Prédica: Deuteronômio 18.15-20
Leituras: Marcos 1.21-28 e 1 Coríntios 8.1-13
Autor: Haroldo Reimer
Data Litúrgica: 4º. Domingo após Epifania
Data da Pregação: 29/01/2006
Proclamar Libertação – Volume: XXXI
1. Os textos e o tema do dia
O momento litúrgico está inserido dentro do período da Epifania. As pregações nessa época têm o objetivo de destacar a messianidade do Jesus tornado pessoa humana a partir da condição periférica na manjedoura de Belém. Em cada um dos domingos, Jesus entra em contato com pessoas diferentes: João Batista, Filipe e Natanael e com os pescadores Simão, André, Tiago e João, que assumem o discipulado com Jesus (Kilpp, p. 67). Assim, o caráter de mestre e messias de Jesus foi sendo destacado de modo crescente.
Nesse quarto domingo após Epifania, o personagem do encontro é o endemoninhado de Cafarnaum, segundo o relato de Mc 1.21-28. Esse encontro tem um traço diferente. A moldura histórica e temporal do evangelho indica que Jesus está ensinando numa sinagoga em Cafarnaum e as pessoas presentes “maravilham-se da sua doutrina” (v. 22). A justificativa do texto evangélico para esse maravilhar-se com o ensino de Jesus é a autoridade (grego: exousia) desse que ensina, diferenciando-se do modo como o faziam os escribas. Em meio a esse clima de ensino e admiração, o texto indica a presença de um “homem de espírito imundo” (v. 23), o qual faz o reconhecimento da messianidade de Jesus: “Bem sei quem és: o Santo de Deus” (v. 24). Jesus então promove um exorcismo, descrito de modo bem teatral. A reação do público presente retoma a admiração já esboçada nos versículos iniciais da perícope. No v. 27 destacam-se os termos “nova doutrina”, “autoridade” e a obediência. O conjunto da cena coopera para aumentar a fama de Jesus em toda a região.
Qual é o tema central dessa perícope do evangelho? É a cura exorcista relatada na parte central do texto, destacando-se a dimensão do espírito impuro como elemento religioso oposto a Jesus? Ou se trata de destacar a messianidade e o senhorio de Jesus em ligação com as questões de autoridade e doutrina? Há uma ambigüidade, que deveria ser clareada na interface com a leitura da epístola (1 Co 8.1-13) e com o texto da pregação (Dt 18.15-20).
O texto da epístola levanta o tema das coisas sacrificadas a “ídolos”. Deve tratar-se sobretudo de alimentos, especialmente carnes, oferecidas em eventos públicos promovidos por autoridades do Império Romano. Tais ali- mentos costumavam ser dedicados a deuses imperiais ou até representados na figura do próprio soberano secular. A argumentação quanto à participação ou não em tais eventos tem motivos teológicos e ético-pastorais. Teologicamente argumenta-se que, em si, não existem “ídolos”, isto é, esses não têm uma existência ontológica própria. Quanto a uma ontologia divina, o texto epistolar argumenta que, em verdade, há um só Deus (v. 6) e um só senhor, o próprio Jesus. Isso é o reconhecimento teológico fundamental, embora no imaginário popular tal reconhecimento não seja compartilhado por todas as pessoas. A participação ou não em tais eventos públicos em nada aproveita para a salvação, continua o texto (v. 8). Isso tem uma relevância teológica libertadora. O leitor ou ouvinte é comunicado que não precisa estar preso a temores quanto a eventuais “ídolos” ou entidades sagradas ou divinas. O único e verdadeiro senhorio está com Deus e Jesus. Isso é a perspectiva teológica desse trecho epistolar. Tal reconhecimento pode levar as pessoas a uma condição mais elevada de discernimento e de autoridade na fé, que pode até significar certa soberba (v. 1). O importante, na reflexão, é destacar que o tema do senhorio de Deus e o discernimento dessa realidade estão vinculados com a palavra de Deus, diga-se com a sua Torá. Não se trata de um reconhecimento esotérico e oculto, mas algo que foi sendo revelado e discernido na história do povo hebreu ao longo do caminhar do próprio povo e com o amadurecer de seus textos fundantes.
Mas como no imaginário popular “ídolos” e “espíritos” existem e coisas podem ser (e são) dedicadas a eles, convém exercitar uma ética comunitária e pastoral de abstenção de participar em tais eventos públicos. A fraqueza de ideias e concepções do outro é a motivação para isso. A base motivadora fundante é o amor. “O saber ensoberbece, mas o amor edifica” (v. 1). O caráter da liberdade espiritual e da autoridade até profética do anúncio da unicidade de Deus e da inexistência e ineficácia de “deuses” e “ídolos” é subordinada ao exercício do amor e da ética comunitária.
Quer me parecer que até aqui esses dois textos evidenciam um intrincado tema em que a unicidade de Deus e o senhorio de Jesus são colocados em destaque, e com isso a dimensão de forças ocultas ou contrárias a Deus recebe uma luz própria quanto à sua não-existência e/ou não-eficácia. Simultaneamente, aparece também a temática do discernimento e da autoridade profética. Discernimento na fé e autoridade na fé profética não são questões de foro esotérico, mas estão ligados ao âmbito comunitário, isto é, a um processo de discernimento que vai se construindo na própria vivência da comunidade. Não se pode, assim, deixar de notar que tudo isso é um processo bastante dialogal, que necessita do confronto e do amadurecimento no tempo.
O texto previsto para a pregação parece indicar na mesma direção. Em Dt 18.15-20, trata-se de um profeta prometido, que deverá surgir de dentro da própria comunidade. Esse profeta será como Moisés (= “semelhante a mim” – v. 15). Com isso, a sua autoridade e legitimidade não estarão alicerçadas em algum evento ou processo esotérico, mas sua vinculação será com o Deus Yahveh, entendido e crido como uno e único, e com a própria comunidade dentro de uma perspectiva de tempo mais longa. Novamente o tema da dialogicidade de todo o processo está presente.
Como a perícope de Dt 18.15-20 está prevista como texto de pregação, o mesmo deverá receber algumas considerações próprias a partir de seu próprio contexto literário, histórico e de conteúdo.
2.Dt 18.15-20 em seu contexto
Literariamente, Dt 18.15-20 é parte de um dos blocos do código deuteronômico (Dt 12-26). É quase consensualmente assumido na pesquisa que nesse código estão sistematizadas leis de épocas diversas relativas à vida do povo de Israel sob o pressuposto da pertença e da fé em Javé. O centro teológico e o pressuposto para a organização do material são o primeiro mandamento: adoração exclusiva a Javé. Quem professar a sua pertença a esse povo de fé e a esse Deus deverá submeter-se a essas normas fundamentais, entendidas como leis para a bênção ou para a maldição, para a vida ou para a morte. Os diversos blocos temáticos desse código de leis podem ser estruturados na seguinte forma concêntrica, evidenciando-se o bloco de 12.1-14.21 como uma abertura para o todo:
12.1-14.21 abertura: lugar de culto, santidade e idolatria
a 14.22-26 dízimos
b 15.1-16,17 leis sociais e religiosas
c 16.18-18.22 ‘direito público’
X 19.1-21.9 VIDA / MORTE
c’ 21.10-23,14 ‘direito privado’ (âmbito familiar)
b’ 23.15-26.11 outras leis sociais e religiosas
a’ 26.12-15
Observando a estrutura proposta, o texto de Dt 18.15-20 aparece como um recorte do bloco de leis que trata de questões que poderíamos chamar de “direito público”. São leis relativas à vida pública no antigo povo de Israel: deveres dos juízes (16.18-22); idolatria (17.1-7); julgamento de questões difíceis (17.8-13); escolha de um rei (17.14-20); herança e direitos dos sacerdotes e levitas (18.1-8). O trecho final de Dt 18.9-22 trata de questões relativas a adivinhos, feiticeiros e profetas, encerrando, assim, esse bloco de questões de “direito público”.
Percebe-se, assim, claramente, que o texto em questão é parte integrante de uma legislação maior e sistematizada, que busca ordenar questões públicas. Há controvérsias na pesquisa sobre a mais provável datação do código (Kramer, 1999). Na linha aqui assumida, com base nesse código ter- se-ia buscado normatizar a vida social e de fé dos israelitas no reino do sul (Judá) na segunda metade do século VII a.C. sob e durante o governo do rei Josias. O código teria servido como uma espécie de “constituição” civil e religiosa para o reino e o povo crente em Javé. A codificação parte do pressuposto da “fé oficial” em Javé, que tem no shema Yisrael e na centralização do culto expressões fundantes. Várias leis do código constituem reações a práticas cotidianas, em parte perpetradas pelos assírios durante o longo tempo de seu domínio sobre Israel e Judá. Como reação a práticas externas, internalizadas no próprio povo, o código busca implantar no imaginário judaíta um conjunto regulador de novas práticas permeadas pelo princípio da misericórdia (hesed). A caracterização dessas leis como “lei pregada” certamente tem a ver com o propósito da internalização de novos princípios por meio da repetição como um recurso pedagógico. O conjunto das leis é caracterizado e designado como torah. Com a lei deuteronômica estabelece-se pela segunda vez o fundamento daquilo que viria a ser a Torá (Pentateuco) como um todo (Crusemann, 2002). Convém lembrar que a formulação das leis no tempo futuro (“quando entrares na terra…”) está relacionada com a historização de todo o Pentateuco, como lei revelada antes da entrada na terra prometida. O Deuteronômio como um todo, porém, supõe claramente a posse tranqüila da terra e o usufruto da liberdade para boa parte do povo. As leis, de uma forma geral, dirigem-se a “tu” (2ª pessoa masc. sing.), que, muito provavelmente, é o pater famílias, isto é, o dirigente da casa patriarcal. Esse, dentro do seu âmbito “microfísico” de poder, deve colocar as respectivas leis em prática.
O código deuteronômico, como fundamento da Torá, formulada e sistematizada na segunda metade do séc. VII a.C., busca fornecer proposições normativas para esse momento histórico e teológico do povo hebreu. A questão do profeta e dos acessos ao sagrado era uma dessas questões.
Assim, o bloco de Dt 18.9-22 trata desses temas. Na parte inicial de Dt 18.9-14, que não faz parte da perícope de pregação, há proibições de algumas formas de práticas mânticas (vv. 10-11), designadas de “abominações” aos olhos de Deus. Tais práticas, supostamente representativas (só) dos povos anteriores, são tabuizadas e devem ser abolidas na esfera de poder do chefe patriarcal. Assim, evidencia-se claramente o intento normatizador dessa lei.
Por cima dessa tabuização afirma-se a promessa de que Deus “te suscitará um profeta do meio de ti, de teus irmãos, semelhante a mim” (v.15).
Aqui está uma chave do texto. A promessa do profeta é formulada de modo iterativo, isto é, com uma forma verbal que supõe uma repetição do ato (= sempre de novo suscitarei…) (Crusemann, 2002, p.336). Não se trata de uma aparição única. Tal profeta deverá sair do seio do povo, da comunidade, dentre os irmãos. Há, pois, uma concentração teológica dentro de uma concepção “nacionalista”, que combina com a perspectiva geral do Deuteronômio de construção ou fortalecimento de uma comunidade de irmãos na perspectiva da fé oficial em Javé.
Esse profeta prometido deverá ser “semelhante a mim” (v. 15). Isso é um dado intrigante. Os profetas de Israel, especialmente os “radicais” do séc. VIII a.C., eram sobretudo personagens carismáticos, não encaixados em formas fixas e muito menos formatados como intérpretes de leis. Em muitos casos, eram free lancers em nome do Deus Javé, em favor dos pobres, pela ética e em favor da justiça. O profeta prometido em Dt 18.15, contudo, deve estar em conformidade com o sujeito falante no discurso das leis deuteronômicas. Literariamente, quem profere o discurso é Moisés, lembrando-se que o Deuteronômio é uma repetição seletiva de leis do Sinai, proferidas antes da entrada na terra prometida. Esse sujeito do discurso já é o Moisés na versão final do Pentateuco, uma figura na qual o povo de Israel, por meio dos redatores, já havia projetado uma série de funções sobre esse personagem. Duas funções destacam-se: a) Moisés é intercessor pelo povo; b) Moisés é uma figura da qual emanam leis obtidas a partir do encontro direto com a divindade. Por isso “a ele ouvirás” (v. 15). Esse profeta, pois, está em uma conformidade dialética com a própria Torá. As suas palavras e sua atuação deverão estar em sintonia com essa figura de Moisés, projetada nos textos. Provavelmente pode tratar-se de figuras religiosas governantes no período do pós-exílio em diante, estreitamente ligadas com o santuário central em Jerusalém.
A alocução direta (“tu”), presente no v. 15, não continua nos vv.16-20, mas é retomada somente nos vv.21-22. Nesses versículos finais, tematiza-se outra questão fundamental para a perspectiva deuteronômica, que é o fator tempo como critério para o discernimento entre verdadeira e falsa profecia. O que a lei formula é que no momento do fenômeno profético não há como discernir com clareza e certeza o que é verdadeira e o que é falsa profecia, especialmente se ambas as formas são similares no modo e na referência ao mesmo Deus. Nesse sentido, essa parte da lei é “liberal”. “Quando é a palavra de um contra a de outro, quando é duvidoso qual seja a verdadeira palavra de Deus, a regra diz que é necessário esperar, e não perseguir, proibir, acusar ou até condenar à morte” (Crusemann, 2002, pp. 337-8).
Os vv.16-20 constituem, pois, um bloco que tematicamente é similar ao conjunto, mas estilisticamente é distoante, pois interrompe a alocução direta. O que se tem aí é um discurso sobre essa figura do profeta. Em geral, distinguem-se camadas distintas, não havendo certeza sobre qual seria a mais antiga. As mútuas complementações entre as supostas camadas reforçam a temática da promessa de um profeta mediador e fonte direta do discernimento da palavra do Deus Javé. O acesso a outras divindades e a outras formas de acesso ao sagrado, que não seja o caminho desse tipo de profecia, fica interditado ao povo de Israel. Com isso voltamos ao tema do dia.
3. Tema rumo à pregação
Os três textos colocados em diálogo por aqueles que propuseram essa ordenação de textos na série de perícopes buscam ressaltar alguns aspectos:
– há um só Deus verdadeiro, que tem seu canal de comunicação por intermédio da palavra mediada profeticamente;
– o profeta mediador prometido e sempre de novo suscitado dentre o
povo da comunidade crente em Javé é, historicamente, alguém que se senta na cadeira de Moisés e fala como ele;
– na releitura dessa promessa nos cristianismos originários, esse profeta prometido é identificado com Jesus de Nazaré, afirmando-se a sua messianidade;
– nesse processo de concentração teológica da fé em um só Deus e na figura de Jesus como o profeta mediador prometido, há uma despotencialização de qualquer outro tipo de divindade; a existência de outros deuses é negada ou são eles transformados em “ídolos” e até em “espíritos imundos”, os quais mesmo assim são capazes de fazer a clara confissão da messianidade de Jesus.
Na pregação, procuraria destacar os aspectos que destacam a centralidade de Deus e a messianidade de Jesus, mas deixando o caminho livre para a livre manifestação de Deus nas mais diversas culturas. Como pano de fundo da pregação, é necessário ter claro que os textos sagrados são construções humanas, que, como tais, projetam certas posições e preferências teológicas e com isso também promovem processos de exclusão de certos elementos ou expressões de fé. A pregação deveria buscar construir koinonia e ecumene com base na confissão cristã do senhorio de Jesus e da unicidade de Deus.
Bibliografia
CRUESEMANN, Frank. A Torá. Trad. Haroldo Reimer. Petrópolis: Vozes, 2002.
KRAMER, Pedro. Origem e legislação do Deuteronômio. Programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos. São Leopoldo: IEPG (tese de doutorado), 1999.
KILPP, Nelson. Quarto Domingo após Epifania. Deuteronômio 18.15-20. In: STRECK, E.E.; KILPP, N. (eds.). Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1993, v. XIX, pp. 67-72.
REIMER, Haroldo. Inclusão e resistência. Anotações a partir do Deuteronômio. Estudos
Bíblicos. Petrópolis, n. 72, p.11-20, 2002.