nos” (M. Lutero. in: ieclb, Hinos do Povo de Deus [hpd]. 5. ed. São Leopoldo: Sinodal, 1984. 155,7-fim; veja a estrofe inteira. cf. id, os v. 7, p. 554.13 – 555.15).
Jesus Cristo está “assentado à direita de Deus” (v. 1d; cf. segundo Sl 110.1; veja, acima, I.3.2º§), ocupando o lugar de honra de executivo exclusivo de sua decisão. E a decisão de Deus é “arrancar-nos do poder das trevas e transportar-nos para o reino do seu Filho amado, no qual temos a redenção – a remissão dos pecados” (1.13s.). Por causa, mediante e em Jesus Cristo, Deus mantém seu rosto voltado para nós e seu coração aberto. Com efeito, Jesus Cristo, “assentado à direita de Deus”, os torna, de vez e para sempre, incontornáveis, criativos e decisivos. Inexistem barreiras para este seu serviço ubíquo, onífero e monoagente. No cosmo, os jeitos de seu serviço são ilimitados; em sua comunidade, visam e envolvem nossos cinco sentidos. Daí seu serviço em palavra e sacramentos.
“Pensar nas coisas lá do alto” é avaliar e julgar tudo nesta terra a partir de Jesus Cristo, o servo “sobreexaltado”. “Buscar as coisas lá do alto” é ser por ele marcado e direcionado em tudo nesta terra. O mesmo exprime o responsório prefacial na liturgia da ceia do senhor: “elevai os corações. / ao senhor os elevamos”. Ele, a cabeça da igreja, está “lá no alto”, ou seja, junto a deus, por ora invisível, no entanto a igreja, o seu corpo, está na terra e visível. Logo, as coisas “aqui da terra” (v. 2b; grifo meu), em especial religiosidades e suas práticas (cf. 2.20-23), são nocivas à comunhão indissolúvel na qual a comunidade peregrina neste mundo com Jesus Cristo, o “assentado à direita de Deus”, ao encontro da “epifania” dele e dela. a terra e seus poderes não causam mais obsessão sobre a comunidade peregrina, por isso ela pode se dedicar à terra como criação de Deus.
ac) a vida da comunidade, aqui e agora, corresponde ao destino de Jesus Cristo: morre e é sepultada, e está sendo ressuscitada – sempre “com ele” (cf. 3.3 e v. 1a). O crucificado ressurreto / o ressurreto crucificado é fundo e rumo de sua comunidade. a expressão “com Cristo” – três [até quatro?] vezes em quatro versículos (v. 1a,3[a?]b,4c; cf. já 2.12,13b,20a) – incute tal realidade. a existência da comunidade é, no sentido abrangente, Cristo-fundada. Em absoluto é produção própria dela, ao contrário, é feito do “assentado à direita de Deus”, do servo ubíquo, onífero e monoagente. Provém daí a certeza da salvação da comunidade. Esta chega de fora dela: “sua vida é escondida com cristo em Deus” (v. 3b), independentemente do fato de que sua presente vida de longe não seja adequada a seu status junto a Jesus Cristo e a deus. Razão por que quanto mais se confessa a certeza da salvação tanto mais urge insistir em que a gente salva assuma sua condição via nova vida já. Testemunho cristológico e ética nele embasada são irmãos gêmeos.
b) 3.5-11: o trecho persegue dois objetivos. o primeiro: lembra a comunidade de seu compromisso com “o sobreexaltado”, que, em gratia praeveniens, se sacrifica por ela, cujos integrantes eram “outrora estrangeiros e inimigos pelo pensamento e pelas obras más” (1.21), “para que” a comunidade doravante “lhe pertença e viva submissa a ele, em seu reino, e o sirva [cf. 3.23s.] em eterna justiça, inocência e bem-aventurança” (Lutero). A salvação foi imputada por causa, mediante e em Jesus Cristo, nada há para acrescentar – graças a Deus! Logo, nenhuma preocupação mais com o céu, mas toda com a terra. Vale: “o céu já é nosso, vamos, pois, colocar as nossas mãos na terra” (P. Casaldáliga). Quem faz o contrário blasfema contra Deus, “tira a honra de Cristo”, tornando-se pessoa que vive nas nuvens, dita espiritual, que cai nos buracos cavados por “diabo, do mundo e nossa carne” (Lutero), revestidos de coisas e sentimentos religiosos (cf. os hipsistários antigos e modernos). O segundo objetivo do trecho: corta qualquer esoterização e metafisização do “assentado à direita de Deus”. Ele exercita na desmitificação/desmitologização bíblica da “subida de Jesus Cristo ao céu”. Ressalta que a fé no “sobreexaltado” liberta da alienação especulativa, faz cair na real, “diz as coisas como elas são” (Lutero) e entra no campo aberto e duro da vivência da fé.
ba) Cl afiança que a vivência da fé não é moleza, nem pequena modificação, mas constitui ruptura radical entre antes e agora (cf. 1.21s., 2.13, 3.7s.) e vitalícia (cf. 3.5a,8a, 9a) para as pessoas. A vivência da fé dói, corta fundo, custa a velha vida. É “mortificação dos membros terrenos [os membros = o corpo = a própria pessoa tal qual é; as pessoas não têm vícios, elas são intrinsecamente viciadas, o que fica patente nos membros corporais e nas práticas destes]” (v. 5a,7,9b; cf. 2.20; Rm 13.12-14) e “abandono” (v. 8a; cf. 2.11,15) da vida costumeira; é largar o velho jeito de levar a vida e assumir o novo (v. 9b-11; cf. Gl 3.27; Rm 13.12,14). A vivência da fé não se dá por encanto, é trabalho árduo. Não sucede somente uma vez e então está estabelecida, importa “que o velho ser humano em nós… seja afogado e morra com todos os pecados e maus desejos, e, por sua vez, … ressurja diariamente novo ser humano, que viva em justiça e pureza diante de deus” (Lutero).
Para Cl, a vivência da fé é existência nova, não apenas existência diferente. Não é melhor, mas também não é o que se entende por natural. Parece cruel e desumana, porém é alternativa sã. Não é maltrato, ao contrário, manifestação de alegria. A vivência da fé é divisor de águas em meio a tantas visões e opções de vida. Consciente de sua situação de diáspora, ri ao ser classificada de obsoleta. A vivência da fé jamais se sujeita aos eventos e espíritos dos tempos. Cl olha ao redor, avaliando criticamente o que se acha e pratica no vale do Lico. Resiste à máxima: é como é e continua sendo como sempre foi. Chama a vivência da fé a estar alerta, a ser inconformada e inconivente. Enfatiza que se exponha: não fique na defensiva – passe à ofensiva; estorve a engrenagem das regras da vida, convencionadas na sociedade por acomodação, comodidade e mínima resistência geral possível.
E isso por dois motivos. O primeiro: “a ira de Deus” (3.6; cf. 1 Ts 1.10; 5. 9; Rm 2.5; 3.5s.; 5.9; Ef 5.6), ou: “o dia de Deus, grande e terrível” (Jl 3.b). “Por isso mesmo devemos amá-lo [a Deus], confiar nele e de boa vontade cumprir seus mandamentos” (Lutero). Ninguém se iluda, deus coloca os critérios, não a sociedade. Este fato determina os juízos da comunidade. O segundo motivo: “o despir da pessoa velha” e “o revestir da nova [, acontecidos no batismo]” (v. 9b-10a), “que está sendo recriada [por deus criador] para que perceba tal qual a imagem [que está sendo restituída nela] do seu criador [percebe]” (v. 10b [cf. 2 Co 4.16]; tradução livre). Conforme Cl, a vivência da fé reflete, in loco et concreto, o fato de que “vida e salvação”, outorgadas à comunidade, têm fôlego e energia. A vivência da fé, embora “escondida com cristo em Deus” sob progressões e regressões, testemunha que a comunidade é “o corpo do sobreexaltado” na terra, ao qual pertence o cosmo (cf. 1.16c-20), e não é nenhum conventículo com fins animantes e sociais.
bb) Embora a vivência da fé ocorra em contextos de certos modos e hábitos de viver, Cl articula que jeitos concretos são inassimiláveis. Como a fé no “assentado à direita de Deus” não compactua “com outros acontecimentos e poderes, figuras e verdades” (Barmen; cf., acima, III.1.-3.), de semelhante modo sua vivência rejeita comportamentos específicos, encontrados e aplaudidos no meio social circundante (Cl 3.5bc,8b-9a).
É provável que “os catálogos de vícios” em 3.5b e 8b – duas vezes cinco, correspondendo aos dez dedos – sejam tomados formalmente do ensino moral estóico popular da época, veiculados e adaptados pelo judaísmo helenista (opinião unânime dos biblistas consultados). O que só sublinha a convicção de Cl de que a vivência da fé acontece nesta terra e, em absoluto, não contra ela ou acima dela. Destarte a vivência da fé pode se aliar a critérios e apelos morais conhecidos – se são seguidos pela sociedade que os escuta e, talvez, aceita, é outra coisa – e aproveitá-los em sua prática (cf. Fp 4.8). Contudo, sua compreensão, estritamente por causa, mediante e em Cristo (cf. cl 1.10a; cf. 3.17b,18b,20b,23b; 4.1b), e sua realização são genuínas de Cl, o que transparece nas ênfases e acréscimos com que o remetente cerceia aqueles critérios e apelos. Eis a dinamite.
Em relação aos mencionados catálogos, constata-se: no primeiro, o artigo antes de “avareza”, bem como o acréscimo “que é idolatria” (Cl 3.5c; cf. Ef 5.5c) e, no segundo, a frase adicional “não mintais uns aos outros” (v. 9a). Aí Cl traz à tona um estilo de vida deveras alternativo; um convívio humano contrastante. Pois, por via de regra, as pessoas se produzem e garantem através de avareza e mentira. é sua razão de ser: acumular bens e prazeres, sobretudo sexuais (cf. Ef 5.5) – os termos arrolados em 3.5b são todos relacionados à sexualidade, vão de brincadeiras sexuais sobre o laissez-faire sexual até a promiscuidade generalizada. Para chegar lá em cima – radicalmente diferente de “lá do alto” da Cl –, ao clímax do gozo, é imperativo inevitável mentir, ou seja, cumprir sem reservas as normas de subida ao topo. Incute-se a base de tais normas às pessoas desde pequenas: fazer o que todo mundo faz, ou seja, fugir da própria responsabilidade e da verdade. Motivo alegado: todos agem assim; quem vai contra sucumbe. Deste modo, as pessoas confundem umas as outras. Constroem uma jaula na qual ficam imprensadas (cf. Ec 5.10) – uma das manifestações dos “elementos/rudimentos/poderes” dos quais Jesus Cristo liberta – e que cl qualifica de “idolatria” (cf. Mt 6.24). “aquilo… a que prendes o coração e te confias, isso… é propriamente o teu Deus”, o que, por outro lado, significa nada mais nada menos do que “a si mesmo reputar-se deus e em tal [idéia absurda] se erigir” (Lutero).
bc) Os comportamentos recriminados em Cl 3.5bc e 8b.9 destroem a convivência humana seja dentro, seja fora da comunidade. Documentam que condutas humanas nunca se limitam ao âmbito individual, pois o indivíduo convive com outros, por conseguinte as atitudes pessoais permeiam suas mais diferentes relações interpessoais. quando, então, as condutas humanas mudam, muda o convívio entre os seres humanos.
Em v. 5b, a outra pessoa é tratada como objeto, mantida dependente, chantageada, rebaixada, oprimida e explorada de muitas maneiras, físicas e psíquicas, impossibilitando uma parceria integral, solidária e vitalícia entre iguais.
Mormente v. 5c acentua a implosão do convívio social (cf. Ec 5.10; 1 Tm 6. 10), pois “a avareza” – a acumulação de bens e sua defesa custe o que custar – comprova que o ajuntado tem origem injusta; sua avidez conquista o poder total para segurar o acumulado e aumentá-lo de maneira ininterrupta e irrestrita, brecando qualquer tentativa de aproveitá-lo para o bem comum. “a avareza” torna os seres humanos entes econômicos totais e auto-suficientes, constrangendo-os a fazer ídolos de si mesmos. Razão pela qual “a avareza é idolatria”; Lutero viu nela “o principal pecado mortal” e, repetidas vezes, enfatizou que as pessoas que se entregam a ela sejam excomungadas.
Também v. 8b e 9 cantam pelo mesmo diapasão: os instintos negativos / os afetos narcisistas subjugam e soltam a língua, solapando a confiança entre as pessoas e estragando sua comunhão. a língua envenenada agride, mancha, tira a honra dos semelhantes – com o que infernaliza ou, até, inviabiliza a existência humana (cf. Tg 1.26; 3.5-12; Mt 5.21). por isso: “devemos desculpar o próximo, falar bem dele e interpretar tudo da melhor maneira” (Lutero).
bd) Conforme Cl, a vivência da fé enxerga e denuncia os comportamentos em tela, os rejeita e combate. Ela o empreende tanto mais que sabe que são normais antes de “ouvir e compreender, na verdade do evangelho, a graça de Deus” (1.5s.; cf. v. 10-14,21s,27cd,28; 2.5d; 3.3) e, agora, os averigua como onipresentes aliciações desastrosas para a comunidade, santa, inculpável e irrepreensível perante deus (cf. 1.22b,23). Assim a vivência da fé conhece, reconhece e segue “a imagem do seu criador” (v. 10b; cf. Gn 1.26s. e 2 Co 4.4; 5.17); é “o conhecimento / a sabedoria” (Cl 2.2s.) que se opõe diametralmente à “aparência de sabedoria” (v. 23), pois age em conformidade com o criador, que quer bem à sua criatura. “a imagem do Deus invisível” é o próprio Jesus Cristo (Cl 1.15). Este outorga sua imagem à comunidade via pregação, fé, batismo e perdão dos pecados (cf. Gl 3.25-27 [Rm 13.14a; Ef 4. 24]). Ela é, portanto, imago dei, restituída por causa, mediante e em Jesus Cristo (cf. 2 Co 3.18; Rm 8.29) – imago dei como saiu originalmente da mão de Deus e corresponde à vontade dele: a comunhão precógnita entre o criador e as criaturas, e estas entre si.
Tal comunhão, restabelecida na fé, leva a vivência da fé a visar, apressar e esperar o convívio humano global, sem separação alguma, em comunhão reconciliada, por ser encaminhada, mantida e permeada por Jesus Cristo (v. 11; cf. 1 Co 12.13; Gl 3.27s.). A raiz da separação entre as pessoas reside em sua rebeldia contra deus (cf. Gn 3.8 – 11.9). O convívio humano global reconciliado se baseia e mantém, se impõe e alastra na comunhão imediata com Jesus Cristo (cf. Cl 1.13; 1 Co 15.28).
Jesus Cristo é “tudo” (Cl 3.11c): “norma e realidade, lei e vida; ele é a unidade de todas as diferenças [v. 11ab] e, por isso, a quintessência do mundo unido e reconciliado por ele. E ele ‘é [tudo] em todos’ [v. 11c]: em cada pessoa, membro do seu corpo, ele é a força de sua vida e a realidade de sua existência” (E. Lohmeyer, Die Briefe an die Philipper, Kolosser und an Philemon. Göttingen: Vandenhoeck, 1961. [Der Brief an die Kolosser] p. 144 [Kritisch-Exegetischer Kommentar über das Neue Testament. 9. Abt. 12. Aufl.]).
A vivência da fé, contudo, prefigura o convívio humano global no presente convívio no seio das comunidades junto ao rio Lico. Pois os destinatários de Cl já “receberam a Cristo Jesus, o senhor, logo andem nele, nele radicados e edificados, e confirmados na fé” (2.6s.).
IV. Sugestões para o culto
Tomara que a reflexão até essa altura tenha deixado claro: apenas alguém que convive com uma comunidade concreta pode pregar sobre Cl 3.1-11. Por isso é importante que os pregadores e as pregadoras se conscientizem daquilo que se pensa, almeja e pratica na mesma – preferencialmente no campo religioso. A partir daí, não faltará ânimo, fôlego e fantasia para contextualizar a perícope, inclusive em mais de uma oportunidade e com diferentes abordagens.
1) Sugiro quatro temáticas distintas, que perpassarão os respectivos cultos:
a) o “lá em cima” dos presentes ao culto – antes de todos, naturalmente dos pregadores! – com palpáveis desdobramentos nocivos ao convívio humano contrapõe-se ao “lá d[n]o alto” de Cl, com desdobramentos nas esferas pessoal/social e comunitária, que visam, apressam e esperam o convívio humano global reconciliado. A comunidade já foi resgatada, por isso ri de destinos, encara poderes manifestos e ocultos, é livre de opiniões que se tem dela.
b) “Vida e salvação” já são dadas por causa, mediante e em Jesus Cristo. A comunidade tem tudo, não pode ganhar mais nada. Tal fato cria estilo alternativo de vida, individual e comunitário, na sociedade circundante, ensaiando o que será a nova humanidade. A comunidade local, chamada ao culto pelo próprio Jesus Cristo, é a prefiguração concreta da nova criação. A comunidade, em toda sua insignificância e debilidade, é fator insubstituível do novo céu e da nova terra.
c) A vida da comunidade, chamada ao culto pelo próprio Jesus Cristo, “está escondida com Cristo [grifo meu] em Deus”, não está, simplesmente, escondida em Deus. Quer dizer: Jesus Cristo é quem diferencia entre a comunidade e a vida dela, avalia e orienta sua vida. Logo, a última se caracteriza por atribulação e conseqüente penitência, por alegria e conseqüente testemunho, por coragem e conseqüente insistência na superação de tudo aquilo que separa os seres humanos hoje. Agindo dessa maneira, a comunidade não impõe Jesus Cristo ao mundo, nem o defende perante este, apenas indica para Jesus Cristo, que já venceu – sub specie dei, o que basta.
d) “Subida de Jesus Cristo ao céu” versus “Cristo está sentado à direita de Deus”. Jesus Cristo, “o sobreexaltado”, é o servo onipresente, onífero e monoagente de “seu corpo”. Ele aproveita e emprega tudo o que é diário e comum aos cinco sentidos humanos. Desse modo liberta “seu corpo”; concede-lhe já parte nele próprio, o que tão-só torna público quando “se manifesta em glória”; encaminha-o para transformar o que aí está.
2) Importa que o intróito e a(s) leitura(s) bíblica(s) combinem com a temática escolhida (veja I.3.2º§). EEm detrimento dos textos no cabeçalho, que acompanham Cl 3.1-11, não podem faltar Sl 110; Fp 2.6-11; Rm 8.31-39 e At 2.33-36. Igualmente a escolha dos hinos seja consoante o tema selecionado (veja III.4.aa); será difícil omitir hpd 73s.; 155s.; 162; 175; 181; 187; 208 – e os v. 7, p. 554.12 – 555.15 (2ª coluna; melodia HPD 15).
3) Referente à “confissão dos pecados”, mencionem-se comportamentos concretos, danosos e incoerentes, em conexão com a temática escolhida, os quais a prédica retoma, dando-lhes plasticidade. Relativo às orações, fiquem cristalinos tanto o louvor e a gratidão concernentes a “vida e salvação” já como a expressão do ardente anseio pela substituição do crer pelo ver.
4) Animo a organizar encontros de conversação sobre o(s) culto(s) havido(s). Além de verificar se sua mensagem foi entendida – mais não é da conta do pregador e da pregadora! –, é mister ajuda comunitária contra o pleno pecado das pessoas que pregam: sua tendência à abstração.
RECOMENDAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS
Textos para “ruminar” (lutero) referentes a:
I.2.: Igreja Evangélica Luterana [IEL], Livro de Concórdia [LC]. 4. ed. São Leopoldo: Sinodal / Porto Alegre: Concórdia, 1993. p. 585.36 – p. 586.39.
R. Bultmann, Crer e Compreender – Artigos Selecionados. São Leopoldo: Sinodal, 1987. p. 20s.
(= A tarefa da desmitologização sob a perspectiva da essência do mito); p. 37.3º§
(= O acontecimento ocorrido em Cristo é a revelação do amor de Deus); p. 40s.
(= A cruz de Cristo); p. 45 (= Conclusão).
I.3.1º§: M. Lutero, OS v. 4. São Leopoldo: Sinodal / Porto Alegre: Concórdia, 1993. p. 18s., 214-6.
V. 1. Ibd., 1987. p. 250-6; v. 7, 2000. p. 395.14-23 (= IEL, LC p. 452.38s.), p. 460.24 – p. 461.28 e p. 464.19 – p. 465. 8 (IEL, LC p. 375.1 – p. 376.10 e p. 378.4 – p. 379. 10).
V. 8. Ibd., 2003. p. 124.9 – p. 127.14 (= M. Lutero, Pelo Evangelho de Cristo – Obras Selecionadas de Momentos Decisivos da Reforma. Porto Alegre: Concórdia / São Leopoldo: Sinodal, 1984. p. 173-6).
D. Bonhoeffer, Vida em Comunhão. São Leopoldo: Sinodal, 1982 p. 9s. (= O que é “comunhão entre cristãos”; p. 15s. (= “o que é amor segundo Jesus Cristo); p. 17 (= “unido na fé, não na experiência”).
3º§: M. Lutero, OS v. 7, p. 537.5 – p. 538.23 (cf. HPD 97) e p. 492.21-36 (cf. HPD 155.9s.).
v. 4, p. 271 e Estudos Teológicos, São Leopoldo, v. 42, n. 2, p. 98s. [= nota 46]. 2002.
III.1.-3.: J. Comblin, Epístola aos Colossenses e Epístola a Filemon. Petrópolis: Vozes / São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista / São Leopoldo: Sinodal, 1986. p. 19-21.24/1º§ (= fé em Jesus Cristo versus religiões) [comentário bíblico].
4a.ab: M. Lutero, os v. 7, p. 554.13 – 555.15.
ab/ac: o mesmo assinalado sob I.3.3º§.
b.bb: M. Lutero, os v. 7, p. 333.30 – p. 341.15 (= IEL, LC, p. 394.1 – p. 402.48).
bd: J. Comblin, o. c., p. 67s.
Textos para consultar referentes a:
I.2.: R. Bultmann, o.c., p. 11-45.
A. Torres Queiruga, Fim do cristianismo pré-moderno. São Paulo: Paulus, 2003. p. 25-36.82-91. 201-42.
I.3.2ºS.§§: K. Barth, Credo – Comentários ao Credo Apostólico. São Paulo: Novo Século, 2003. p. 111-20.
G. Aulén, A Fé Cristã. São Paulo: ASTE, 1965. p. 181-215.
H. Küng, Ser Cristão. São Paulo: Paulinas, 1976. p. 305-7.
P. Tillich, Teologia Sistemática. São Leopoldo: Sinodal / São Paulo: Paulinas, 1984. p. 368-71.
C. E. Braaten. in: ID. & R. W. Jenson, Dogmática Cristã v. 1. São Leopoldo: Sinodal, 1990. p.535-9.
K. Nordstokke. in: W. Altmann (Org.), Eu creio – nós cremos. A fé cristã ontem e hoje à base do Credo Apostólico. São Leopoldo: Sinodal, 2004. p. 127-33.
A. Baeske. in: W. Altmann, o. c., p. 63-79.
II.1.: ID, Estudos Teológicos, São Leopoldo, v. 42, n. 2, p. 92s. 2002.
III.1.1.: E. Lohse, Introdução ao Novo Testamento. 4. ed. São Leopoldo: Sinodal, 1985. p. 87-93.
2.: J. Moltmann, O Caminho de Jesus Cristo – Cristologia em dimensões messiânicas. Petrópolis: Vozes, 1993. p. 366-415.
3.: J. Comblin, o. c., p. 14-8.
4.: p. 63-8.
W. Schrage, Ética do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1994. p. 249-62
4.aa: G. Aulen, o. c., 201-6 (= propter christum)
ba/bd: D. Bonhoeffer, Discipulado. 3. ed. São Leopoldo: Sinodal, 1989. p. 188-93.
bc: M. Lutero, OS v. 5. Ibd., 1995. p. 446-93, e, em especial, H. Assmann / F. Hinkelammert, A idolatria do mercado – Ensaio sobre economia e teologia. São Paulo: Vozes, 1989; comparando com A. Dorfman, Avareza – Terapia. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999 [Coleção Plenos Pecados]. (Dezembro/2003)