Prédica: Marcos 6.34-44
Leituras: Gênesis 2.2-17 e 2 Tessalonicenses 3.6-13
Autor: Wilhelm Wachholz
Data Litúrgica: 22º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 16/10/2005
Proclamar Libertação – Volume: XXX
1.Textos do Antigo Testamento e da Epístola
Lembre-se de que o domingo (dia 16) é reservado ao Dia Mundial da Alimentação. Os três textos indicados têm o alimento como tema comum. Em Gn 2.2-17, é relatado que, antes da criação do ser humano, “nenhuma erva do campo havia brotado” (v. 5). Depois que o ser humano “passou a ser alma vivente” (v. 7), Deus “sai” a plantar (v. 8) e faz brotar árvores que pudessem servir de alimento (v. 9). O alimento é doação de Deus e, quando é apropriado de forma egoísta, redunda em pecado (v. 16s).
Conforme 2Ts 3.6-13, Paulo percebia que pessoas cristãs locais estavam vivendo às custas de outros, alienadas da realidade terrena, sob pretexto da vinda iminente do Senhor. Esse contexto é importante para que não se interprete o texto de forma legalista. Atualizando o texto para nossos dias, cabe lembrar dos milhões de desempregados/as que procuram desesperadamente por trabalho e, por falta dele, não têm o que comer.
2. Introdução ao texto da prédica
O texto do evangelho encontra paralelos nos outros três evangelhos. Em Mc, Mt e Lc, a perícope é antecedida pelo relato da morte de João Batista. Somente em Mc e Lc, o relato da multiplicação está vinculado ao envio dos doze por Jesus. O retorno dos discípulos para junto de Jesus (Mc 6.30 e Lc 9.10) ocorreu depois de terem sido enviados para pregar, expulsar demônios, curar doentes (Mc 6.12s e Lc 9.1s, 6). Portanto, o contexto é o do serviço, de anunciar e restaurar a dignidade das pessoas.
O relato do partir dos pães e peixes é repetido em Mc 8.1-10. Trata-se de um recurso narrativo que também é encontrado no AT, com o objetivo de, num lugar de privação do alimento (deserto ou lugar desabitado), apontar para a manifestação do poder divino: Deus provê pelo seu povo (Ex 16; Nm 11.31ss; Dt 8). Em Mc se combina isso com a imagem de Jesus como “pastor de ovelhas”.
3. Texto da prédica
v. 30: Os discípulos, na condição de enviados de Jesus (v. 7), retornam e relatam, eufóricos e impressionados, o que puderam realizar e ensinar. No Evangelho de Marcos, esta é a única referência aos discípulos como ensinadores. A condição daqueles doze não pode limitar-se somente a de discípulos (= aprendentes), mas também de apóstolos (palavra derivada do grego cujo significado é “enviado”, “mensageiro”, ou seja, ensinante).
v. 31: Jesus revela-se especialmente compreensível e solidário: “Descansem um pouco”. Ele sabe que o corpo tem seus limites. Os discípulos também precisavam de tranqüilidade para alimentar-se. Mas o fato de se retirarem para um “lugar deserto” – lugar inabitado – indica que Jesus deseja que meditem em paz. Portanto, o descanso visa não somente o corpo, mas também o espírito. A euforia impediria que refletissem sobre a missão realizada.
v. 32s: A seguir, junto com Jesus, todos se retiram num barco para o Mar da Galiléia. Muitas pessoas acompanham Jesus e os doze a pé pela margem do mar. Será que são peregrinos? Ou são pessoas colocadas em movimento pela ação anterior dos discípulos ou do próprio Cristo? Ou são pessoas que vão ou vêm das celebrações pascais? O texto relata que essas pessoas chegam ao lugar do desembarque antes de Jesus e dos doze.
v. 34: As pessoas esperam por Jesus e ele se compadece delas. A partir de Mc, não se poderia afirmar que a compaixão de Jesus fora motivada por necessidades bem concretas do povo. (Em Mt 14.14, a multiplicação é precedida de cura e, em Lc 9.11, de curas e pregação.) Por meio de sua pregação Jesus torna aquelas “ovelhas sem pastor” em rebanho, em corpo. Os milhares se tornaram uma comunidade. A caracterização daquelas pessoas como “ovelhas sem pastor” indica uma crítica às autoridades; elas não se compadecem nem se preocupam com as necessidades espirituais e materiais do povo.
v. 35s: Ao final da tarde, os discípulos sugerem a Jesus que despeça a multidão para que cada pessoa possa providenciar comida para si – a última refeição do dia era a principal para os judeus! – , pois, naquele lugar desabitado, não se encontraria alimento.
v. 37: Jesus surpreende os discípulos ao não concordar com a sua sugestão. Além disso, faz recair a responsabilidade pela alimentação daquela gente sobre os próprios discípulos. O que Jesus queria dizer com isso? Eles pensam logicamente. Calculam. Somam. São 200 denários disponíveis. Mas este valor não é suficiente (cf. Jo 6.7) para adquirir comida para aquela multidão.
v. 38: Jesus ignora os cálculos dos discípulos e pergunta pelo que, potencialmente, estava disponível ali: cinco pães e dois peixes. O pão de cevada era o alimento principal da ceia judaica e o peixe, grelhado ou salgado, o acompanhamento.
v. 39s: Jesus converte seus discípulos em colaboradores, em partícipes da refeição maravilhosa. A multidão deve sentar-se. Normalmente, naquela situação, as pessoas comiam em pé, sentadas ou de cócoras. Ao insistir que se sentassem, Jesus quer deixar claro que se trata de algo mais do que dar de comer àquela multidão. Como “pastor”, Jesus convida para a comunhão festiva “à mesa”. Ele não quer alimentar indivíduos isoladamente; quer alimentar um povo, uma comunhão de pessoas. Ao fazê-los sentar-se em grupos, ele quer recriar Israel (cf. Ex 18.21, 25) numa nova perspectiva, com dimensão escatológica.
v. 41: Como hospedeiro e “garçom”, Jesus toma os cinco pães e os dois peixes e volta os olhos para o céu. Com este gesto evidenciam-se a liberdade e a sinceridade de Jesus diante de Deus. Sobre a multiplicação de pães e peixes propriamente dito existem basicamente três formas interpretativas. Segundo Schabert, muitos afirmam que Jesus já faz aqui uma alusão à eucaristia. Simbolicamente, já se tem uma alusão a Cristo como o pão da vida, que nutre a comunidade. Outros, segundo Schabert, interpretam o relato na perspectiva da refeição messiânica no reino vindouro. Contudo, o sentido da multiplicação não deveria ser buscado naquilo a que remete, mas no próprio fato em si. Os milagres de Jesus são sinais do mundo vindouro, mundo este que, no entanto, não é somente vindouro, mas também já presente, em que seus sinais irrompem na própria história. Neste sentido, o mundo vindouro irrompe à medida que ocorre libertação do pecado, da injustiça, da morte. Desta forma, a refeição dos cinco mil é um sinal da irrupção do novo mundo para dentro da história; é a irrupção da nova criação de Deus. A comunidade de Jesus Cristo não mais precisa ter preocupação e medo da falta de pão, pois Deus a alimenta e a fez comunidade solidária.
v. 42: A multidão é saciada por intermédio do repartir abençoado de pão e peixe. Ao pensar o coletivo, o povo, Jesus supriu cada indivíduo. Jesus concebe a comunhão no reino de Deus como uma refeição comunitária, que já é experienciada na história. Com aquela refeição Jesus reúne o povo da Galiléia (ele está se despedindo da Galiléia) como parte da aliança escatológica.
v. 43s: O fato de sobrarem doze cestos de alimentos (cf. 2 Rs 4.42-44) após todos (!) terem sido saciados indica a multiplicação extraordinária daquele alimento. A indicação dos doze cestos se relaciona com os doze discípulos. O serviço deles não se encerra ali. Pelo contrário, aquela experiência os desafia à continuidade da ação diaconal. Neste sentido, cabe mencionar que, na igreja antiga, refeição (ágape) e eucaristia são distintos, mas não separados. Na eucaristia, Cristo vem, se doa e faz presente. Na ágape, a comunidade cristã é desafiada a doar-se em serviço. O número de cinco mil não deve ser entendido como absoluto. Ele indica a grandiosidade do repartir abençoado por Jesus.
4. Encaminhando a prédica
No relatório da FAO (Food and Agriculture Organization), uma agência da ONU, divulgado em 25 de novembro de 2003, aponta-se para o crescimento da fome no planeta desde meados da década de 1990. A cada ano, aumenta em cerca de 5 milhões o número de pessoas famintas no mundo. São cerca de 850 milhões de pessoas que diariamente passam fome no planeta. No Brasil, entre 1990-92, eram 18,6 milhões de pessoas (12% da população) e, entre os anos de 1995-96, 16,7 milhões (10%) passavam fome. Este número diminuiu para 15,6 milhões de pessoas famintas entre 1999-2001. Sinal de esperança! Ainda assim, 9% de brasileiros/as passam fome. Ainda segundo o relatório da FAO, não existe falta de alimento no mundo, mas falta política no gerenciamento do alimento.
Diante da conclusão do relatório não temos outra alternativa senão constatar: o alimento precisa ser repartido de forma mais igualitária; quando o “pão” é repartido de forma justa, ele é multiplicado.
O “extraordinário” da multiplicação de Jesus deveria ser concebido a partir desta constatação: existe alimento para todos/as, e isto é dádiva de Deus. Em Jesus Cristo, Deus afirma que, por ser o alimento uma dádiva divina, não pode ser apropriado por uma parte da população de forma que outra seja privada dele.
Vejamos que a multiplicação do alimento por Jesus se dá a partir do pão e peixe disponíveis.
O desafio de Jesus é dignificar as pessoas de forma que todas (!) tenham pão e sejam saciadas. No final da ceia, doze cestos foram recolhidos. A menção a este fato é muito importante, pois indica que, como dádiva de Deus para todos, o alimento não deveria parar na “lata de lixo”. As muitas pessoas que vivem dos restos depositados nas latas de lixo anunciam silenciosa e diariamente a dignidade roubada.
Comungar à mesa representa um ato de reconciliação com o/a semelhante – criado/a à imagem e semelhança de Deus (Gn 1.26). Esta reconciliação não se limita ao outro/a em seu espírito, mas também a seu corpo. A esperança pelo novo mundo irrompe ali onde o amor é servente, diaconal. Pessoas que são feitas comunidade por e de Cristo vivem na relação com o outro, como se a nova criação já estivesse plenamente aí. Por isso, ali onde a comunidade vive como se a nova criação já estivesse presente, ali sempre de novo acontece o milagre do repartir do pão, de forma que a fome não ameace a vida do/a semelhante.
Na ação diaconal, o/a outro/a deve ser o foco e não “eu mesmo/a”. Uma ação diaconal pode ser egoísta quando alguém a realiza “porque se sente bem” ou “porque gosta”. Neste caso, o/a outro/a não é semelhante, mas objeto para alívio de consciência. O verdadeiro altruísmo está quando o/a outro/a não permanece na condição de outro/a (distante!), mas de semelhante. Altruísmo move para a solidariedade, a compaixão e o repartir.
5. Ensaiando iniciativas diaconais
A comunidade vai ser convidada a orar em conjunto a oração do Pai-nosso durante o culto. Em sua explicação sobre a quarta petição dessa oração, Lutero atualizou, para a sua época, o significado do pão: pão significa “tudo o que pertence ao sustento e às necessidades da vida, como, por exemplo: comida, bebida, vestes, calçado, casa, lar […], paz, saúde […]” (Catecismo Menor). Portanto, “pão” diz respeito ao que confere dignidade à vida humana.
Existem muitas iniciativas diaconais de fato evangélicas por se engajar em favor da manutenção e dignificação da vida. Nestes casos, a prédica poderia mobilizar ou reanimar a comunidade em torno de tais iniciativas.
Iniciativas novas poderiam ser tomadas como desafio. Em conjunto com presbitérios, lideranças, setores/departamentos, grupos da comunidade poder-se-ia, por exemplo, iniciar uma “campanha do quilo” em favor de uma creche, asilo ou família necessitada, ou um “sopão” em uma escola de bairro, ou um mutirão para a construção de uma casa, ou doação de móveis para uma família que vive em condições indignas etc. Enfim, cabe “diagnosticar” situações em que semelhantes foram empurrados para a “dessemelhança”, para a exclusão. Fundamental, no entanto, que a iniciativa não seja um projeto pessoal do pastor/a, mas que envolva a comunidade. Isto requer planejamento e decisões antecipadas!
Em cultos anteriores e durante a semana que antecede o culto, a comunidade poderia ser motivada a trazer ao culto e ofertar alimentos que poderiam representar o início (ou continuidade) de um projeto diaconal. A presença em culto de pessoa(s) que vá (ão) receber a doação é muito importante. Com isso poder-se-ia enfatizar que aquelas pessoas são feitas semelhantes por intermédio da solidariedade.
A celebração da Santa Ceia é fundamental (evite-se a formação de filas para a distribuição da ceia; organizem-se pequenos grupos, a exemplo do que Jesus fez). Durante a celebração, poder-se-ia ressaltar que, por meio de pão e vinho, de seu corpo e sangue, Cristo nos concede dignidade ao nos justificar por graça e fé. Como expressão de gratidão a Deus, a comunidade testemunha o amor e a dignidade concedidos por Deus e manifesta sinal de reconciliação. Lembremo-nos: a falta de pão, a fome, a desumanidade são expressões do pecado e da indignidade, fruto da ganância, da negação do/a outro/a como semelhante. Em conexão com a eucaristia, um almoço (ou janta com pães e peixes) comunitário seria extremamente significativo. Neste caso, integrar os “novos/excluídos” tanto no culto como na refeição é fundamental. Que se organizem as mesas de tal forma que pessoas mais integradas na comunidade sentem com as “novas”. Lembrem-se: panelas são necessárias para cozinhar, mas “panelinhas” não servem para edificar comunidade solidária e diaconal!
Bibliografia
DEIS, Fritzleo Lentzen. Comentario al Evangelio de Marcos; modelo de nueva evangelización. Estella/España: Verbo Divino, 1998. p. 208-213.
GRUNDMANN, Walter. Das Evangelium nach Markus. 8. Aufl. Berlim: Evangelische Verlagsanstalt, 1980. v. 2, p. 176-183.
POHL, Adolf. O Evangelho de Marcos; comentário esperança. Curitiba: Editora Esperança, 1998. p. 207-216.
SCHABERT, Arnold. Das Markus-Evangelium; eine Auslegung für die Gemeinde. 1. Aufl. München: Claudius Verlag. 1964. p. 103-108.