Prédica: Gálatas 4.4-7
Leituras: Isaías 63.7-9 e Mateus 2.13-15, 19-23
Autor: Haroldo Reimer
Data Litúrgica: 1º. Domingo após Natal
Data da Pregação: 26/12/2004
Proclamar Libertação – Volume: XXX
Tema: Natal
1. – O contexto oculto
O contexto do culto e da pregação sobre Gl 4.4-7 há de ser uma certa ressaca das celebrações e festividades do Natal. Neste ano, há uma coincidência de três dias festivos e cúlticos natalinos consecutivos.
Em vários lugares e comunidades de nossa igreja, a véspera de Natal é um momento alto nas celebrações natalinas, em que muitas expectativas e também “obrigações” da religiosidade cultural natalina são resolvidas. É o momento em que se vive de forma forte o tempo mítico das origens dessa data na religião cristã. Os vários elementos culturais que foram sendo agregados através dos tempos a essa data têm aí o seu lugar privilegiado: presépio como recomposição do momento fundante em termos bíblicos, árvore de Natal, enfeites, velas, presentes, cantos tradicionais etc. Nas casas, agrega-se ainda o elemento de uma ceia que, dependendo das condições, pode ser mais farta ou mais modesta. Esse conjunto de ações religioso-culturais quer de alguma maneira expressar essa data da plenitude dos tempos.
O dia de Natal propriamente dito continua a respirar esse tempo mítico de recomposição do ciclo da fé (Gross, p. 39). No templo permanecem os enfeites e os adereços, que querem ajudar a lembrar as ações fundantes dessa celebração, bem como as inserções que grupos culturais diferentes foram agregando a esses tempos especiais ao longo da história da fé cristã e que as comunidades, diversamente, procuram cultivar e transmitir. Dependendo do lugar, porém, esse dia pode também já ter sofrido um esvaziamento em termos de participação. Lembro aqui de uma comunidade urbana em que o ponto alto era a véspera de Natal; em outra, marcada por contexto de diáspora luterana no centro-oeste brasileiro, busca-se condensar esse momento numa celebração noturna numa data mais próxima ao Natal. Em muitas cidades litorâneas, por exemplo de Santa Catarina, acontece um êxodo rumo às praias.
Qual é, então, o realce especial do primeiro domingo após o Natal um ou dois dias após o momento climático da celebração? A participação nos cultos não há de ser a mais expressiva; talvez os membros mais tradicionais, mais apegados a seu lugar e a seu ritmo, talvez até por limitações financeiras, sejam as pessoas que estejam compondo a comunidade cúltica desse dia. Volta-se, pois, aos poucos ao “rotineiro” das celebrações.
2. – As leituras
As duas leituras destacam ações salvíficas de Deus em favor do seu povo. Com isso estabelece-se um vínculo temático com os conteúdos característicos do espírito de Natal.
O texto de Is 63.7-9 fala expressamente das “benignidades do Senhor” (v. 7), com o que provavelmente há uma referência aos eventos fundantes do êxodo, seja o da travessia do mar dos juncos (Êx 14), seja o da travessia do deserto, o novo êxodo indicado nos textos do Deutero-Isaías. Essas benignidades (hebraico: hesed) de Deus em favor do seu povo estão fundamentadas na gratuidade do amor de Deus. Ele se torna assim o salvador (hebraico: moshi’ah) de Israel.
Na continuidade do texto, há referências a situações de desamparo por parte de Israel. Isto é motivo de clamor para nova intervenção divina. Com isso o profeta provavelmente está indicando para rupturas de relações de aliança do povo com Deus, mas também para o rompimento de relações entre o próprio povo. Seria isso indicação velada de rupturas com fundamentos da Torá? De uma forma geral, situações que requerem nova intervenção divina estão relacionadas muitas vezes com rupturas com a Torá enquanto indicador do caminho salvífico de Israel.
O texto de Mt 2.13-15,19-23 indica que o caminho do Salvador da plenitude dos tempos vive uma situação de contradição com o poder da lei, como é indicado por Paulo na Carta aos Gálatas, mas também com o poder temporal, indicado aqui pela necessidade da fuga ao Egito. De lá o menino retorna como o redentor, como um novo Moisés. Com isso estabelece-se a ligação também dessa leitura com o tema natalino, mas também com o tema da ação salvífica de Deus por seus filhos, aqui figurado na pessoa do menino Jesus.
Para a reflexão das conexões entre os três textos, é importante considerar, embora o texto de Gálatas fale da plenitude dos tempos, que “a ligação entre Deus e a história humana não é algo que começa em Cristo, mas perpassa – de forma especial – a revelação de Deus na história do povo de Israel” (Gross, p. 40). Com essa reflexão pode-se evitar de cair em esquemas temporais delimitados da ação da graça de Deus. Se Jesus é entendido, aceito e proclamado como a graça de Deus que se tornou forma humana, então é o ponto alto da história da relação de Deus com a humanidade, e de forma especial com Israel. Todo o tempo da criação é, na verdade, tempo da graça de Deus. A vinda do messias-criança leva essa relação de gratuidade, graça e amor divinos a um ponto climático. Há, pois, uma continuidade na história da graça. Com isso também a relação entre graça e lei recebe nova luz. A superação da lei pela liberdade da graça sempre compreende e supõe a continuidade da própria lei. O evangelho está intrinsecamente vinculado com a própria Torá.
3. – A Carta aos Gálatas
Sobre a carta de Paulo aos Gálatas, é bom ter presente que se trata de um escrito nos inícios do cristianismo originário, que pela relevância do autor-apóstolo e do próprio conteúdo tornou-se orientador ou normativo em termos de práxis comunitária. Trata-se, pois, de uma epístola circunstancial, que se tornou dogmática. A dimensão mais importante a considerar em relação à Carta aos Gálatas é que se trata da epístola da liberdade e da justificação pela fé. A pregação da liberdade na e através da fé em Jesus Cristo marca o ponto alto desse escrito, assim como deve ter marcado a própria pregação apostólica na comunidade. Essa liberdade é outorgada por Deus ao ser humano por graça e fé sem a colaboração de obras (da lei). Isto constitui um critério de fé fundamental nesse escrito.
A liberdade outorgada por Deus ao ser humano pela fé em Jesus Cristo impulsiona (quer impulsionar) a pessoa crente e a comunidade a um exercício de fé em que as assimetrias sociais, raciais e de gênero sejam gradualmente superadas. Isso se expressa de forma clara no final do capítulo 3 (v. 28), onde Paulo parece assumir e transmitir uma fórmula batismal, na qual a superação dessas assimetrias teria um lugar de confissão de fé pessoal e comunitária, sobretudo por ocasião de batismos. A superação das assimetrias não significa de modo algum um nivelamento das diferenças existentes no seio de uma comunidade cristã. As diferenças existem e devem ser percebidas como tais, mas não devem ser tomadas ou transformadas em fator de desqualificação e separação. A comunidade cristã é uma espécie de campo experimental de novas relações sociais. Isso vale para relações em termos etnoculturais, em termos hierárquico-sociais e em termos das relações entre homens e mulheres. Na lide pastoral com comunidades da IECLB, percebe-se quão difícil isso pode ser às vezes. Uma comunidade cristã deve ser um espaço criativo, experimental para a superação de tais assimetrias rumo à constituição de uma comunidade com relações mais humanas e mais justas, de inclusão e solidariedade. É obvio que tal intento pessoal e comunitário sempre estará inscrito dentro da tensão e dos limites do simul justus et pecator. Por isso não se deve trabalhar com pressupostos e objetivos demasiadamente idealistas. A nova realidade da vivência da liberdade em gratuidade movimenta-se na tensão dialética entre ruptura e continuidade.
4. – Pregando sobre o texto de Gl 4.4-7
No espírito das celebrações de Natal, a referência à “plenitude do tempo” está associada ao nascimento do messias-criança Jesus. Esse tempo da plenitude salvífica, na ótica paulina, está intrinsecamente vinculado com a outorgação de liberdade plena para as pessoas que fizeram o encontro com o Cristo. A dinâmica do pensamento é similar aos textos de leitura, sobretudo de Isaías, na medida em que se supõe intervenção salvífica de Deus em favor do seu povo.
Para Paulo, assumir a fé em Jesus Cristo está associado a um processo de maioridade. O apóstolo parece supor que, antes da encarnação de Deus em Jesus, os seres humanos não viviam uma condição de liberdade plena. Isso Paulo expressa com a imagem do vir-a-tornar-se filhos (e filhas). A condição anterior é entendida como uma submissão da pessoa em relação às leis da Torá e a tempos e normas designados de “rudimentos do mundo” (stoicheia tou kosmou – v. 3). Somente pela fé em Cristo adviria o tempo da liberdade e da autonomia plena do ser humano.
Essa maioridade, autonomia e liberdade são uma espécie de capacitação teológica e antropológica fundamental: a pessoa, no espírito de Jesus-filho, pode dirigir-se a Deus na forma de tratamento aba – Pai. A relação de fé em Jesus coloca a pessoa crente numa relação filial com o próprio Deus. Lutero diz a respeito: “Cristo é o filho; por isso aqueles que nele crêem são filhos com ele” (Lutero, p. 170). Ser filho (e filha) é o caminho para assumir a liberdade e a autonomia (na fé), e isto é condição para uma vivência de novas relações que buscam a superação das assimetrias sociais.
Na pregação sobre o texto, poder-se-ia buscar evitar uma demasiada contraposição entre Torá / escravidão e graça / liberdade. É verdade que isso está no espírito da Carta aos Gálatas e foi amplamente afirmado por Lutero e seguidores. Penso, contudo, que um destaque mais positivo da Torá é muito mais apropriado aos conteúdos bíblicos como um todo e faz mais jus aos esforços de viver a fé cristã após o holocausto. Afinal, a fé em Jesus Cristo não significa uma superação total da lei/Torá. A Torá não é abolida; antes, na fé em Jesus, ela é levada à plenitude. Só se pode levar à plenitude aquilo que já existe em princípio. Positivamente pode-se, pois, destacar as imagens do “aio” e da “tutela”. No caminho da pessoa rumo à liberdade, a lei/Torá é um esteio importante para conduzir a pessoa, a comunidade ou o povo para uma vivência eticamente regrada. Observância da Torá não precisa significar somente o estereotipado “legalismo farisaico” ou algo assim. Observar os preceitos da Torá pode ser perfeitamente uma forma de exercitar a fidelidade em relação à vontade de Deus, revelada na própria Torá. A vivência da fé cristã, na liberdade da fé e no exercício do amor, pode e deve manter a relação positiva com os preceitos da Torá, pois sem normas orientadoras não há como concretizar uma vivência pessoal e comunitária eticamente regrada ou orientada.
Não há dúvida de que, como filhos e filhas, e assim como herdeiros das promessas, nosso caminho e propósito, enquanto crentes em Deus e Jesus, é assumir a maioridade e a liberdade. Mas o nosso caminho cotidiano permanece ligado à palavra que se tornou letra na Torá. Mantém, no meu entender, uma constante dialética entre a vivência da liberdade na fé e o serviço no amor e na letra dos mandamentos éticos. Não há nisso nenhum intento de afirmar qualquer tipo de justificação por obras; justificação se dá unicamente por fé. Mas os preceitos da Torá são os indicadores para a caminhada da gente e do povo crente em Deus em meio aos percalços históricos. A Torá pode apresentar-se também na forma de evangelho (Reimer; Richter Reimer, p. 28-31).
Para a pregação, caminharia por três momentos:
– destaque para o momento da plenitude dos tempos, fazendo talvez uma breve avaliação das celebrações e festividades de Natal. Não caminharia muito na crítica ao modo cultural como muitos vivem o Natal; antes apostaria na chance concreta de ter uma comunidade que busca alguma forma de contato com esses conteúdos vitais;
– realce da “plenitude dos tempos” no sentido do nascimento do messias-criança; aí se dá concretamente a possibilidade para a maioridade na fé e na liberdade enquanto alvos (promessa) da caminhada da pessoa crente; a plenitude dos tempos realça de forma climática a vontade salvífica de Deus por seu povo; isto é expressão de pura graça/gratuidade;
– destaque positivo para o aio ou a tutela da Torá enquanto vontade expressa de Deus a seu povo; a vivência cristã necessita de orientações firmes para uma vivência ética da fé e do amor. É difícil conceber uma ética cristã que não esteja ancorada na própria Torá.
Bibliografia
CRUSEMANN, F. A Torá. Leis do Antigo Testamento em perspectiva histórico-social. Tradução de Haroldo Reimer. Petrópolis: Vozes, 2002.
GROSS, E. Primeiro Domingo após Natal. Gálatas 4.4-7. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1992, v. 18, p. 38-41.
KLIEWER, G.U. Gálatas 4.1-7. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1983, v. 9, p. 144-9.
LUTHER, M. Kommentar zum Galaterbrief. Munique; Hamburgo: Siebenstern Taschenbuch Verlag, 1968.
OEPKE, A. Der Brief des Paulus an die Galater. Berlin: Evangelische Verlagsantalt, 1964.
REIMER, H.; RICHTER REIMER, I. Tempos de graça. O jubileu e as tradições jubilares na Bíblia. São Leopoldo; São Paulo: Cebi; Sinodal; Paulus, 1999.
Proclamar Libertação 30
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia