Prédica: João 5.24-29
Leituras: Salmo 126 e 1 Coríntios 15.50-58
Autor: Teobaldo Witter
Data Litúrgica: Dia de Finados
Data da Pregação: 02/11/2005
Proclamar Libertação – Volume: XXX
1. Introdução
Tenho vários anos de pastorado. Oficiei o sepultamento de muitas pessoas: crianças, jovens, adolescentes, idosos, homens e mulheres, enfim, pessoas de todas as idades. Foram amigos, parentes, pessoas conhecidas ou gente do convívio diário. De minha própria casa já acompanhei a saída do caixão, levando pessoas muito queridas minhas. Já fiz muitos protestos e acompanhei protestos de familiares de vítimas de violência e morte. Poder-se-ia dizer que não é mais novidade falar a respeito de finados, morte e luto.
No entanto, falar de tais assuntos sempre é novidade. Toda vez que falo do assunto é como se fosse a primeira vez. Neste sentido, entendo-me como um aprendiz. Ouço as pessoas, a situação real e, especialmente, o que o senhor quer dizer nesse momento. Cada situação é uma situação específica e nova. E a gente sempre tem que ser lembrado de que Deus nos deu dois ouvidos e uma só boca. E a palavra, quando for dita, precisa testemunhar a solidariedade e o consolo que vem de Deus, que se expressam em gestos humanos. Em momentos de dor, a palavra parece ter mais poder do que em outras situações. Mas não adianta falar por falar, dizer por dizer ou querer dizer “umas verdades”. As palavras devem, no entanto, estar acompanhadas da solidariedade expressa por Jesus Cristo:“Eu sou a ressurreição e a vida. quem crê em mim, ainda que morra, viverá …” (Jo 11.25). Dele, somente dele, vêm consolo e amor.
Por outro lado, percebemos a liberdade que Deus nos dá para tratar do assunto morte e luto. A Palavra do Senhor nos leva à fé e confiança nele. Livra-nos do exagerado medo da morte. Se, por um lado, reconhecemos a gravidade, a perturbação e o caos que a morte produz, por outro lado, Deus nos livra pela fé e esperança na ressurreição para a promoção da vida com dignidade. O texto a seguir quer nos ajudar nesse caminho entre morte e vida para a edificação da comunidade de fé, da esperança, da terapia e de solidariedade com todas as pessoas que são agredidas em sua vida. Consolamo-nos, mutuamente, com a palavra do Senhor Jesus, que diz: “quem ouve a minha palavra… passou da morte para a vida” (Jo 5.24).
2. Contexto de João 5.24-29
O texto bíblico indicado como base para a pregação da palavra do Senhor está inserido no contexto maior que vai do capítulo 3 ao 6 no evangelho segundo João. Este bloco pode ter o título: Jesus veio para os seus discípulos.
O bloco pode ter duas partes menores, quais sejam: Jesus veio na palavra do Pai (capítulos 3 e 4). As principais ênfases são: Jesus se encontra com Nicodemos, João Batista dá testemunho a respeito de Jesus, o encontro com a mulher samaritana na fonte de água e a pregação a respeito da ceifa e dos ceifeiros.
O segundo bloco menor pode ter o título: Jesus veio em seus milagres (capítulos 5 e 6). Os destaques dessa parte são: a cura do filho do oficial de Cafarnaum, a cura de um paralítico que há 38 anos esperava por aquele momento de restauração, a missão do pai se concretiza na ação do filho, a palavra dá a ressurreição (ressurreição para a vida e ressurreição para o juízo), multiplicar e repartir os pães, Jesus anda sobre o mar, Jesus é o pão da vida, a aflição dos discípulos e a confissão de Pedro.
O contexto nos ensina a presença real e concreta do Senhor. Não há nenhum momento na história da humanidade em que se possa perceber Deus presente tão concretamente como nos é dito e ensinado no texto bíblico. Jesus se encontra com as pessoas em meio às suas dúvidas e interrogações. E ele não deixa ninguém na mão. Além de ouvi-las atentamente (Nicodemos, a samaritana, o doente…), Jesus faz perguntas. E as pessoas começam a refletir sobre si e seu mundo de maneira ainda não pensada antes por elas mesmas (veja Nicodemos, a samaritana…). Jesus também se manifesta em milagres. Jesus vence os temores humanos (o mar, a fome, a morte…). Inclusive os mortos ouvem a sua voz. “O contexto mostra a vida que Jesus traz em sua palavra e em seus sinais bem concretos, que fortalecem a vida e luta contra a morte, que está instalada a seu redor. Jo 5.24-29 mostra que a morte que nos rodeia em vida e a que vai nos encontrar no fim da vida já começa a ser superada desde agora pela salvação, através do ouvir da palavra de Jesus e pela fé em Deus”, conforme v. 24 (PL 29, p. 304).
3. O texto de João 5. 24-29
v. 24: Palavra e fé vão juntas, isto é, estão unidas, sendo que a palavra provoca a fé. O texto diz ainda que quem crê, alimentado na fé que vem pela palavra pregada pelo filho, e crê no pai que o enviou, esta pessoa tem a vida, está livre do juízo e passou da morte para a vida.
A morte é a realidade mais cruel, o caos em meio ao caos humano. Desde que a humanidade se deu conta dessa realidade, luta em vão para superá-la (eterna juventude, acumulação de bens, monumentos, ser lembrado na posteridade etc). Sonha com reencarnação, imortalidade da alma, ressurreição no futuro. O texto diz: quem crê no ensino do Filho e no Pai que o enviou já tem a vida eterna. Ele não apenas fala no futuro, mas no presente, “tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida”. Está, portanto, libertado do poder escravizador da morte.
A pergunta que logo se faz é: quem ouve e crê não vai mais para a sepultura? Todas as pessoas vão para a sepultura, até Jesus Cristo voltar em glória, quando um grande acontecimento será efetivado (1Ts 4.14-15). Apesar de estarem sujeitas a toda espécie de penúria humana, inclusive perseguições e incompreensões, estão libertas do poder da morte no presente, pois libertação da morte significa para os evangélicos luteranos que eles mantêm a esperança mesmo no desespero (Rm 4.18). Nós temos a liberdade dos sem-esperança. Não desanimamos com seguidos fracassos. Enxergamos longe. Mostramos que os mecanismos da preocupação e do medo deixam a pessoa passiva, induzindo-a a acomodar-se. Desmascaramos e desarmamos tais mecanismos e, em situação de risco, sabemos que a morte jamais é o fim. Em conseqüência, a vida, seja como ela for, não é tudo. Evangélicos luteranos o comprovam em sua existência. Estão conscientes de que todos os movimentos de libertação começam quando um punhado de pessoas perde o medo (A. Baeske).
A liberdade que Deus nos dá, ao nos incluir, pela fé e confiança, no seu reino de graça e paz, impulsiona-nos a lutar em favor da vida de todas as pessoas e em todas as dimensões, tratando das feridas e dores e trabalhando para interromper o ciclo da ausência de fé, da violência, do ódio, da miséria, do medo e da morte.
v. 25: Todos os seres ouvem a voz do filho de Deus. Não há limite para a abrangência da ação de Deus. Os mortos estão sendo chamados e incluídos na ação de Deus. Quem ouve viverá. Mesmo quem estiver longe, “no vale da sombra da morte” (Sl 23.4a), pode ouvir a voz de Deus.
v. 26: Deus Pai é a fonte da vida. Esta vida ele a deu ao filho, pois “a vida estava nele e a vida era a luz dos homens” (Jo 1.4). É o poder criador e recriador de Deus. Por ser fonte da vida, recria-a também pela ressurreição dos mortos.
v. 27: Jesus tem o poder de julgar, porque ele é Deus. O juízo é realidade para quem não quer ouvir a voz do filho e, conseqüentemente, não quer chegar à fé e confiança em Deus.
v. 28 e 29: Está em curso o veredicto final: quem ouve a palavra e crê passa da morte para a vida. É processo contínuo: aconteceu antes, acontece agora e acontecerá depois. Os que estão longe, os indiferentes, os neutros, os mortos também estão sendo chamados. “Acontecerá o grande julgamento, quando o Filho do homem vier na sua majestade… e reunir todas as nações na sua presença” (Mt 25.31ss). Mas lembramo-nos, no entanto, de que as afirmações dos v. 24-25 continuam valendo. O que se diz ali é muito precioso.
Os que tiveram feito o bem sairão para a ressurreição da vida, mas os que estiverem feito o mal sairão para a ressurreição do juízo (v. 29). Não vamos entender que são as obras que salvam. O importante é ouvir a pregação que provoca e alimenta a fé. Entendo que aqui se fala da prática da fé como conseqüência do convite que Deus faz. Gostaria de lembrar a afirmação de Martim Lutero: “as obras boas e piedosas jamais tornam a pessoa boa e justa, mas a pessoa boa e justa realiza obras boas e piedosas”. Para os cristãos, as boas obras são frutos da fé e confiança em Deus criador e salvador.
Concluímos com as palavras de Martim Lutero: “Sim, onde estiver a fé, ela não consegue se refrear, ela se comprova, irrompe e confessa e ensina esse Evangelho diante das pessoas e por ele arrisca sua vida. e tudo o que ela vive e faz destina-se ao proveito do próximo, para lhe ajudar, não só que ele alcance semelhante graça, mas também no que tange ao corpo, propriedade e honra, (da mesma forma) como ela vê que Cristo lhe fez, seguindo, portanto, ao exemplo de Cristo… onde não irrompem obras e amor, a fé não está bem, o Evangelho ainda não pegou, e Cristo ainda não foi bem reconhecido” (Prefácio ao NT, In: Pelo Evangelho de Cristo, p. 176).
4. Salmo 126.1-9
Choro, sofrimento, tristeza ainda são realidades no cotidiano do ser humano. Mas o salmo expressa a alegria pela nova realidade. Sonhamos com nova vida, novo corpo, nova realidade, novos relacionamentos, com o fim da morte, da corrupção, do egoísmo e da pulsão de morte. Sonhamos com a pulsão de vida. A vida vence, porque Deus garante a vitória da vida. Nesse sonho está também o sonho de Deus. Aliás, é desse sonho de Deus como fonte da vida que nossos sonhos de vida, paz e justiça ganham corpo e concretude.
5. 1 Coríntios 15.50-58
O poder criador e recriador de Deus não permite o nada, o vazio. Ele tem o poder de recriar a pessoa caída sob o poder de pecados e morte. Jesus venceu com a ressurreição a morte. Não é mais a morte que comanda. A palavra tem poder recriador. O texto fala em novo corpo: o nosso corpo da corrupção será revestido e será tornado incorruptível e o mortal em imortalidade (v. 53). A ressurreição de Jesus é realidade. A nossa esperança é a nossa própria ressurreição mediante ação de Deus e nosso compromisso com essa voz do bom pastor.
6. Pregação no Dia dos Finados
Quando estamos em época de Finados, confrontamo-nos mais diretamente com o tema morte. Apesar de que ela nos encontre cotidianamente, é nessa época em que a gente se dá conta do que aconteceu. Damo-nos conta do que aconteceu com pessoas de nosso convívio e, certamente, somos tocados com o fato de que alguém esteve conosco e não está mais.
Nossa relação com a morte, nesse sentido acima, é entendida de muitas maneiras. Há pessoas que estão trabalhando bem com a separação causada pela morte, outras estão indiferentes e, outras, certamente, sofrem muito e não conseguiram trabalhar o luto. Em todas as situações, a palavra do Senhor nos encontra e quer mexer conosco. Ela quer nos colocar na real, pois desvela a morte tal como ela é: o maior dos nossos inimigos e o preço que pagamos pelo afastamento de Deus.
A morte é a desestabilização de tudo o que nos é precioso. É o caos total e completo. Na morte perdemos tudo o que somos e temos. Nem nós nos podemos ajudar, nem as pessoas que nos amam podem fazer alguma coisa por nós por ocasião da morte. Tão profunda e radical é a morte. Entramos num túnel e somos arrastados por uma força indomável. É o pior que pode acontecer. A morte é o fim. depois da morte, o silêncio se segue. Silenciam os palpiteiros, os de opiniões fáceis, que tentam esconder o problema, silenciam os médicos. Na morte, um grande e profundo silêncio se prolonga.
Querer fugir da radicalidade da morte significa banalizar a mensagem cristã que anuncia a vitória sobre a morte. Mais radical do que a morte é a ação de Deus. Deus, em Jesus Cristo, veio do mundo metafísico, diretamente, sem intermediário nenhum, e agiu. Não ficou indiferente, nem naturalizou ou banalizou qualquer questão humana, incluindo a sua maior preocupação: a morte.
A palavra se torna carne. É a incisão da palavra viva, que veio do mundo metafísico para o mundo físico, na história humana, pois “a vida estava nele (no verbo) e a vida era a luz dos homens” (Jo 1.4). E a palavra diz: “Eu sou a ressurreição e a vida. quem crê em mim, ainda que morra, viverá” (Jo 11.25). Por isso, o apóstolo pode escrever: “Tragada foi a morte pela vitória… graças a Deus, que nos dá a vitória por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo” (1Co 15.54b, 57).
Depois de perceber a ação reconciliadora e salvadora de Deus, a vida não é mais a mesma. Tudo mudou. Mudou a maneira de entender a morte. Ela não tem mais aquele poder arrasador. O grito de desespero diante da morte virou grito de esperança, pois “agora estou aqui sendo julgado por causa da esperança da promessa que por Deus foi feita a nossos pais… por que se julga incrível entre vós que Deus ressuscite os mortos?” (At 26.6, 8). A afirmação de estevão é contundente: “Eis que vejo os céus abertos e o Filho do homem, em pé à direita de Deus” (At 7.56). Jesus foi ressuscitado por Deus. E a esperança é a nossa ressurreição. Portanto, a morte perdeu o seu poder. Jesus a colocou debaixo dos seus pés e a enterrou no abismo. Temos vida agora e depois também. Jesus nos salvou do horror da morte. Livres por ele, podemos amar e servi-lo nas pessoas necessitadas.
Bibliografia
Baeske, Albérico. Quem são os evangélicos luteranos? In: Ingo Wulfhorst, ed. Grupo de Trabalho sobre Movimentos Religiosos; Informação e posicionamento; Fascículo n° 10. São Leopoldo: Faculdade de Teologia – IECLB, 1994. (cópia xerocada).
Grübber, George E. Edmundo. João 5.24-29. Proclamar Libertação. São Seopoldo: Editora Sinodal, Vol. XVIII. p. 267-271, 1992.
Lutero, Martinho. Pelo Evangelho de Cristo: Prefácio ao Novo Testamento. São Leopoldo e Porto Alegre: Editora Sinodal e Concórdia Editora. p. 171-177, 1984.
Wolf, Günter Adolf. João 5.24-29. Proclamar Libertação. São Leopoldo: Editora Sinodal e EST, vol. 29. p. 302-310, 2003.