Prédica: Efésios 2.1-10
Leituras: Salmo 46.1-7 e João 8.31-36
Autor: Werner Wiese
Data Litúrgica: Dia da Reforma
Data da Pregação: 31/10/2005
Proclamar Libertação – Volume: XXX
1. Introdução
O texto para a prédica de hoje dirigia-se originalmente aos cristãos na Ásia Menor. Lá havia uma série de comunidades cristãs, fruto do trabalho missionário dos primeiros anos e das primeiras décadas depois da morte e ressurreição de Jesus de Nazaré, o Cristo de Deus. A igreja em Éfeso era uma das mais expressivas na Ásia Menor, se não a mais expressiva. A Carta aos Efésios é um escrito circular, destinado a ser lido em várias comunidades cristãs. Isto acontecia também com outras cartas (Cl 4.16; cf. também 1Ts 5.27). Disso deduzimos que as instruções da carta são supracomunitárias.
2. Elementos do contexto da carta e da época
Esses abrangem a origem da comunidade cristã em Éfeso, a razão de ser escrita e questões de conteúdo.
a) A origem da comunidade cristã em Éfeso. Ela não surgiu da noite para o dia, mas foi fruto de longo e penoso trabalho missionário de várias pessoas; o apóstolo Paulo dedicou dois anos de trabalho intensivo nessa cidade (At 18.18ss; 18.24ss; 19.19.1ss, especialmente v. 10; 20.17ss; 1Co 15.32). Mais tarde, também João trabalhou nessa comunidade cristã (cf. Ap 2.1-7).
b) A razão de essa carta ter sido escrita. Não é possível dizer com precisão quando a carta foi escrita; provavelmente entre os anos 57-62 d.C. Ela não se dirige a comunidades recém-fundadas, mas a comunidades já estabelecidas há mais tempo e que tiveram que enfrentar vários problemas, tais como: a relação com a sociedade civil pagã; a infiltração e recepção de doutrinas fraudulentas na igreja; o cansaço, formalismo, ativismo e o risco de cisão na própria comunidade ou cristandade (cf. At 20.17ss; 1Tm 1.3-7). A carta quer manter a unidade da igreja cristã (Ef 4.1-6).
c) O conteúdo da carta. Não podemos retratá-lo minuciosamente aqui. Mas ele está intrinsecamente ligado ao item b, acima mencionado. Efésios pode ser considerada a carta por excelência no Novo Testamento, que zela pela unidade da igreja cristã (Ef 4.1-6). Igreja esta composta de judeus e gentios (Ef 2.11-22). Que de ambos se constitua uma só comunidade de fé, edificada sobre o firme fundamento apostólico e profético, cuja pedra de unidade é o próprio Cristo (Ef 2.20); aliás, ele é a cabeça (Ef 4.15). A comunidade de fé é corpo de Cristo a ser edificado, por cuja razão Deus lhe deu apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres (Ef 4.11-16).
3. Elementos exegético-teológicos do texto
Chama a atenção que o apóstolo trabalha fortemente com expressões antitéticas, como: mortos – vida (v. 1, 5); mortos em delitos e pecados – nos ressuscitou … em Cristo (v. 1, 5, 6); filhos da ira – criados em Cristo (v. 3, 10); não de obras – para boas obras (v. 9, 10). Isto nos faz ouvir atentamente o texto proposto para a prédica para o Dia da Reforma da Igreja.
v. 1: A tradução de Almeida inclui logo no v. 1a: “ele nos deu vida”. Esta expressão não consta do texto grego e sua inclusão não é feliz, pois nos induz a pensar imediatamente em vida sem antes ter percebido que vida não é algo óbvio, mas é dom de Deus em sentido duplo: vida biológica e vida eterna em Jesus Cristo. De vida o apóstolo só fala a partir do v. 5. via de regra, todos os gentios eram mortos diante de Deus e sem esperança (Ef 2.12; 1ts 4.13b). Os termos que o apóstolo usa – delitos e pecados (paraptomatha e hamartias) – evidenciam que o estar morto diante de Deus não caracteriza apenas um estado de coisas que faz do ser humano uma vítima inocente, mas denota uma realidade marcada por ações a caminho ou no caminho; caminho oposto ao caminho de Deus.
v. 2: Isso é confirmado pelo verbo andar (peripateo) e a construção da frase toda que está ligada ao verbo: “andar de acordo com a era deste mundo” (periepatesate kata ton aiona tou kosmou toutou). A segunda parte do v. 2 circunscreve a primeira parte. essa é uma típica construção para caracterizar um andar correspondente à ou conformado com a realidade sem esperança de Deus (Ef 2.12). Mundo, aqui, não é sinônimo de criação, que Deus nos confiou para a administrar de forma responsável, mas é expressão de uma realidade ou grandeza invisível que se opõe à realidade Deus e, por isso, gera morte.
v. 3: Essa grandeza faz refém a todos os seres humanos; muito provavelmente sem que a maioria o perceba. Esta era também a situação dos agora membros da comunidade cristã de Éfeso. Os reféns dessa grandeza tornam-se escravos da sua própria conduta (cf. também Rm 1.21ss). E não é por menos que o apóstolo os chama de “filhos da ira”. É verdade, do céu não só se revela a justiça misericordiosa de Deus (Rm 1.17), mas também a ira de Deus (Rm 1.18).
v. 4: De fato, a situação do ser humano, independentemente se ele cultiva ou não uma espécie de religiosidade, seria definitivamente desesperadora não fosse a intervenção de Deus. Aqui neste versículo é declarado e proclamado o rompimento do círculo vicioso da morte eterna. O apóstolo vinha preparando esse anúncio desde o início da carta. e em nosso texto, nos v. 2-3, o autor já fala no tempo passado, “andastes outrora”, todos nós andamos outrora. Finalmente ecoa com ímpeto: “mas Deus, sendo rico em misericórdia …”. Em Rm 12.1, tendo a mesma realidade em vista, Paulo escreve “das misericórdias de Deus”.
v. 5-7: Nestes versículos a grandeza dos feitos de Deus é descrita com palavras que a razão humana não consegue captar e decodificar. Por exemplo: “e estando nós mortos … nos deu vida juntamente com Cristo, … juntamente com ele, nos ressuscitou, … nos fez sentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus; …”. Verbalmente significa “nos fez sentar nos celestiais” (cf. também Ef 1.3). Chama a atenção que o texto grego do v. 1 ao v. 7 usa um único ponto final, dando a impressão de que o fluxo das palavras do apóstolo se encontrava sob compulsão divina (anagke theou), a exemplo de Ef 1.3-14. A tônica desses três versículos é inteiramente cristológica.
v. 8-9: Aqui nos defrontamos com a síntese teológica do texto como um todo. A conjunção porque/pois (gar, que é uma partícula pós-positiva) introduz e destaca o agir misericordioso de Deus em jesus Cristo, de tal maneira que fica evidente que está excluído todo mérito e toda virtude por parte do ser humano, seja quem ele for. O acúmulo de vocábulos teológicos, que enfatiza o agir de Deus, dá na vista: graça (charis), salvação (soteria), fé (pistis); dom de Deus (theou to doron). Estes vocábulos nos lembram do dia da reforma da igreja e poderão ser explorados de forma atualizada na prédica.
v. 10: Como no v. 8, também aqui o apóstolo usa a conjunção pois/porque (gar). Não é por acaso que essa conjunção é usada somente nesses dois versículos do texto todo. Eles fundamentam tanto o agir salvífico exclusivo de Deus quanto a finalidade desse agir. A salvação (v. 8) não tem um fim em si mesma, mas sua finalidade está fora dela. O agir salvífico de Deus reconduz o ser humano ao propósito de Deus com o mesmo: o ser humano é “criado em Cristo Jesus para boas obras”. Também estas não são invenções e méritos humanos, pois Deus as preparou, isto é, deu as condições para que o ser humano redimido as concretize, ou seja: a graça e a redenção precedem as boas obras. Este é o sentido do v. 10. Boas obras de forma alguma devem ser confundidas com obras da lei, feitas para permutar a salvação. Obras da lei em nenhum lugar são classificadas pelo apóstolo como boas obras.
4. Elementos homiléticos e estruturais
Dos elementos de contexto e exegético-teológicos podemos partir para a estruturação e para aspectos homiléticos que facilitam a elaboração e exposição da mensagem. Estruturação e elementos homiléticos de fato são inseparáveis.
4.1 – A estruturação do texto
Não é difícil estruturá-lo para a prédica. Existem várias possibilidades de fazê-lo, sem que se usem artifícios que forcem o texto. Nós nos limitamos a sugerir apenas uma forma de estruturação do texto:
1) v. 1-3: a realidade pré-cristã dos efésios ou a realidade humana fora de Cristo
2) v. 4-7: por meio de Jesus Cristo Deus intervém nessa realidade
3) v. 8-9: por meio de Jesus Cristo Deus renova o ser humano
4) v. 10: a realidade do ser humano em Cristo e o propósito de Deus para ele
4.2 – Elementos homiléticos
a partir da análise e estruturação feitas até aqui, apontamos para alguns elementos homiléticos. Sugestões temáticas:
1ª temática: A diferença entre outrora e agora
2ª temática: O agir/a graça de Deus faz a diferença
Ao optar por uma das sugestões temáticas, é recomendável que o “orador” leve duas coisas em consideração: uma é que se “costure” a ligação entre a temática e o Dia da Reforma da Igreja. A outra é que se “costure igualmente” a ligação entre Dia da Reforma da Igreja, a temática e a sugestão estrutural pela qual se opta no desdobramento da prédica para o dia.
Qualquer uma das temáticas sugeridas e a estruturação proposta são facilmente deduzíveis do texto da prédica, mas sua formulação não deve ser entendida como uma regra fixa. Destaquemos alguns itens:
1) A estrutura do texto e a temática da prédica mostram a radicalidade da corrupção do pecado e a necessidade de uma intervenção profunda nessa situação, como somente Deus pode efetuar. Aqui os v. 1-3 merecem destaque e Jo 8. 33-34 pode entrar no viés.
2) Nosso tempo ou nossa realidade está prenhe da necessidade de mudanças (reformas) e ao mesmo tempo ocorrem constantes e rápidas mudanças. Pergunta-se: as mudanças e os reclamos da igreja cristã são de fato sustentáveis e saudáveis? O reformador Lutero não propôs, em primeiro lugar, novidades, mas trouxe à tona o que há séculos estava soterrado e obstruído: o evangelho como revelação da justiça graciosa de Deus e o acesso ou retorno às Sagradas Escrituras. Aqui nos defrontamos com profundas necessidades. Destacamos os v. 4-7 e Jo 8.35-36 podem ser mencionados.
3) Destaque-se a grandeza dos feitos de Deus por intermédio de Jesus Cristo, não por último como o próprio reformador Lutero a experimentou e proclamou publicamente. Neste item, os v. 8-9 deveriam ser enfatizados e também remetidos a Jo 8.31-32, 36.
4) Os grandes feitos de Deus por meio de Jesus Cristo não têm um fim naqueles que os experimentam, mas têm um propósito com o povo de Deus. Como a Reforma destaca, a salvação não vem por obras da lei e méritos humanos, mas a salvação deve conduzir para boas obras. As “boas obras” são indispensáveis para a vida em nossos dias, dentro da família, na vizinhança, na igreja cristã, na sociedade como um todo. Quem experimentou a misericórdia de Deus é um/a livre e feliz devedor/a dessa misericórdia para o seu semelhante. Isto torna o testemunho cristão autêntico dentro de um mundo enfermo e egoísta. Enfatizam-se aqui o v. 10 e o Sl 46.1-7.
5. Recursos litúrgicos
Confissão dos pecados: Senhor, nós nos queixamos de tantas coisas erradas no mundo e somos capazes de denunciar o mal dos outros. Mas te confessamos e admitimos que somos pecadores, e às vezes nos escondemos atrás desse fato e não reconhecemos que pecamos em palavras e ações que prejudicam o próximo, aumentam o mal no mundo e te desonramos. Senhor, queiras perdoar-nos por isso e despertar em nós um profundo reconhecimento dos nossos pecados para não só vivermos da tua graça, mas que a vivamos concretamente no lugar onde nos colocaste como sinal daquilo que é bom para todos. Amém.
Intercessão: Senhor, intercedemos pela tua Igreja espalhada e reunida no mundo inteiro, conceda a ela a busca pela tua palavra de maneira nova. Foi por meio da tua Palavra que concedeste a reforma no século XVI. Pedimos, faze-nos silenciar diante da tua palavra preservada como testemunho profético e apostólico e desperta mais pessoas para a proclamarem hoje com alegria e clareza. Recomendamos-te especialmente os enfermos, os privados de espaço de vida, os perseguidos por tua causa e sua justiça. Olhe com misericórdia sobre toda a tua criação e aumenta em nós a esperança por novos céus e nova terra, onde habita justiça, conforme tua promessa. Amém.
Bibliografia
BANGEL, JOHANN ALBRECHT. GNOMON. Auslegung des Neuen Testaments in Fortlaufenden Anmerkungen. 7. reedição da 3. ed. de 1876, Vol. 2/1. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt, 1960.
CONZELMANN, HANS. Der Brief an die Epheser. in: NTD, vol. 8. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1976.
Jerusalemer Bibel-Lexikon. Kurt Henning (ed.). Neuhausen-Stuttgart: Hänsler-Verlag, 1990.