Prédica: Lucas 2.1-7
Leituras: Salmo 2.6-12 e Colossenses 2. 15-20
Autora: Sisi Blind
Data Litúrgica: Vigília de Natal
Data da Pregação: 24/12/2004
Proclamar Libertação – Volume: XXX
Tema: Natal
1. – Palavras
É Natal. Os tempos de atropelo estão terminando. Os últimos dias foram tão intensivos, que esquecemos de analisar os detalhes das questões que nos cercaram e nos deixamos atropelar pela corrida de mais um tempo de Advento. Portanto, queremos propor que este ano seja diferente. Não queremos mais que esses dias sejam de canseira e exaustão, mas que possamos festejar este Natal como se fosse o último. O convite é para que tenhamos tempo de revisar nossa maneira de ver o sentido de tudo o que faz parte do Natal. Também as palavras e os símbolos precisam ser revistos e repensados.
A celebração natalina é uma excelente oportunidade para fazermos um momento que contenha um diferencial neste ano. Nossa sugestão é que seja um momento bonito, cativante e diferente. Não vamos fazer uma prédica natalina somente, vamos fazer uma celebração inclusiva. É preciso prepará-la antecipadamente. Os símbolos podem ajudar a entender aquilo que as palavras expressam. Palavras que há tanto tempo fazem parte do nosso Natal. “Palavras, apenas, palavras pequenas…” São palavras que usamos para transmitir nossos votos de Natal. São palavras cantadas, faladas, escritas e ditas. Palavras de hoje para falar dos fatos que sucederam naqueles dias.
2. – Naqueles dias
Toda história tem seu lugar. Também o evangelista Lucas situa a história do nascimento do menino num lugar, num determinado momento da história. A partir da época, sabemos qual o contexto sóciopolítico em que estão envolvidos os acontecimentos do nascimento da criança de Belém. É a presença da ação de Deus na vida cotidiana das pessoas. O contexto político é a região da Palestina sob o domínio do Império Romano.
Naqueles dias, diz o texto, Quirino era governador da Síria. Não existe precisão histórica em relação à data e às questões que estavam acontecendo. Mas existe uma preocupação do autor em colocar a história num contexto internacional. É através da localização da história que o autor quer transmitir que o nascimento do menino é um fato que tem contexto de influência internacional. Não há precisão nas datas, mas há certeza do que é dito.
Sabemos que, naqueles dias da história da humanidade, acontece algo que interfere na compreensão de sociedade e poder. Naqueles dias acontece um chamado para toda a população do Império Romano. Não é apenas um chamado. É um decreto.
3. – Decreto
Decretos são ordenamentos que devem ser cumpridos. De acordo ou não com os decretos, as pessoas que fazem parte de uma nação, sob as ordens de um governo, são submetidas às leis e aos desígnios que são provenientes da direção.
No caso do nosso texto, a população está sob as ordens de César Augusto. É César Augusto quem manifesta posição de poder. É ele quem determina os acontecimentos da nação a partir do seu decreto. Toda a população coloca-se em movimento, um movimento de obediência ao que foi promulgado.
Assim ainda fazemos hoje. Quando da parte dos governantes se estabelecem ordenamentos, nós cumprimos. Assim todos os brasileiros que movimentam seu dinheiro nos bancos pagam CPMF; da mesma forma votamos por causa da lei da obrigatoriedade do voto. Da mesma forma, Maria e José põem-se a caminho para o cumprimento da ordem dada. A ordem do império é que toda a população se identifique cadastralmente. É uma pesquisa populacional, que tem como objetivo levantar os dados da realidade daquele povo
4. – Recenseamento
O recenseamento é, de certa forma, a nota fiscal em prol do império. O objetivo do decreto é o recenseamento de pessoas, que também são trabalhadores e proprietários. É a pesquisa qualitativa e quantitativa. Quer-se saber o que faz parte do território do império, ou seja, quem são as pessoas, o que elas fazem e o que elas possuem.
A pesquisa compilará as informações para fins de tributação e análise da realidade do próprio império. É o recenseamento que dará ao governo da época a capacidade da leitura de sua realidade e a proposição de seus projetos de governo.
Com certeza um governo nada democrático e participativo, antes um governo de imposição e centralidade no seu próprio interesse e não no interesse da população. Um governo de conquista, de interesse expansionista. Portanto é preciso reforçar esse sistema, para que seu poderio possa alcançar e manter suas metas conquistadoras. Para isso nada melhor do que uma lista que contemple a composição do território conquistado.
5. – Alistar-se
Alistar-se é fazer parte da lista desejada. Cada um em sua cidade é algo tremendamente interessante. Pois, além de se ter uma lista, tem-se também a noção de descendência, parentesco, realidade e entendimento da tradição e história de um povo. Nós como igreja entendemos muito melhor nossas comunidades quando conhecemos de que tradição, de que grupo, de que forma comunitária os membros que compõem a comunidade procedem.
A lista que contempla a origem, a ascendência dos alistados é um tesouro nas mãos do império. É assim que ele saberá lidar com os cidadãos de seu governo. Politicamente correta é a atitude do império, que defende seus interesses. Podemos ser críticos em relação ao objetivo do império, mas podemos aprender com a sua metodologia, que contempla riqueza e sabedoria para o trabalho de entender quem é a população que está sob sua jurisdição.
Havia naqueles dias grupos, pessoas, que faziam oposição ao governo e assim não obedeciam aos decretos, mas este não é o caso dos nossos personagens textuais. José, mencionado no texto, se sujeita ao ordenamento e coloca-se em movimento.
Ao alistar-nos, fazemos parte de um conjunto. Listas fazem parte também de nossas vidas. Estamos alistados nas entidades civis, na comunidade religiosa, nas entidades beneficentes… Existem as listas voluntárias, as listas necessárias, as listas obrigatórias. José fazia parte do conjunto da população que pertencia à realidade de vida da época e assumia também todas as suas circunstâncias.
6. – José
José é moço da casa e da família de Davi. Informação importante para o império. Nessa terra tem gente de descendência real. Faz parte da população do Império Romano a dinastia davídica, que perdeu o seu lugar.
José é exemplo daquele povo que perdeu seu lugar. Ele já não reside em sua casa. Sua terra já não é mais sua, sua tribo já não existe, seu clã foi dizimado. Ao que o texto indica, José perdeu o referencial de sua terra. Sua ascendência parece não existir mais naquele local. Pois ele e sua esposa não encontram lugar em sua “casa”. Este fato poderia nos indicar que José não possui mais grupo familiar em sua terra natal. O que significa isto? Poderia o próprio fato da pertença ser responsável pelo despovoamento familiar? Isso porque o exílio ao qual o povo de Deus foi submetido foi mais rigoroso com as famílias dos monarcas. Isto é apenas uma hipótese, considerando a lógica da história do povo de Israel. José saiu de Nazaré, da Galiléia, e foi para Belém, da Judéia. Ele é migrante. Migrantes são todos aqueles que por razões diversas saem de sua terra natal, familiar, para outros lugares. As razões são infinitamente diversificadas, mas, muitas vezes, elas são decorrentes da inviabilidade de sobrevivência no local de nascimento. Essa realidade está muito presente na própria IECLB (Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil).
Ao que tudo indica, José é um migrante pobre. Ele vai a Belém acompanhado de sua esposa Maria, em estado avançado de gravidez. O que poderiam eles levar consigo? Poucos pertences, considerando a distância e a dificuldade da viagem que eles empreenderam.
7. – Maria
De Maria pouco se sabe. Ela é a esposa de José, que estava grávida. Se ela é da mesma terra, o texto não fala. Aliás, de Maria não se fala, a não ser que é esposa de José e que está grávida. Não fica claro se a contagem de toda a população também inclui a mulher ou não.
Sabemos apenas que Maria acompanhou José. O que deve ter sido uma tarefa bastante difícil, pois no estado avançado de gravidez empreender uma viagem tão grande não deve ter sido agradável. Lembro de minhas caminhadas como gestante. O deslocamento da gestante pode ser tranqüilo, mas os passos dos últimos tempos da gravidez são mais lentos. O corpo torna-se pesado, nossa agilidade está comprometida e nosso fôlego é mais curto. A alegria do movimento do bebê não tira o peso e o inchaço do organismo da mulher.
Como mulher me chama a atenção o fato de Maria estar a caminho, sem lugar fixo, justamente nos últimos dias da gravidez, pois este período é o tempo em que a maioria das mães prepara suas sacolas para ir ao hospital. Preparamos o nosso conforto, buscamos as coisas necessárias para nós e para o bebê. Maria encontra-se no desconforto, na transitoriedade, não tem lugar fixo.
O decreto do império atinge a mulher em sua condição de esposa. O bebê é atingido pela manobra do governo, pela sua condição de feto. Todas as decisões na vida atingem as pessoas, que de uma forma ou de outra fazem parte do corpo familiar/comunitário. Ainda que Maria não seja o objeto da pesquisa, ela foi à cidade de José e ali se completaram os dias.
8. – Os dias
A espera de uma criança é algo extraordinário. O pré-anúncio do nascimento são as inúmeras contrações e a imensa dor que o parir causa. Ao completarem-se-lhe os dias de gestação, Maria é atingida pelo pré-anúncio do nascimento. Este anúncio se dá a essa mulher anônima, que sente sua dor em lugar estranho. O mais estranho desse lugar é que não há espaço, não há sensibilidade para a situação dessa pobre retirante.
O parto é algo que, quando anunciado, não tem como parar. Assim, Maria, querendo ou não, precisará de forças para fazer nascer seu filho. Sem lugar, sem assistência, essa grande mulher enfrenta a sua dor na solidão do abandono. José estava com ela, mas eram somente os dois. Ele, homem obediente ao decreto do império. Ela, submissa à sua condição de esposa, expõe a sua própria vida e a da criança para cumprir o decreto emitido a seu esposo. Exposta a precariedade, nasce-lhe o menino. Em meio à escuridão da noite, ela deu à luz.
9. – Luz
O nascimento é um ato iluminador. A luz é tão grande, que ofusca os olhos daquele que passou nove luas no ventre escurecido da mãe. As crianças, ao nascerem, sob as condições das maternidades de nossa época, são cegadas pela luminosidade do ambiente. É tanta luz, que os olhos não vêem.
Já no caso do nascimento do menino de Maria, não ocorreu esse problema. A escuridão ao redor da manjedoura foi iluminada pela luz da criança. A luz do pequeno menino denuncia a precariedade da sociedade, que tem decretos, mas não tem lugar. Sim, o império tem leis e decretos para as pessoas, mas não oferece as mínimas condições para que as pessoas possam cumprir o exigido. O espaço para a luz que Maria concede é fora do âmbito da vivência e da comunhão das pessoas.
A luz que Maria dá ilumina a sociedade cegada por sua própria luminosidade. O menino que nasce em precárias condições é o ato de amor de Deus que denuncia os atos de desumanidade das estruturas humanas. A luz que vem ilumina a vida a partir de fora. Não é do centro do poder que vem essa força, mas do lado de fora. Da periferia da pequena Belém.
10. – Enfaixou-se
Faixas são utilizadas em situações distintas. Os governantes recebem as faixas condecorativas. As princesas e as rainhas recebem faixas para identificação de sua colocação e desfilam com as belas faixas cheias de rendas, lantejoulas e pedras bordadas.
Faixas também são usadas para envolver e curar feridas e para firmar quebraduras. Maria envolveu sua criança em faixas. Certamente não eram faixas decorativas, antes eram panos que estavam desajeitadamente arrumados na pequena bagagem de viagem. Na sua sacola, Maria tinha carregado o imprescindível. Panos que poderiam envolver seu bebê. Ela carregou com José essa bagagem, sem saber que seria a única coisa que o seu bebê receberia.
A criança que saiu do aconchego do útero materno encontrou o conforto nos braços do pai e a doçura do alimento no seio da mãe e as faixas que ambos trouxeram para condecorar aquele pequeno rei que lhes havia nascido.
11. – Manjedoura
A manjedoura é o lugar para a criança. O texto não fala do lugar da mãe e nem do lugar do pai. Para a criança tem um lugar. Não temos detalhes, no texto, de como era essa manjedoura. Com certeza não tinha colchão e muito menos cobertor de fibra. Não havia toalhinha bordada com ponto cruz e muito menos lembranças para os visitantes.
A manjedoura é cocho de alimentar animais. Ali pode ter no máximo resíduo do alimento que os bichos comem. O cocho é forte e oferece proteção ao recém-nascido, mas não tem conforto. Ali o menino recebe o seu lugar. A mãe de Moisés teve o tempo de lhe preparar um cesto de junco, calafetado de betume e piche (Êx 2.3). A mãe de Jesus não teve sequer lugar e nem tempo de lhe preparar um lugar, mas tinha a faixa para envolvê-lo e deitá-lo no cocho, que lhe ofereceu o resíduo do alimento dos animais, a sobra. A palha é sobra. Ela serviu para amaciar a dureza da madeira para acolher aquele frágil menino.
12. – A celebração
Que seja diferente. Que as palavras possam ser aliadas com os símbolos. A composição da mensagem pode montar o presépio. Outra alternativa é trazer símbolos que falam do que essas palavras representam. É importante que cada palavra seja importante na composição do entendimento aprofundado do Natal. Cada palavra poderá ser apresentada por uma pessoa ou um grupo diferente da comunidade. Assim essa celebração será intensamente participativa. Cada palavra poderá ser retrabalhada nos grupos, enriquecendo assim o seu conteúdo e fazendo a reflexão ser diferente da que sempre fazemos a partir desse texto. Importante é que esse culto seja realizado por uma equipe, fazendo-o mais rico e bonito.
Proclamar Libertação 30
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia