Prédica: 2 Coríntios 4.5-12
Leituras: Deuteronômio 5.12-15 e Marcos 2.23-28
Autor:Uwe Wegner
Data Litúrgica: 2º.Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 18/06/2006
Proclamar Libertação – Volume: XXXI
1.Introdução: questões de delimitação
Há uma questão de delimitação do texto a considerar. A maioria das Bíblias subdivide 2 Co 4.1-12 em duas unidades: vv. 1-6 e vv. 7-12. O texto para a pregação, contudo, inclui na unidade dos vv. 7-12 ainda os vv. 5-6. Os vv. 5-6, contudo, não tratam exatamente do mesmo assunto que os vv. 7ss. Eles enfocam polemicamente o conteúdo da pregação apostólica: Paulo afirma ali pregar a Cristo, não a si próprio. O pressuposto é, pois, que o conteúdo da pregação apostólica pode degenerar-se em pregação própria. Isso seria, nos dizeres de 4.2, “adulterar a palavra de Deus”. Os vv. 7ss não continuam esse enfoque – eles destacam, muito mais, as condições sob as quais Paulo exerce seu ministério apostólico e procuram esclarecer o que essas condições representam teologicamente. As opções para o pregador são:
a) integrar os vv. 5-6 no texto 4.5-12, respeitando o seu conteúdo parcialmente diferenciado;
b) restringir-se aos vv. 5-6;
c) restringir-se aos vv. 7-12.
Optamos por separar os vv. 5-6 dos vv. 7-12. A pregação limitar-se-á ao conteúdo dos vv.5-6.
2. Exegese dos vv. 5-6
v. 5: “Não pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus como Senhor”. Mesmo que a frase possa encerrar uma apologia (“não pregamos a nós mesmos”, como vocês afirmam), várias passagens de 2 Co fazem pensar, antes, numa polêmica contra os adversários (“não pregamos a nós mesmos”, como vocês costumam fazer). Na pregação de Paulo, Cristo é o Senhor, a quem se devem submeter as comunidades. Os adversários, contudo, agem como se fossem eles próprios os senhores: “Tolerais quem vos escravize, quem vos devore… quem vos esbofeteie no rosto” (11.20). Além disso, fazem a si próprios objetos da pregação (10.12): Gloriam-se de suas origens e realizações (11.16ss), louvando-se, comparando-se e medindo-se consigo mesmos (10.12). Ou seja: Instrumentalizam a palavra no sentido de autopromoção.
“E a nós mesmos como vossos servos, por amor a Jesus.” Paulo entendia-se como “escravo” das comunidades (1.24; 1 Co 3.5,22; 9.19). Ele estava aí para servi-las, não para ser servido por elas. São palavras que remetem ao dito de Jesus em Mc 10.45. Contudo, o serviço de Paulo às comunidades é “por amor a Jesus”. Ele é escravo das comunidades, mas, simultaneamente, conserva uma liberdade interior em relação a elas, pois todo o seu serviço é prestado “por amor a Jesus”. Jesus é o seu Senhor maior, ao qual Paulo deve obediência em última instância (Rm 1.1; Gl 1.10; Fp 1.1). Significa que o apóstolo não poderá compactuar com situações e práticas em que as comunidades afastam-se das orientações dadas por Cristo. Ou seja: os cristãos não podem permanecer como escravos do pecado, uma vez que Cristo quis transformá-los em escravos da justiça (Rm 6.18). Essa é a razão que explica suficientemente toda a liberdade de crítica exercida por Paulo em relação aos coríntios, bem em especial nessa 2 Co.
v. 6: O v. 6 procura fundamentar o que foi dito no versículo anterior, em especial a razão de Paulo pregar a Cristo como o Senhor. E a razão dada é a seguinte: “Porque Deus, que disse: De trevas resplandecerá a luz, ele mesmo resplandeceu em nossos corações, para a iluminação do conheci- mento da glória de Deus na face de Cristo”. Paulo prega a Cristo porque Deus “resplandeceu em seu coração”. Essa ação pressupõe um coração originalmente não iluminado, em trevas, em escuridão. Nos vv. 3-4, o apóstolo refere-se aos corações dos incrédulos com palavras bem semelhantes: os que não crêem são aqueles para os quais o evangelho encontra-se encoberto e em cujos corações o deus deste século cegou os entendimentos. Essa era também mais ou menos a situação em que Paulo se encontrava quando perseguia Jesus. Ele “entendia” Jesus como representando uma ameaça para sua religião e os cristãos como sendo nocivos para as leis e costumes do judaísmo (At 6.13s). Por isso os prendia e encarcerava (At 8.3). Esse entendimento de Jesus impedia que Paulo reconhecesse sua verdadeira natureza como o Enviado de Deus para a reconciliação da humanidade. Sem esse reconhecimento não havia, ao mesmo tempo, uma predisposição ou vontade para submeter-se à sua vontade.
O estado de escuridão e trevas, em que jazia o conhecimento de Paulo sobre Jesus, foi – como assegura o v. 6 – radicalmente transformado por Deus. Assim como na criação a palavra de Deus transformou escuridão em luz (Gn 1.3), por meio de um ato criacional soberano, assim também aconteceu com o entendimento de Paulo. Deus iluminou o seu entendimento para um novo conhecimento sobre Jesus. E esse conhecimento encerra a novidade que o texto resume com as seguintes palavras: Paulo aprendeu a ver na face de Jesus a glória de Deus. Sua compreensão sobre Jesus mudou radicalmente. O apóstolo conseguia entendê-lo agora como o Enviado de Deus e passou a adorá-lo e a obedecê-lo como a seu Senhor e Redentor.
É muito provável que Paulo esteja fazendo alusão à sua conversão com as palavras do v. 6. Sua conversão (cf. 4.1; Gl 1.15s; 1 Co 15.8) representou uma ruptura radical no seu modo de entender Jesus. A conversão é aqui descrita em categorias de um novo conhecimento. Antes da conversão, Pau- lo tinha um conhecimento errôneo a respeito de Jesus, o que o levava a perseguir seus adeptos. Sua mente e entendimento estavam como que “obscurecidos” (cf. 3.15s). A experiência de sua conversão significa luz para dentro dessa escuridão do entendimento. O Cristo crucificado e ressuscitado é experimentado e percebido de forma totalmente nova: não mais como um maldito de Deus, por ter sido pendurado em madeiro (Dt 21.23; 1 Co 12.3), mas como Filho Amado de Deus, que amou a humanidade até as últimas conseqüências na cruz, sendo exaltado por Deus por intermédio de sua ressurreição. A aparição de Cristo a ele no caminho de Damasco (At 9, 22, 26) revelou-o como possuído da glória de Deus. Discorrendo sobre sua conversão, Paulo não fala explicitamente de ter visto a face gloriosa de Jesus como ressurreto – unicamente afirma “ter brilhado ao seu redor uma luz do céu” (At 9.3; 22.6; 26.13). Isso é importante observar, para não se fixar em algo visível e externo. A iluminação que ocorreu não foi diante dos olhos, mas dentro do coração. E por ser o coração a sede da vontade, do entendimento e dos sentimentos, pode-se afirmar que, a partir do instante em que Deus brilhou no coração do apóstolo, transformaram-se radicalmente seu entendimento, sentimento e percepção a respeito da importância de Jesus. Em outras passagens, o apóstolo pode referir-se ao mesmo processo, sem, contudo, fazer uso da terminologia da glória – por exemplo, quando se refere à manifestação do amor de Jesus (Rm 5.5ss; 8.35ss). A referência à glória é, contudo, significativa, por conseguir incorporar melhor aspectos do senhorio de Jesus como crucificado e ressurreto.
Mesmo que essa tenha sido uma experiência que marcou a mudança de vida do apóstolo, ela é, até certo ponto, representativa também para os demais cristãos e cristãs. Pois Paulo não fala propriamente de sua pessoa com exclusividade, mas afirma que Deus mesmo resplandeceu em nossos corações. Quer dizer: aquilo que aconteceu com o apóstolo acontece e deve acontecer também com cada pessoa, na medida e na hora em que a Deus aprouver revelar Jesus como o Cristo.
3. Meditação
3.1 – Falsos pregadores
O v. 5 representa uma forte polêmica do apóstolo. 2 Co está entre as cartas mais polêmicas de Paulo. A polêmica é dirigida contra uma falsa pregação e contra falsos pregadores. A preocupação do apóstolo pode ser bem percebida em 11.4: Em Corinto estão sendo pregados um outro evangelho, outro espírito e outro Jesus do que os pregados por Paulo. O apóstolo deduz que os pregadores são pessoas altamente ambíguas: assim como podem ser sinceros e legítimos, podem igualmente ser enganadores e fraudulentos, disfarçados de ministros da justiça, mas, em verdade, a serviço de Satanás (11.13-15), falsificando com astúcia a palavra de Deus (4.2). Se isso é tão ambíguo, que critérios se apresentam para avaliar pregadores falsos?
Maus pregadores apresentam, segundo Paulo, uma série de características, entre as quais enumeramos as seguintes:
1 – Pregam a si próprios como “Senhor” (v. 4). A característica mais marcante dessa postura em Corinto foi a dos falsos apóstolos acharem-se “superiores” a Paulo e aos outros pregadores (11.5; 12.11). Achavam-se superiores a Paulo por ter maior proximidade ao Jesus terreno (11.22), melhor eloqüência nas pregações (1 Co 1.17; 2.1-5; 2 Co 10.10; 11.6) e dons espirituais de maior impacto e expressividade (1 Co 12-14), em especial o dom de línguas.
2 – Apresentam-se com vanglória e soberba. Uma superioridade genuína não necessariamente precisa levar à vanglória. No caso dos coríntios, no entanto, era o que acontecia. Várias passagens testemunham esse aspecto: 1
Co 4.6s, 18s; 5.2,6; 8.1; 2 Co 10.13. A soberba, para ser alimentada, necessita da comparação. É só na comparação que uns podem sobressair-se a outros, e era exatamente assim que procediam os coríntios, como atesta 10.12. Ora, as comparações usam determinados critérios e, à luz desses, pronunciam-se julgamentos com facilidade. A crítica fundamental a todo esse procedimento Paulo nos oferece em 1 Co 4.7: “Pois quem é que te faz sobressair? E que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te vanglorias, como se o não tiveras recebido?” e em 2 Co 10.17s: “Aquele, porém, que se gloria, glorie-se no Senhor. Porque não é aprovado quem a si mesmo se louva…” Por essa razão, o NT canaliza a glória para Deus, evitando sabiamente a glorificação de pessoas: Mt 5.16; Jo 15.8; 1 Co 10.31; Fp 1.11; 1 Ts 2.6; 1 Pe 2.12.
3 – Tiranizam os fiéis. O fato é ressaltado em 11.20: “Tolerais quem vos escravize, quem vos devore, quem vos detenha…” O pregador torna-se ilegítimo quando não segue Cristo, mas ele próprio torna-se o Senhor dos ouvintes. Isso ocorre quando os fiéis são completamente escravizados ao modo de pensar, às idéias teológicas e à linha teológica dos pregadores. Em geral tais pessoas costumam ser extremamente impositivas, não admitindo opções diferentes ou formas de espiritualidade alternativas.
4 – Falsificam a palavra de Deus com astúcia (4.2). Essa é uma acusação que Paulo reitera também em 2.17 e, dentro de outro contexto, em 1 Ts 2.4-5. A versão de Almeida traduz o verbo grego kapeleúo ora como “adulterar”, ora como “mercadejar” a palavra de Deus. O significado pode ser duplo: falsificação no sentido de (1) alteração de conteúdo ou de (2) manutenção de conteúdo, mas com alteração de propósito. O primeiro caso parece ser o de Corinto, como sugere 11.4. A alteração do sentido original do evangelho (outro Jesus, outro evangelho, outro espírito: 11.4) requer astúcia para ser aceita. Daí que Paulo acusa seus oponentes de engodo: São ministros do diabo, mas mascaram-se e maquiam-se como ministros da justiça (11.13-15). Em Corinto, a falsificação do evangelho manifestava-se, em especial, por meio das seguintes distorções de conteúdo: na cristologia, havia um acentuação do Cristo ressurreto e poderoso em detrimento do crucificado e fraco – anulava-se a cruz de Cristo (1 Co 1.17); na eclesiologia, priorizavam-se dons espirituais de edificação pessoal em detrimento dos que edificam a comunidade (1 Co 12 e 14), fomentando o subjetivismo e o individualismo; na ética, havia muita liberalidade (1 Co 6.12; 10.23), mas faltava o amor (1 Co 13); na pneumatologia, ressaltavam-se os dons extraordinários (1 Co 12. 21) em detrimento daqueles menos expressivos (1 Co 12.14-18).
A outra maneira de falsificação da palavra de Deus, a que mantém os conteúdos, mas altera os propósitos, é mais sutil e, por isso mesmo, difícil de ser identificada. Exemplo desse tipo de falsificação encontra-se em Fp 1.15-18. A característica, nesse caso, é que a pregação da palavra de Deus não é vocação, mas é pretexto para outra coisa: para inveja, para porfia (contenda), para ganhar status ou dinheiro, para ter emprego, para ter projeção pública etc. Nesses casos, não é preciso ter uma identificação interior com o evangelho: basta que a gente o conheça e saiba anunciá-lo.
3.2 – Autênticos pregadores
A marca de autenticidade dos pregadores é muito simples, segundo o texto: consiste em abstrair de si, de seus pretextos, de sua teologia, de suas dependências, passando a apontar e convidar para o senhorio de Cristo. O propósito do bom pregador é dar testemunho de Cristo como Senhor. Essa é a razão última de toda a atividade ministerial: provocar, encorajar e cativar pessoas para o discipulado do crucificado e ressurreto. Cada qual, por certo, terá dons parcialmente diferenciados para o desempenho dessa tarefa. Mas o principal não residirá na natureza mais exata ou definida desses dons – estará na clareza desse propósito e no diário comprometimento com os meios que Deus nos deu para contribuir no seu alcance.
O v. 6 trabalha com o pressuposto para pregar Cristo como Senhor, com a sua causa última. Paulo constata: pregamos Cristo como Senhor, pois Deus iluminou, deu clareza aos nossos corações, para que percebêssemos nele a sua glória. Ou seja: não é possível ser autêntico pregador de Cristo sem ter sido iluminado por Deus a seu respeito. É o Espírito de Deus que desencadeia esse processo dentro da gente, segundo o NT. É ele que derrama o amor de Deus dentro de nossos corações (Rm 5.5), é ele que nos leva à confissão “Senhor Jesus” (1 Co 12.3) e é ele que nos permite identificar no crucificado e fragilizado Jesus o Filho amado de Deus (1 Co 2.6-16, esp. o v. 10).
As comunidades sabem por vezes ser bastante sensíveis ao grau de convicção e iluminação interior de seus pregadores. Elas, não raro, percebem quando e quanto um pregador está “por trás” daquilo que fala a outros sobre Deus. Por outro lado, textos como 2 Co 11.13-15 lembram-nos que também o terreno da fé e espiritualidade pode ser propício para quem é astuto e sabe fingir ou maquiar com requinte. Como discernir nesses casos? Um critério absolutamente seguro não existe. O cristianismo dos primórdios seguia uma orientação que muitas vezes ajuda: “Pelos seus frutos os conhecereis” (Mt 7.15-23; 12.33; Gl 5.19-23; Tg 3.12). Contudo, ela não pode ser absolutizada pela simples razão de não existir cristão perfeito, o que implica que na vida de cada um certos frutos serão sempre ambíguos.
4. Prédica
Nossa sugestão é que a prédica pode seguir os itens da meditação. O seu assunto central seria algo assim como: “A palavra de Deus à mercê dos seus pregadores” ou “Pregação a pregadores”. O desdobramento que propomos é:
1 – O que confere autoridade aos pregadores? A iluminação interior sob enfoque;
2 – O que caracteriza um bom pregador? O testemunho do senhorio de Jesus;
3 – O que caracteriza maus pregadores? Pregar-se a si próprio.
Bibliografia
BARBAGLIO, Giuseppe. As cartas de Paulo (I). São Paulo: Loyola, 1980. COMBLIN, José. Segunda epístola aos Coríntios. Petrópolis: Vozes, 1991.
VOIGT, Gottfried. Das heilige Volk. Göttingen: Vandenhoeck & Rupprecht, 1979.