Prédica: 1 João 4.11-16
Leituras: Deuteronômio 6.4-9 e João 3.1-17
Autor:Wilhelm Wachholz
Data Litúrgica: 1º.Domingo após Pentecostes – Santíssima Trindade
Data da Pregação: 11/06/2006
Proclamar Libertação – Volume: XXXI
1. Introdução
De novo amor? Talvez possa ser essa a primeira reação ante o texto. Antes de nos preocuparmos com a pregação, é imprescindível que o texto nos sensibilize para conosco mesmos, com Deus, com as pessoas e a realidade. A sensibilização do pregador evita que, em meio à “síndrome da pressa”, busque-se refúgio na racionalidade, redundando numa prédica “teórica”, distante.
A sensibilização provocada pelo texto permite perceber melhor os dramas na comunidade. Dessa forma, o tema do amor pode ser proclamado como um tema novo. Aliás, esta deveria ser a tônica da prédica: amor como novidade. O amor só se torna tema “batido” quando nos fechamos aos desafios que se colocam perto ou longe de nós. O amor precisa ser um tema tão novo quanto é a última notícia de violência, de guerra, de morte, de injustiça, de tragédia, de racismo. Porque o pecado sempre de novo se manifesta, o amor deve ser tema e vivência atualizados.
2. A comunidade joanina e 1 João
Provavelmente 1 Jo se destina a comunidades joaninas da região de Éfeso, na Ásia Menor (atual Turquia), formadas por pessoas de origem judaica, aproximadamente entre 50 e 80 d.C. Posteriormente, também samaritanos e “gregos” integraram as comunidades, revelando a abertura a pessoas de culturas e modos diferentes. Apesar das diferenças, as comunidades caracterizavam-se como participativas, democráticas e fraternas. Jesus era vivido e celebrado a partir do princípio da unidade na diversidade de raças e culturas. Entre aproximadamente os anos 80 e 100 d.C., as comunidades viram-se envoltas em conflitos externos, isto é, com pessoas do “mundo”, judeus, seguidores de João Batista, mas também com cristãos “em cima do muro”, de fé insuficiente e das igrejas hierarquizadas. Nesse contexto foi redigido o Evangelho de João. Finalmente, por volta do ano 100 d.C., quando os conflitos externos praticamente desapareceram, surgiram conflitos internos. A unidade rompeu-se e apareceram os anticristos (1 Jo 2.19). Tratava-se de um grupo que, influenciado pelo gnosticismo, não reconhecia Jesus como Messias (1 Jo 2.22s; 4.2s.) e não se preocupava em “traduzir” o conhecimento de Deus (racional) em amor nem com o julgamento de Deus. Com tais idéias, esse grupo continuava influenciando as comunidades. Além disso, idéias hierárquicas estavam penetrando nas comunidades. Por isso, 1 Jo também quer resgatar o cenário original das comunidades, caracterizado por uma igreja mais participativa, fraterna e de comunhão.
3. Delimitando o texto
O texto sugerido para a pregação encontra-se dentro da perícope que se estende de 1 Jo 4.7-21 (ou de 1 Jo 4.7-5.4, segundo outros comentaristas). O tema do amor perpassa 1 Jo, procurando esclarecer: De onde vem o amor? Como ele se manifesta? Amar e como amar a Deus sendo Ele invisível?
A perícope pode ser dividida e subdividida. Na primeira unidade (vv. 7-10), afirma-se que a origem e a fonte do amor é Deus, revelado em Jesus Cristo. Na segunda unidade (vv. 11-21), afirma-se que o amor de Deus, teste- munhado e experimentado por intermédio de seu Filho Jesus Cristo, atualiza-se por meio da “lógica” do “amor uns aos outros”. Essa segunda unidade pode ser subdividida (vv. 11-16 e 17-21). Na primeira parte, enfatiza-se o imperativo da “lógica do amor fraternal”. Na segunda, introduz-se o tema (novo) do juízo ante o qual não há temor estando no amor.
4. Considerações exegéticas
v. 11: A primeira palavra “amados/queridos” – termo usado para crianças, amigos e companheiros cristãos – revela ternura e sensibilidade fraterna. Indica que o autor se sente irmanado com seus destinatários. Sua mensagem caracteriza-se por evangelho e lei, indicativo e imperativo. O amor que procede de Deus (v. 7) manifestou-se na história por meio de Cristo. Por intermédio da vida, morte e ressurreição de Cristo, Deus revelou a grandeza de seu amor e indicou beneficiários imerecidos: as pessoas pecadoras. Quem se percebe amado por Deus não mais concede espaço ao egoísmo. Por isso, o ato primeiro do amor de Deus por “mim” exige “meu” ato primeiro ao próximo. Somente a pessoa que ama seu próximo pode ter certeza de estar sendo amada por Deus.
v. 12: O amor de Deus não permaneceu preso ao passado, mas se estende para a atualidade por meio do círculo Deus-eu-próximo. Deus ama ainda hoje, e seu amor é experimentado por intermédio de nosso amor. O Deus invisível revelou-se por meio de seu Filho e, agora, revela-se nos seus se e quando se amarem uns aos outros. Os seus são o espelho do amor de Deus. Por meio do amor fraternal, a presença de Deus é evidenciada no mundo. O Deus invisível é “visibilizado” por meio da práxis do amor.
v. 13: Como já no v. 12 e novamente no v. 15, relaciona-se o “permanecer” recíproco: Deus em nós e nós nele. É o amor às pessoas que evidencia o “permanecer” em Deus, da mesma forma como os ramos unidos à videira produzem frutos (Jo 15.1ss.), os quais, por sua vez, não visam primeiramente a Deus, mas se referem às relações de fraternidade entre as pessoas. Pelo fato de que Deus nos deu o Espírito Santo, permanecemos nele por meio da fé e no próximo por meio do amor. O primeiro fruto do Espírito é o amor. Portanto, Trindade não é teoria, mas é amor que impele à vivência do amor.
v. 14: João deixa claro que pneumatologia e cristologia não podem ser dissociados. Em outras palavras, não se pode justificar aqui uma experiência subjetiva do poder do Espírito Santo de forma isolada. Ninguém pôde ver Deus propriamente dito, mas sim seu Filho Jesus Cristo. O ter visto impulsiona ao testemunho. O “ver/crer” não somente implica adesão, mas também confissão de fé (v. 15) e testemunho. O fato de Deus ter enviado seu Filho como “Salvador do mundo” – expressão própria de João – evidencia- se como a prova suprema de seu amor por nós e a fonte de nosso amor para
com o próximo.
v. 15: A missão histórica de Cristo tanto é revelação do amor de Deus como prova da divindade do próprio Cristo. Confessar Jesus Cristo como portador desse amor é condição fundamental para que Deus permaneça na pessoa, e ela em Deus. A ruptura dessa relação de permanência redunda em pecado, e o pecado é a concretização da ruptura de relações humanas fraternas.
v. 16: A fórmula dupla de “conhecer” e “crer” explica-se, de um lado, pela estreita relação entre fé e conhecimento e, de outro, pela luta contra o gnosticismo. O amor crido é simultaneamente conhecido, e vice-versa. Fé somente é possível a partir do conhecimento. Deus não somente amou, mas Ele é amor, ou seja, fonte eterna do amor. Por isso precisa ser amado de todo o coração e de toda a alma (Dt. 6.5). De outro lado, contra o gnosticismo precisa-se afirmar que o conhecimento de Deus se dá pelo contato, pela experiência. Para o gnosticismo, conhece-se Deus simplesmente por meio do esforço da razão. Contra essa típica característica da filosofia grega, que se limita à dimensão vertical, enfatiza-se a dimensão horizontal, de forma a fazer depender o verdadeiro conhecimento de Deus da práxis do amor ao próximo. Assim o “conhecer” e “crer” são postos à prova focalizando o amor como referência para questionar se a fé é de fato verdadeira (v. 20).
5. Algumas idéias
5.1 – Fé e amor
O texto relaciona amor e fé (embora esse termo não esteja explicitado). Contudo, a ênfase aqui não está na fé que se manifesta por meio do amor, mas no amor como evidência do “permanecer” (fé) em Deus (cf. Mt 7.15-23). A fé não “descansa”, mas é “ativa por meio do amor”. A esse respeito, Martim Lutero diz: “Fé e amor perfazem a natureza do cristão. A fé recebe, o amor dá; a fé leva a pessoa a Deus, o amor a aproxima dos homens. Por meio da fé ela aceita os benefícios de Deus, por meio do amor ela beneficia seus semelhantes”.
Amar somente se concretiza quando o amor de Deus não for “privatizado” de forma egoísta. O fato de Deus ter amado primeiro (Jo 3.16) deve “constranger” a estender o amor como uma rede. A pessoa que se deixou sensibilizar pelo perdão amoroso de Deus é liberta e sensibilizada para amar.
O amor de Deus não deve ser “domesticado”, ou seja, limitado a quem já quer bem, à consangüinidade familiar. Lembrando as palavras de Jesus, conforme Mt 5.46, Agostinho afirmou que o amor aos inimigos não pode passar por cima do amor aos “irmãos”. E segue ele: “Acontece como o fogo que, necessariamente, começa por ganhar o que lhe está próximo para se estender em seguida ao longe. Teu irmão está mais próximo de ti do que qualquer outro homem. Do mesmo modo, um homem que te é desconhecido, mas que não te seja hostil, está mais perto de ti do que um inimigo teu, que, esse sim, te é hostil. Estende o teu amor aos que te estão próximos, mas, na verdade, ainda não chames a isso estender. Porque é a ti mesmo que amas quando amas os que te estão estreitamente unidos. Estende o teu amor até aos desconhecidos que não te fizeram nenhum mal. E vai mais longe ainda. Chega até a amar os teus inimigos. Sem dúvida, é isso que o Senhor te pede”. Em outras palavras, a pessoa cristã precisa crescer nas duas direções simultaneamente como uma árvore: para baixo (raízes = fé em Deus) e para cima (ramos = amor fraterno).
5.2 – Corpos violentados
Não raramente cenas de violação contra corpos são veiculadas pela mídia como “show”. A isso precisamos ser críticos. De outro lado, não podemos silenciar nem esconder os corpos que são alvos da violência. Tais corpos precisam nos sensibilizar, provocar compaixão, solidariedade, mover ao amor. Escrevo num momento em que mais de 300 mil corpos de crianças, mulheres e homens perderam a vida no tsunami da Ásia. Milhões de corpos que escaparam da tragédia passam fome e sede e pelo drama da morte de entes queridos não têm mais o teto do lar, estão sujeitos ao desemprego. Sou lembrado das palavras de Cristo, que relacionou as necessidades de seu corpo com as dos famintos, sedentos, forasteiros, nus, enfermos, presos (Mt 25.31-46).
Corpos são alvos do racismo. No dia 12 de janeiro de 2005, jornais trou- xeram a notícia de dois irmãos negros detidos por policiais em Porto Alegre porque corriam, assim como outros jovens brancos, para não perder o vesti- bular numa universidade pública. A detenção custou-lhes o vestibular.
O filósofo francês Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) afirmou que o redirecionamento da preocupação conosco para as outras pessoas é concretizado por meio da abolição da propriedade, produto do egoísmo. Semelhantemente, o filósofo escocês David Hume (1711-1776) afirmou que somente quando “objetos exteriores (por exemplo, corpos de outras pessoas) estabelecem qualquer relação específica conosco e a nós se ligam ou associam” é que provocam nossas emoções (sensibilidade). Segundo ele, somente quem se “associa” a uma pessoa em sofrimento é sensibilizado e se engaja em ações “humanitárias”. Voltando ao exemplo de Jesus em Mt 25, podemos afirmar que, na tradição cristã, o corpo sempre foi tema e locus da solidariedade, da diaconia. Mas a igreja pecou muitas vezes quando silenciou diante dos sofrimentos impostos a corpos.
6. Sugestões para a pregação
Quais são os fatos que marcaram ou ainda estão presentes e marcam a comunidade, o mundo nesse início de junho? É importante não se prender exclusivamente a fatos “distantes” e “grandiosos”, mas, em especial, a desafios e dramas silenciosos (ou silenciados) que envolvem famílias, a comunidade, a cidade. Diante deles cabe ao pregador, sensibilizado, sensibilizar em amor para a práxis do amor. O autor de 1 Jo não está teorizando o amor, mas falando a partir dos conflitos nas relações internas. Considerar isso é importante para que o amor não seja “de novo o velho e batido tema”, mas seja de fato a boa-nova, a manchete, o tema do momento. A reflexão do texto em grupos de estudo bíblico, de crianças, jovens, casais, idosos pode ser uma excelente forma de recolher desafios para sensibilizar e desafiar a comunidade à vivência do amor, de forma a “visibilizar” o Deus invisível por meio da reconciliação de realidades rompidas pelo pecado.
Deus amou primeiramente enviando o Salvador do mundo (Jo 3.16). Seu amor é gratuito, imerecido e garantido. O perdão torna sensível a per- doar e amar o próximo. O rompimento de relações fraternas com o próximo provoca ruptura nas relações com Deus (Mt. 5.23s.). Deus quer ser amado por meio do semelhante.
Deus enviou Cristo para reconciliar, para formar “com-unidade”, corpo, igreja. A práxis do amor visa à unidade. A ausência da vivência do amor é anticristã. Agostinho afirmou enfaticamente que se “tu que rompes a unidade da Igreja de Deus, a qual ele congregou […], vens fazer o contrário de Cristo, és anticristo!” Quem não ama é contra Deus. Por isso, a práxis do amor requer o novo nascimento (Jo 3.1-15). Amar de todo o coração, de toda a alma e força (Dt 6.5) requer o renascimento diário. Vivenciar o Batismo como “morte e ressurreição”, de forma que posso confessar que não somente “fui batizado, mas sou batizado” (Lutero), implica conversão diária.
Por meio da vivência do amor, realidades de ruptura são curadas. Identificando realidades de ruptura, a prédica poderia sensibilizar a comunidade para que se “associe” a sofredores (conflitos na comunidade ou familiares, visitação a pessoas enlutadas, recém-chegadas na comunidade/cidade, amparo a pessoas desempregadas, enfermas, acidentadas, inclusão de pessoas de culturas, raças ou que pensam e agem de forma diferente, tragédias pessoais ou coletivas etc.).
Não por último, não se deveria esquecer que a pessoa e a comunidade que crêem e amam também oram “sem cessar, pois é preciso acautelar-se permanentemente contra pecados e injustiça” (Lutero).
Bibliografia
AGOSTINHO, Santo. Comentário da Primeira Epístola de São João. São Paulo: Paulus, 1989. 219 p.
BORTOLINI, José; BAZAGLIA, Paulo. Como Ler as Cartas de João; quem ama nasceu de Deus e conhece Deus. São Paulo: Paulus, 2001. 46 p.
MORGEN, Michèle. As Epístolas de João. São Paulo: Paulinas, 1991. 108 p. (Cadernos Bíbli- cos, 52)
TREIN, Hans Alfred. 13º Domingo após Trindade: 1 João 4.7-16. In: KIRST, Nelson (Coord.). Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1985. v. 5, p. 196-204.