Prédica: Isaías 56.1,6-8
Leituras: Mateus 15.21-28 e Romanos 11.13-15,29-32
Autor: Antônio Carlos Ribeiro
Data Litúrgica: 13º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 14/08/2005
Proclamar Libertação – Volume: XXX
1.Introdução
O homem com testículos esmagados ou com o membro viril cortado não poderá entrar na assembléia de Iahweh. Nenhum bastardo entrará na assembléia de Iahweh. (Dt 23.2-3)
Aos eunucos… eu lhes darei em minha casa e em meus muros mão e nome… os filhos do estrangeiros aderidos a Iahweh para seu ministério… eu os levarei à minha montanha santa, e os alegrarei em minha casa de oração. (Is 56.4-7)
O texto para esse domingo toca num problema antigo e atual: a discriminação, especialmente a que se baseia na origem étnica, na cultura e na condição social de grupos humanos que vivem no mesmo espaço dos que se sentem especiais.
O problema é de tal ordem incômodo, que cria dificuldades até para sua abordagem. Ao que parece, qualquer aproximação implica um posicionamento e qualquer posicionamento exige radicalidade, seja com os interesses étnicos, culturais e sociais a que estamos ligados, seja com uma postura politicamente correta, à qual, mesmo quando não abraçamos, não queremos confrontar. Numa palavra: ou isso se compõe daquele substrato mental que só se expressa de forma reservada e em tom pejorativo ou no discurso no qual podemos escolher milimetricamente as palavras que possam nos livrar do limbo discricionário, cada vez mais reduzido em ambientes cultos, para simular uma postura “básica”, como dizem os comentaristas de moda, situando-nos no bloco de gente com perspectiva social, maturidade política, profundidade de análise e razão.
Mas então surge o desafiador rosto do outro, como lembra Levinas, que, quanto mais marcado pelo sofrimento, mais nos interpela. Rosto vincado pelos muitos desgastes, da vida no campo e na cidade, das atrocidades (as criminosas, as que resultam de acidentes, os erros médicos e as decisões políticas e judiciais). E, o que mais choca nos jornais e revistas, o rosto da vítima. Então, mesmo decididos a não olhar, acabamos encontrando o seu olhar pela praça (os que ainda as freqüentam), pelas vidraças, através das grades ou protegidos num ambiente ao qual poucos têm acesso. Nossa tranqüilidade só é rompida ao lembrar da fronte ensangüentada ferida pela dor, do hino 53 (HPD 1).
É Pentecoste. Por essa força que provoca nas igrejas de hoje o mesmo rebuliço do Novo Testamento, a mesma que levou a mulher cananéia a clamar pela filha doente, lutar para conseguir a atenção e, finalmente, ensinar o amor de Deus a Jesus de Nazaré (Mt 15.21-28). Ou a levantar Paulo para ministrar aos gentios, resgatar-lhes a dignidade e integrá-los à comunhão do povo de Deus, o que feria o orgulho dos judeus. Esses relatos bíblicos colocam para nosso tempo a pergunta: que pistas o evangelho ensina para superar a discriminação (étnica, cultural e social)?
2. Contexto e ambiente
O trito-isaías (Ttis) teria atuado em Jerusalém depois de 538 a.c., provavelmente antes da reconstrução do templo, entre 520-515 a.c. ele parece se compreender como discípulo do Deutero-isaías (Dtis), procurando até retomar sua mensagem de salvação e renovação nas circunstâncias alteradas de sua nova situação. O texto descreve as leis da comunidade ou um programa para a comunidade, confrontando o texto da epígrafe (Is 56.1,6-8) com as regras de Dt 23, junto a um povo crente e marcado pela miséria econômica de sua época.
O estado de espírito parece também ter importância, já que a promessa do Dtis não se cumpriu. Junto a essa gente que retornou à sua terra, encontrando-a destruída, o Ttis tenta animar essa gente cansada e sem perspectivas, proclamando sua esperança na glorificação de Sião. A mensagem do Ttis é uma grande moldura para o anúncio profético, que pode ser sintetizado nesse texto (56.1-8) e encontra sua perspectiva mais apocalíptica na ampliação da comunidade para além dos limites da era pré-exílica.
3. Análise do texto
Os capítulos de Is 56-66 formam um complexo literário independente, afirma Schmidt, deixando a controvérsia se o texto é realmente uma unidade ou apenas uma composição de pequenas coleções de palavras de épocas diferentes. As profecias dos capítulos 60-62, o núcleo do livro, devem ser atribuídas a um profeta do pós-exílio, já no período persa.
O v. 1 expressa três idéias fundamentais: um convite expresso para cumprir o programa de Iahweh, a promessa de Iahweh a dois grupos sociais marginalizados (eunucos e estrangeiros), inclusive e sobretudo do ponto de vista religioso, e um oráculo de Iahweh que desautoriza o ensino da lei, substituindo-o por uma prática justa.
As palavras que inicialmente saltam aos olhos da palavra de Iahweh são direito (mishpât), justiça (sedâqâ), salvação (yeshû’âtî) e libertação (sidqâtî). Dessas premissas vão resultar conclusões claras em relação à prática da discriminação étnica, social e religiosa de seu tempo, notadamente em relação à condição dos eunucos e estrangeiros, contra a qual o oráculo final é definitivo ao assegurar uma condição de dignidade.
O v. 1 traz uma orientação clara a partir de sua própria estrutura literária: Guardai o direito e fazei a justiça, porque está próxima a minha salvação de chegar e a minha libertação de revelar-se. Os verbos revelam ação ao lado dos substantivos já mencionados no parágrafo anterior. é uma proposta para a comunidade colocar-se em condições de receber essa graça. O profeta enfatiza que o projeto de salvação/libertação presente na intervenção divina está próximo, mas Iahweh precisa de espaço para realizá-lo. Essa advertência, própria do Ttis, é diferente do Dtis, e assinala que é o próprio Iahweh quem vem e está por manifestar-se.
A ênfase não condiciona a vinda, mas insiste que a comunidade se prepare no seu aspecto ético-social de forma a permitir que Iahweh se manifeste. O uso da palavra mishpât (direito) no singular indica, segundo Croatto, não uma exortação para guardar as leis, mas para realizar a ordem divina na prática social, como indica o verso “guarda o amor e o direito e espera sempre em teu Deus” (os 12.7).
Apesar de os v. 2-5 não fazerem parte da perícope, eles elogiam os seres humanos que seguem essa orientação (v. 2) e trazem o consolo aos estrangeiros, “aderidos a Iahweh”, que se sentem excluídos (v. 3), e aos eunucos, que se autodefinem como “árvore seca” (v. 4), prometendo-lhes “mão e nome” em minha casa e em meus muros, “melhor do que filhos e filhas… nome eterno, que não será cortado”.
O léxico distingue os estrangeiros (nokrîm) dos estrangeiros residentes num determinado país (gerîm), como eram os patriarcas nas migrações pelas terras dos cananeus. Os residentes na terra de Israel tinham certos direitos que os nativos não tinham, mas os estrangeiros não podiam celebrar a Páscoa, a não ser que se deixassem circuncidar. A adesão a Iahweh deveria ser suficiente para quebrar as normas de exclusão, costumes e preconceitos, geralmente mais fortes do que o amor. A suspeita é que esses “estrangeiros” tenham sido judeus nascidos no estrangeiro e por isso tidos em menor consideração pelos “de dentro”, por razões religiosas ou culturais. Talvez pudessem ser comparados aos samareus ou samaritanos, mas eram judeus que regressaram de outras nações, que se mantiveram fiéis a Iahweh ou que voltaram a ele.
A outra forma de exclusão era a sentida pelos eunucos. O texto de Dt 23.2 mostra o modo de discriminação praticada contra os portadores de deficiências genitais, que por sua incidência se transformava em cultural. Etimologicamente, a expressão refere-se a um ofício de palácio. O oráculo traz a promessa destinada aos eunucos, que: 1. guardam os sábados, 2. optam pelo que lhe é agradável e 3. mantêm-se firmes em sua aliança. No entanto, essa promessa aos eunucos refere-se exclusivamente ao templo e à cidade. Fora desses espaços, eles voltam a sofrer a mesma discriminação, permanecendo marginalizados e desprotegidos.
A promessa de mão e nome feita aos eunucos está associada ao relato da morte de Absalão, segundo o qual Absalão decidiu construir um monolito que está no Vale dos Reis, e por não ter filhos para recordar seu nome, chamou-a de “a mão de Absalão” (2Sm 18.18). O fato de ser eunuco (castrado), oriundo dos lugares da diáspora, trazia consigo outra marca de exclusão, segundo as regras da tradição interna: ter servido a reis de outras nações, com todos os condicionamentos sociais, culturais e religiosos que isto implicava.
A promessa de Iahweh de levá-los à sua casa, muros, montanha e casa de oração (v. 7) tirará a importância de marcas como a castração ou o fato de ter estado a serviço de reis do império, ou ainda o de haver nascido em países estrangeiros e ter assimilado seus costumes. Esse oráculo chama-a de casa de oração para todos os povos e dá a esses excluídos a inclusão plena no culto. O TtIs desce aos problemas concretos, resultantes do retorno da gente da diáspora.
O desfecho desse programa para a comunidade acontece por meio do oráculo (v. 8), que inclui o título Senhor ao nome de Iahweh. A expressão é significativa por causa de suas conotações sociais, políticas e religiosas, marcando o domínio de quem fala, por falar contra normas e práticas que são interpretadas como emanadas dele mesmo. Nessa condição, Senhor Iahweh rompe com as tradições de exclusão de pessoas e tem força para reunir os dispersos de Israel. A partir da diáspora, esse título de Iahweh se converte em anúncio de libertação.
4. Meditação: Transformando a riqueza em pobreza
A lista de discriminações é extensa. O seu volume corresponde à insegurança, disfarçada de prepotência e arrogância, de quem precisa ser superior, melhor ou acima dos demais. Apesar de o comportamento denotar uma patologia, seria também errado discriminar quem se comporta assim, para não continuar alimentando um ciclo interminável de afirmações egóicas.
Se o texto fosse dos nossos dias, haveria a lista e ela seria tão longa quanto absurda. Entrariam os motivos de cor da pele, condição social, gênero, orientação sexual e da própria sexualidade. a dificuldade de identificar-se ou a necessidade de afirmar-se sobre membros de determinados grupos humanos mostra como a xenofobia nos afeta e como constitui uma das expressões dos países ricos ou de grupos racistas, sexistas e elitistas.
As acusações naquele tempo tinham conotações religiosas, sociais, culturais e econômicas. A falta de pudor era a mesma quando aplicada à mesma família étnica, especialmente aos que eram vistos como “contaminados” pelo contato com outras culturas, tornando o preconceito ainda pior.
Essa prática, exercida durante décadas, especialmente nalgumas épocas, entre membros das igrejas cristãs tem provocado muita dor, sofrimento e inquietação entre os que praticam e os que sofrem discriminação. Entre os que sofrem estão os que reagem, produzindo os traumas resultantes da busca, tão intensa quanto vã, por um espaço num grupo social. Como as instituições têm componentes de discriminação racial e cultural já em sua constituição, isto atrai reações, rotulagem e, por vezes, um irrecuperável desgaste para as instituições. A incapacidade, pela sua própria condição, de lidar com essa situação implica desgastes especialmente grandes para mudar uma imagem.
Mas de longe a situação mais inquietante aparece no contato entre pessoas, nos relacionamentos afetivos, no comprometimento da educação dos filhos e numa vida de desgastes e cansaços, para quem sofre e para quem impõe discriminações.
A dificuldade de lidar com essa situação gera por vezes a necessidade de disfarçar, negar ou encontrar outras explicações, que acabam por piorar, especialmente quando oferecidas a gente inteligente, num mundo no qual o comportamento é associado a quem quer dominar, é incapaz de respeitar o diferente, quer tirar proveito político e econômico e adota uma postura tão arrogante quanto carente de sentido e legalidade.
A experiência mostra situações em que bem-estruturados edifícios estão inteiramente carcomidos por dentro. mesmo nas regiões em que certos grupos humanos se organizam para não perder a hegemonia, parece que isso se torna inevitável. Os esforço de proteger-se e fechar-se parece apenas adiantar um processo em pleno andamento.
Bibliografia
Croatto, J. J. Isaías – A palavra profética e sua releitura hermenêutica. Trad. Lúcia M. e. Orth. Petrópolis: Vozes, 2002. v. 3.
Schmidt, W. H. Introdução ao Antigo Testamento. Trad. Annemarie Höhn. São Leopoldo: Sinodal, 1994.