Prédica: Gênesis 2.7-9,15-17; 3.1-7
Leituras: Mateus 4.1-11 e Romanos 5.12(13-16), 17-19
Autor: Harald Malschitzky
Data Litúrgica: 1º.Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 13/02/2005
Proclamar Libertação – Volume: XXX
1. Algumas considerações iniciais
Alguém teria perguntado a Lutero onde Deus estava antes de criar o céu e a terra. E ele teria respondido: Deus estava no mato, cortando uma vara para bater na boca dos curiosos!
É enorme o número de perguntas que os primeiros três capítulos de Gênesis já suscitaram, assim como é enorme e até antagônico o número de conclusões que já se tiraram daqui. Sem querer adiantar detalhes, lembro que para muitos a idéia do paraíso é uma existência sem fazer nada, o próprio estado de dolce far niente. Ou quantos séculos de marginalização da mulher determinada leitura do texto conseguiu impor! Quanta doutrina rasteira, negativa e prejudicial na área da sexualidade se construiu a partir da nudez de Adão e Eva! O pior é que algumas idéias, conceitos e preconceitos se transformaram em doutrinas que até hoje nos ocupam e criam dificuldades. No mundo ecumênico se continua discutindo, sem que se chegue a um consenso, o papel da mulher na igreja, o lugar da sexualidade na vida e convivência do ser humano, o planejamento familiar, e por aí vai. Sabemos que também em nossas comunidades há muitas distorções.
A perícope é composta de partes de um texto maior. Ainda assim, temos diante de nós um texto longo e muito denso. Impossível pretender que todos os seus aspectos sejam considerados em uma prédica só.
2. Comentando o texto
2.7 – A idéia de que o ser humano é criado a partir do pó era muito difundida e o autor do texto a pode ter assumido, porque ela responde à pergunta pelo limite da vida e pela relação do ser humano com a terra. Os termos hebraicos adam e adamah expressam essa relação de forma magistral. A raiz da palavra terra e do coletivo Adão é a mesma. O específico e diferente do ser humano é justamente o sopro de Deus, através do qual ele é feito gente, a partir do qual ele é vivente. Sem esse sopro ele simplesmente não é. Nenhuma palavra de que esse sopro tenha eternidade, nada da dicotomia corpo/alma. O ser-tomado-da-terra indica os limites – em todos os sentidos – do ser humano. No seu viver e no seu fazer ele é criatura e não criador! Dar vida é uma prerrogativa de Deus. Com essa afirmação o javista “critica a compreensão vigente entre os poderosos, que afirmam que o ser humano só será gente, quando ele (às custas de outros!) fizer para si um grande nome (cf. Gn 11.4)” (Dunze, p. 172).
2.8-9+15 – Estes versículos falam do meio ambiente em que esse ser vivente é colocado. Árvores e plantas em profusão. Frutas boas de se comer. O jardim não tem finalidade própria a não ser servir de ambiente de vida e alimentação para a criatura. Mas tem mais: Aqui se fala de duas árvores especiais – a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal. Ao que tudo indica, não se trata da mesma árvore, mas da confluência de duas tradições, sendo que só a segunda será de importância para o destino humano.
O ser humano recebe um papel: cuidar e cultivar o jardim. Simplesmente para viver. Deus não o colocou no jardim para ser seu escravo, a exemplo de povos inteiros que trabalhavam para as divindades. Viver no jardim e cuidá-lo tem quase uma finalidade própria. Já aqui se sugere que o trabalho é parte inerente ao ser humano e não algo estranho à sua natureza.
2.16-17 – O jardim tem espaço, o jardim é bonito, seus frutos são bons. Este é o grande presente, é a grande oportunidade que Deus dá. Entretanto, assim como o próprio ser humano é limitado, também no jardim existem limites, e um deles é a árvore do conhecimento do bem e do mal (cf. detalhes abaixo). Os frutos dessa árvore não podem ser comidos. E um mandamento traça o limite claro. Mas dentro dos limites, em cujo horizonte está o mandamento “da árvore … não comerás”, há muito espaço. Na verdade, esse mandamento, como também os 10 Mandamentos, não tolhe a liberdade, mas a organiza.
3.1-5 – Se a primeira parte é mais narrativa, a segunda é marcada por um diálogo que desencadeia uma ação. Um dos personagens é uma serpente. Querem alguns exegetas que se trata de uma escolha aleatória e que poderia ter sido qualquer outro animal, pois nas fábulas qualquer animal fala. Já outros lembram que a serpente assusta, dá medo por sua picada que pode ser mortal, causa atração e repulsa ao mesmo tempo, fascina pela forma diferente, rápida e ágil de se movimentar. O mito da Hidra de Lerna é, no mínimo, ilustrativo: um monstro tinha sete cabeças, e sempre que uma lhe era cortada, renascia outra. Coube a Hércules a tarefa de destruí-la. Olhando por aqui, realmente a serpente não é só um bicho entre outros.
A serpente em nosso texto é caracterizada como astuta, detalhe que, aliás, seria lembrado também por Jesus bem mais tarde (cf. Mt 10.16 ). Ela habilmente pergunta, como para se informar melhor, sobre a dimensão do mandamento de Deus. Fazendo-o, ela distorce o mandamento de forma tal que Eva sai em defesa de Deus! Sem se dar conta, ela já estava enredada em um diálogo de conseqüências fatais. A serpente retruca que Eva está equivocada. A verdade, segundo ela, é outra: comer da árvore os tornaria iguais a Deus, abrir-se-iam os seus olhos e eles seriam conhecedores do bem e do mal.
“O reconhecimento do bem e do mal ‘não está direcionado apenas a um reconhecer tudo, mas também a um saber e poder tudo, e por isso mesmo a um ser igual a Deus’” (H. Werner, apud Jetter, p. l83). Ser igual a Deus sempre foi sonho dos seres humanos. Ter os olhos abertos significa assumir o controle da vida e, claro, de tudo o que a cerca.
3.6-7 – A mulher entendeu que bem outros horizontes se abririam; ser igual a Deus é não dever nada a Deus, nem a vida! Eva colhe a fruta e a dá também a Adão. Ambos comem! Somente uma leitura muito preconceituosa pode imputar toda a culpa do estrago a Eva. Adão nem ao menos pergunta pela razão de comer da árvore proibida. Ele se torna cúmplice por seu silêncio. Tanto um como o outro são responsáveis e responsabilizáveis por seu ato.
Realmente os olhos lhes são abertos, mas a grandeza dos horizontes pára ali, a alguns palmos de distância, na nudez de ambos. De repente, quem buscava horizontes infinitos não suporta ver o parceiro (a parceira) como ele é. De alguma forma, isto lembra uma reflexão do filósofo F. Nietzsche: “Ó Zaratustra! Tu, (…) outrora caçador de Deus, rede em que se captavam todas as virtudes, flecha do mal. Hoje, perseguido por ti mesmo, tua própria presa, ferido por tua própria flecha, enforcado por tua própria corda, conhecedor de ti mesmo, algoz de ti mesmo!” (de Assim falou Zaratustra). Quem queria ser igual a Deus é incapaz de, ao menos, criar um avental para se tapar; ele depende da natureza que não criou! É mais ou menos ridículo o que acontece em lugar de promessas e planos mirabolantes.
Não há nenhuma palavra ou indicação de que o sexo como tal seja pecado, tenha que ser desprezado ou até sufocado. Quando muito está por trás o reconhecimento da força, tantas vezes irresistível, da atração sexual, que é capaz de causar muito sofrimento, de ser usada para a exploração e a escravização das pessoas. Mas, mesmo depois da queda, a sexualidade continua sendo algo bom, algo que potencializa a comunhão entre homem e mulher, estabelecendo laços muito fortes entre pessoas. Adão e Eva constatarem a sua nudez significa quebra da confiança total e última, quebra de uma comunhão sem rodeios e sem enganos. Análogo ao que acontece em relação a Deus (cf. v. 8-13) é o que ocorre entre os seres humanos: Já não mais se pode confiar um no outro. “Ficar de olho” a gente fica porque desconfia, quando antes o olhar fazia parte dos gestos que denotavam a comunhão plena.
Finalmente não se pode esquecer que toda a natureza foi arrastada para a quebra de comunhão e nós hoje somos testemunhas da dimensão desse rompimento de convivência e comunhão.
3. Caminhando para a prédica
Dentro do grande cenário da criação cabe ao ser humano um papel especial, ainda que ele faça parte dessa criação, pois é feito de barro. O quanto ele é criação mostra-se com mais ênfase na afirmação de que ele vive graças ao sopro de Deus. O Salmo 8 retrata, em poesia e canto, e não sem uma grande dose de admiração, a grandeza desse ato de criação e a confiança de Deus emprestando à sua criatura o papel que lhe empresta: um papel autônomo em um âmbito de muita liberdade. Além disso, todas as frutas estavam à disposição dessa criatura. É verdade que havia um limite, que era determinada árvore. Mas ela não fazia falta para a vida correr bem.
No entanto, com ajuda da própria natureza – na figura de uma serpente –, o ser humano se deixou enredar pela idéia de que, por trás da árvore proibida, deveriam existir dimensões de vida que alcançariam o infinito. Quem sabe não haveria mais nenhum limite, nenhuma fronteira? E Adão e Eva pagaram para ver. Deveria ser muito bom ser igual a Deus, deixar de ser criatura.
O que acontece, porém, é que o limite do horizonte de repente não passa do próprio umbigo. Na busca de ser igual a Deus, a criatura encontrou a si mesma, agora não apenas limitada, mas também suscetível ao sofrimento e capaz de causar sofrimento. É claro que também a sexualidade foi afetada, mas nada está escrito sobre a perda de sua dignidade. Adão e Eva continuam homem e mulher e a sexualidade faz parte da comunhão. Em decorrência do passo que deram, também a sexualidade serve para explorar, escravizar, fazer sofrer. Não esqueçamos, porém, que isso se pode fazer também com gestos, palavras e outras partes do corpo.
O nosso texto deseja transmitir, com todas as letras, que o ser humano, criado por Deus e por ele agraciado com uma vida bonita, tendo destaque na grande orquestra da criação, é responsável por sofrimento, falta de paz, ódio, fragilidades de toda ordem, tudo porque se deixou levar pelo sonho de ser igual a Deus.
Deus, porém, não se satisfaz com a derrota de sua criatura e envia um novo Adão. “Alguém que veio das alturas e ainda assim não queria ser como Deus, mas queria ser gente. Gente como Adão no paraíso, um novo Adão. Ele não era tão sabido como nós, tão sabido a ponto de direcionar sua vida segundo os seus próprios interesses (…), mas ele foi tão tolo a ponto de se empenhar por seus semelhantes, (…) tão tolo de simplesmente ficar perto de Deus.” “Em Jesus Cristo, Deus, depois de tudo, tudo o que aconteceu, está novamente diante de nós – assim como no paraíso estava diante de Adão – como amigo” (Hans Freiherr von Campenhausen, prédica sobre Gn 3.1-6)(cf. Fl 2. 6s).
Eu iniciaria a prédica lendo – com muita vontade! – o Salmo 8, para em seguida meditar sobre a boa criação de Deus. Depois, eu perguntaria por que essa boa criação e essa boa criatura estão corrompidas, para responder com a segunda parte do texto, enfatizando que o ser humano precisa assinar embaixo do estrago. Em terceiro lugar, eu lembraria que Deus não se deixou corromper e nem se deixou demover de seu amor e fidelidade. No novo Adão, Jesus Cristo, isto se manifestou de uma vez por todas (cf. Hb 9), restaurando o ser humano como imagem de Deus.
4. Subsídios litúrgicos
Sugiro que se use o Livro de Culto, da IECLB, que contém muitas sugestões para estruturar um culto. Se houver bons leitores/as na comunidade, poder-se-iam convidar três pessoas para a leitura do texto da prédica em momentos distintos: Salmo 8; 1ª parte do texto; 2ª parte do texto.
Coloco à disposição uma bênção tirada do Evangelisches Gesangbuch, da Baviera.
O Senhor
Cheio de amor como uma mãe e bondoso como um pai.
Ele te abençoe
Ele permita que tua vida desabroche, ele permita que esperança floresça e permita que os frutos amadureçam.
O Senhor te guarde
Ele te abrace em teus medos, ele se coloque diante de ti no perigo.
O Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti
Assim como um olhar amoroso aquece, assim ele desfaça em ti o que enrijeceu.
Ele tenha misericórdia de ti
Quando culpa pesa sobre ti, que ele te faça respirar e te liberte.
O Senhor levante sobre ti o seu rosto
Que ele veja o teu sofrimento, que ele te console e te cure.
Ele te dê a paz
O bem-estar do corpo, a alegria da alma, o futuro aos teus filhos. Amém.