Prédica: Jeremias 15.15-21
Leituras: Mateus 16.21-26 e Romanos 12.1-8
Autor: Valdemar Schultz
Data Litúrgica: 15º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 28/08/2005
Proclamar Libertação – Volume: XXX
1.Introdução
Os seus textos proféticos revelam situações de intenso conflito. Ao lermos esses textos, sentimos uma certa cumplicidade com a pessoa do profeta por causa da carga biográfica de seus escritos. O profeta, embora expresse experiências comunitárias, é identificado como indivíduo. O profeta ouve, fala, grita, anuncia, denuncia, queixa-se, xinga, sofre e também se alegra.
A mensagem profética está vinculada a uma situação histórica concreta e a uma experiência coletiva com o povo. Durante os conflitos, os profetas sofrem isolamento dos seus compatriotas. Em momentos posteriores aos conflitos, a tradição profética ajuda a resgatar a identidade do povo de Deus. O povo sente-se identificado com seu orador. A linguagem simbólica presente na profecia – muitas vezes também poética – produz culpa e vergonha nos ouvintes por meio da rejeição ou da aceitação da sua mensagem. Do encontro/confronto com o dito/escrito nasce uma nova consciência.
Segue uma proposta de leitura de Jr 15.15-21, segunda das cinco Confissões de Jeremias.
2. Texto
Jr 15.15-21 insere-se no bloco maior dos capítulos 1-24, que têm por tema o juízo contra Judá e Jerusalém. Desse bloco, os capítulos 11-20 centram o compromisso pessoal do profeta com o anúncio do juízo de Deus. Neles encontram-se as cinco confissões: 11.18-12.6; 15.10-21; 17.14-18; 18.18-23; 20.7-20. A segunda confissão inclui os v. 10-14 como parte da perícope. Nossa delimitação (15-21) é proposta pelo lecionário litúrgico adotado.
Os v. 15-18 retomam o lamento de 10-11. O profeta tenta atrair a atenção de Deus para a sua causa. Quer que Deus vingue-se de seus perseguidores. Queixa-se da excessiva paciência de Deus, pela demora de seu juízo. O profeta tenta atrair o juízo de Deus para se livrar da desforra contra seus inimigos.
O v. 15 enfatiza a situação específica de sofrimento do profeta Jeremias: marginalizado entre seus próprios compatriotas. A fidelidade à sua vocação o faz passar por humilhações. Atacado por todos, sua carga parece-lhe pesada demais para ser suportada.
O v. 16 traz um conteúdo oposto ao versículo anterior. Lembra momentos de júbilo em sua vida vocacional. A metáfora do profeta que se alimenta das palavras de Deus tem paralelo em Ez 2.8-3.3: o profeta literalmente come o rolo de um livro. A palavra de Deus é o fundamento de sua vida (Sl 119.47). O profeta compreende-se como propriedade de Deus por ter sido chamado em seu nome. A expressão de invocação remete ao Templo (7.10).
A roda das pessoas que se alegram, no v. 17, pode referir-se à categoria de pessoas soberbas, gozadoras e orgulhosas, muito freqüentes nos escritos sapienciais (Sl 119.51). O cumprimento da missão profética separa Jeremias de uma vida amigável com o povo. Deus mesmo e sua mensagem são a razão de seu sofrimento. Jeremias sente-se totalmente rejeitado e faz a experiência do isolamento (de forma mais radicalizada em 16.1-3).
O ilusório ribeiro, descrito no v. 18, pode referir-se ao fluxo d’água que seca no verão ou a uma miragem. A partir de sua experiência de abandono, Jeremias recusa-se a crer que Deus tenha se afastado dele. Ele não pode crer que Deus tenha deixado de ser fonte de água viva para se tornar um ribeiro ou um poço seco.
O conjunto dos v. 19-21 lembra 1.17-19. O retorno pode referir-se ao templo (7.10, 1Cr 8.43), à arca (2Sm 6.2), a Jerusalém (25.29) ou ao povo (Is 63.19). No v. 19, refere-se à relação entre Deus e a pessoa do profeta. A ação do profeta só é possível porque Deus age em sua vida (também em 31.18). O profeta é levado à renovação de sua conversão, a uma reafirmação da sua missão. Ele esqueceu-se de que foi chamado ao anúncio profético antes de seu nascimento (1.5) e que sua vida depende de Deus e de sua palavra.
Jeremias não encontra resposta aos lamentos e aos protestos anteriores, mas suas dúvidas a esse respeito parecem desaparecer, apesar das respostas serem indiretas ou em forma de advertência em relação a seu compromisso. Suas orações são uma conversa íntima com Deus. Tal oração contém em si mesmo a certeza da resposta.
No v. 20, o isolamento do profeta é ratificado como proteção. Uma barreira lhe servirá de escudo. O povo permanece sem esperança. O juízo é sem perdão. O pacto é unilateral com o profeta. Evidencia-se uma falta de projeto por parte do povo e uma ruptura com o pacto estabelecido por Deus.
Sem a certeza da ação de Deus para mudar a sorte do povo, expressa no v. 21, ratifica-se a proteção de Deus diante de seus inimigos, a única resposta com a qual o profeta pode contar. Para o povo, em tempos posteriores, essa resposta transforma-se num sinal de que ainda há esperança e jurisdição em Judá.
3. Contexto
Jeremias viveu de 627 até 580 a.C., aproximadamente. Apesar de ter nascido em Anatot, uma aldeia a 7 km de Jerusalém, Jeremias era descendente da tribo de Benjamim, pois essa pequena localidade já pertencia à região benjaminita. Há uma grande probabilidade de que Jeremias tenha sido descendente de Abiatar, o sacerdote de Davi (1Rs 2.26).
A atuação do profeta abrangeu o tempo dos reinados de Josias (640-609), de Jeoaquim (608-598) e Zedequias (597-587). Dessa sucessão de reinados, Josias (627-621) teve maior popularidade. Aproveitou-se do recuo da Assíria, que já se encontrava bastante enfraquecida, e fez uma ampla reforma religiosa. Nessa época, a Babilônia constituiu-se como império. Os egípcios, temendo a ameaça babilônica, tentaram usar Judá para fechar o corredor de passagem da Palestina. Em 609, em batalha contra os babilônicos, Josias foi morto.
No período do reinado de Jeoaquim, babilônicos e medos frustaram as tentativas dos egípcios de dominarem o cenário político na região da Palestina. Judá foi submissa, o rei Jeoaquim ainda tentou resistir, mas morreu em seguida. Sob o domínio de Nabucodonosor, no ano de 597, ocorreu a primeira deportação para a Babilônia.
Nabucodonosor instalou Zedequias para governar em Jerusalém, permitindo que Judá mantivesse sua identidade como nação, mas sem autonomia de governo. Na primeira tentativa de rebelião, Jerusalém é conquistada e, após 18 meses de cerco, o rei Zedequias foi morto. Em 587, ocorreu a segunda deportação. A destruição de Jerusalém foi completa, incluindo o templo.
A atuação de Jeremias aconteceu em meio a esse turbilhão político. Conforme Klaus Homburg, os capítulos 7-20 foram transmitidos principalmente no tempo do rei Jeoaquim, filho mais velho de Josias. Jeoaquim foi um rei tirano (22.13-17). Jeremias opôs-se energicamente ao rei, à classe sacerdotal de Jerusalém e aos profetas cultuais. Difamado e perseguido de morte (26.8), seguidas vezes desabafava em acessos de recriminação e cólera. Jeremias foi testemunha viva de um dos momentos mais angustiantes e sangrentos da história do povo de Deus, que teve inúmeras conseqüências políticas e religiosas para os períodos seguintes.
Todas as vezes em que o povo de Deus se encontrava em perigo, aparecia a voz profética com sentido político e religioso. O que caracteriza esse tempo de incertezas é a falta de um projeto comum. O povo estava dividido entre diferentes interesses: apoiar os egípcios, favorecer os babilônicos, fortalecer o poder do rei ou opor-se ao rei. Após a derrota de Jerusalém, Jeremias tentou mostrar que resistir ao império babilônico seria um suicídio. Sua oposição à política de alianças dos reis de Judá levou-o ao isolamento e ao martírio. Jeremias fez a experiência fracassada de oposição aos projetos do reinado.
4. Confissões de Jeremias – profecia no sofrimento
As confissões de Jeremias, também conhecidas como lamentações, apresentam um vínculo estreito entre o ministério profético e a pessoa do profeta. Em seus desabafos e queixas, o homem Jeremias revela-se sensível e frágil, enérgico e corajoso, engajado e comprometido com a palavra libertadora de Deus.
Conforme Nelson Kirst, o gênero de lamentações pode ser classificado em dois tipos: lamentações do povo e lamentações do indivíduo. As lamentações do povo eram cerimônias dirigidas por reis, sacerdotes ou anciãos e organizadas em tempos de grande calamidade pública, tais como guerra, seca, fome, peste, pragas na lavoura, cativeiro (exílio). As lamentações do indivíduo eram manifestações espontâneas de protesto e de acusação diante de situações de adversidade que se abatem sobre o indivíduo, como doença, miséria, perseguição religiosa e política. Caracterizam as lamentações do indivíduo: exclamações provenientes da mais profunda miséria humana, seguidas de uma expressão de confiança a Deus, ameaças e desejo de vingança e, por fim, resposta à garantia de atendimento.
As confissões alternam-se entre monólogo e colóquio. Seus textos são poéticos, bem elaborados e impressionam por seu vigor e pela forma humana como expõem os seus conflitos, suas lutas, seus temores contra um mundo que o ameaçava e sua angústia e sede por justiça.
A maior tristeza de Jeremias era a rejeição à sua mensagem profética (17.15). De uma parte, Jeremias consola-se em saber que, por causa de Deus, sofre perseguição (15.15); de outra, já não suporta mais a sua existência, porque, durante todo o tempo, sua missão profética torna-se motivo de humilhação e perseguição (20.8; 32.2-5; 37.11-16). Atacado por todos, é constantemente afligido pelo medo. Ele sente que ninguém o compreende ou aceita, que todos o rejeitam. A resposta de Deus torna-se seu único apoio (15.19-21).
Entre monólogos e colóquios, ora Deus parece estar ausente, indiferente aos acontecimentos, ora revela-se presente, pronto para proteger a vida do profeta. A omissão de Deus diante do sofrimento humano pode levar a uma idéia de que Deus gosta de ver seu povo sofrer. Conforme Dorothee Sölle:
O cristianismo possui também elementos sadomasoquistas (…). De muitas formas ele anunciou um Deus que faz os inocentes sofrerem e que os tortura com o fim de castigá-los, purificá-los e prová-los. Um Senhor todo-poderoso e onipotente que, se quisesse, poderia mudar o sofrimento, mas que prefere esperar. (Sölle, p. 457)
As confissões de Jeremias testemunham sua experiência de oração. Ele tem liberdade de dizer o que o sufoca diante daquele que ouve suas preces secretamente e as responde publicamente.
Nas Confissões de Jeremias, vemos que não é apenas o ser humano que se relaciona com total franqueza com Deus; o próprio Deus se relaciona com o ser humano. Walter Altmann lembra da controvérsia que houve entre Lutero e Erasmo, em que o reformador fez a distinção entre Deus absconditus (oculto) e Deus revelatus (revelado). Lutero afirma: “Ele (Deus) está em toda parte, mas não quer que tateies por toda parte à sua procura” (Altmann, p. 49).
Nos momentos em que está abandonado e sofre dura perseguição, Jeremias queixa-se e protesta contra Deus. Exige que Deus se revele, que dê respostas claras e vingue seus perseguidores. Mas, muitas vezes, Deus parece estar alheio à miséria humana. Como diante de um ribeiro seco, a esperança parece dissipar-se. Conforme Altmann, a grande dúvida dessa duplicidade está na pergunta onde e como Deus pode ser encontrado. Como ter certeza de que Deus está agindo se a experiência vivida é marcada pela fome, doença, perseguição, injustiça e até mesmo pela morte? Se, de uma parte, pouco podemos saber do agir de Deus todo-poderoso, em quem somente nos resta confiar através da fé, de outra parte, Deus se deu a conhecer e se definiu na fraqueza de Cristo. Em Cristo, o crucificado, conhecemos Deus que chora, lamenta e geme com o ser humano em seu sofrimento e desesperança, em sua humilhação e pobreza, fraqueza e marginalização. Conforme Lutero:
Assim ele, o crucificado, é a contradição de Deus contra todos os que querem prescrever a Deus sua própria justiça, sua própria sabedoria, seus próprios alvos. O crucifixus é o protesto de Deus, é o sinal de que Deus é o senhor, é o rechaço de todos aqueles que não são os seus, é o juízo sobre toda piedade falsa, pois nele, no crucifixus, está julgado tudo quanto pretende ser elevado, nobre, piedoso e verdadeiro neste mundo, sem Cristo. (Altmann, p. 50)
5. Jeremias e sua mensagem hoje
A leitura do profeta Jeremias confronta-nos com o nosso modo de viver, a forma como testemunhamos esperança, como nos entendemos como sociedade e como anda nosso relacionamento com Deus. Nossa relação com Deus se apóia na sua oferta de salvação por meio de Jesus Cristo. Seguir a Cristo é estar marcado pela cruz (Mt 16.21-26). Para nós, pessoas cristãs, a cruz ocupa um lugar central em nossa fé.
Ao longo da história do cristianismo, a imagem de Jesus na cruz tem recebido inúmeros sentidos. Em diferentes períodos, várias imagens da crucificação de Cristo têm ajudado a apregoar a passividade em meio a situações de opressão. A morte de Cristo, retratada de forma expiatória, não poucas vezes serviu e ainda serve para defender os interesses daqueles que têm causado sofrimento, justificando a pobreza, a violência, a discriminação, o desrespeito e a exclusão de pessoas individualmente e de grupos étnicos e sociais.
A comemoração da semana santa foi mais incentivada no hemisfério sul do que no norte. Este incentivo reforça a compreensão de que o Deus dos pobres é sempre o Deus que sofre. Aceitar a cruz é interpretado no sentido de suportar pacientemente o jugo do opressor, calar-se diante de situações de injustiça ou renunciar ao prazer e à alegria de viver. Diante de realidades que necessitam ser transformadas, a imagem de Cristo, que tem seu corpo torturado na cruz, parece ter pouca chance de transmitir força de vida.
Uma imagem de Cristo, a partir do testemunho do evangelho, não permite legitimar o sofrimento das pessoas pelo sofrimento de Jesus, e sim o anúncio da sua vitória sobre qualquer manifestação de morte que não seja natural. A consciência alegre e livre é despertada mais por meio de um Cristo vivificante, que supera situações de morte, do que por meio de um Cristo meramente sofredor passivo ou herói glorificado.
Conforme o apóstolo Paulo, a loucura, o escândalo que a cruz provoca, está justamente no fato de Deus decepcionar toda a ambição humana de querer ser Deus. Essa imagem de Deus está relacionada com a fraqueza e o abandono. Deus se faz presente entre as pessoas consideradas loucas, fracas, humildes (1Co 1.18-29).
6. Sugestões para a mensagem
Propomos distribuir rosas às pessoas presentes na celebração para o momento da reflexão. Rosas são flores bonitas e perfumadas. Gostamos de cultivá-las no jardim e as oferecemos em momentos especiais a pessoas que nos são queridas. Mas as rosas também têm espinhos. É preciso ter cuidado para lidar com os seus espinhos. Geralmente colocamos luvas para a poda e usamos uma embalagem para fazer o buquê. A pessoa que recebe as rosas ainda terá que ter algum cuidado com os espinhos. Mesmo assim, se algum espinho picar, não se queixará, pois espinhos fazem parte das rosas.
Questões a partir da leitura de Mt 16.21-26:
– Há sofrimentos que fazem parte da vida humana e outros que são socialmente provocados. É preciso distinguir, na medida do possível, os dois tipos de sofrimento.
– Que sofrimentos fazem parte da vida? A dor causada por um espinho, a doença ou a própria morte, como parte do ciclo da vida.
– Que sofrimentos ameaçam a vida? Aqueles que são conseqüência do pecado humano, todas as formas de discriminação e destruição, a própria violência.
– Todo sofrimento torna-se uma cruz? Que significa carregar a própria cruz? A partir da leitura de Jr 15.15-21, vemos que o profeta não causou sofrimento para si próprio. De modo semelhante, também Jesus não buscou o sofrimento. Sua morte na cruz é conseqüência de sua fidelidade ao projeto de Deus.
– Quais são as cruzes do discipulado? A leitura do evangelho traz o dilema do discipulado. O comprometimento com o reino de Deus pode ter como conseqüência o sofrimento. Rm 12.1-8, tema do ano para a IECLB, mostra que o testemunho cristão precisa ser transformador. Como Jeremias em seu tempo, nós, em nosso tempo, somos desafiados a contestar situações que ameaçam a vida. Somos desafiados a agir na perspectiva de mudança de realidades e estruturas que produzem morte e violência. Na comunidade cristã, o corpo de Cristo, não pode haver isolamento, mas valorização dos diversos dons e solidariedade para com as pessoas que sofrem discriminação, violência, injustiça.
Bibliografia
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