Prédica: Jeremias 11.18-20
Leituras: Marcos 9.30-37 e Tiago 3.16-4.6
Autor: Nelson Kilpp
Data Litúrgica: 18º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 08/10/2006
Proclamar Libertação – Volume: XXXI
1. Introdução
O 18º Domingo após Pentecostes localiza-se no início do mês de outu- bro, mês de eleições para presidente da República, governadores dos estados, senadores e deputados. Partidos foram às ruas, plataformas foram discutidas, debates realizados, projetos avaliados, pesquisas divulgadas, tendências apontadas. Os sons ainda reverberam nos tímpanos, as imagens ainda se refletem na retina. Diante disso, o ano litúrgico, aparentemente alheio ao que ocorre em nossa volta, convida-nos a refletir sobre um texto de outras épocas, escolhido por quem decerto não conhece o lugar em que vivemos. Quem tem a incumbência de pregar deverá decidir se o texto escolhido é adequado ou não à sua situação; em todo caso, está sendo desafiado a ver o momento político em que vive à luz das leituras indicadas.
As leituras indicadas em epígrafe, previstas pelo lecionário adotado por Proclamar Libertação para o 18º Domingo após Pentecostes (do ano B), correspondem ao 25º Domingo do Tempo Comum da tradição católica, que, no corrente ano, caiu no domingo retrasado. Além desse lamentável descompasso ecumênico (a ser corrigido na próxima edição revista do lecionário), há uma outra diferença entre o conjunto de textos da tradição católico-anglicana e da tradição protestante no Brasil: o lecionário ABC católico-anglicano contém, como primeira leitura, o texto de Sabedoria 2.12,17-20, um livro deuterocanônico (apócrifo). Por esse motivo, a maioria das igrejas protestantes substituiu-o, provavelmente mais por motivos práticos do que teológicos, pelo texto de Jr 11.18-20. Veremos, a seguir, que há uma afinidade de conteúdos muito grande entre esses dois textos do Antigo Testamento.
2. O tema do domingo
Sab 2.12,17-20 (delimitação alternativa: Sab 1.16-2.1,12-22) fala dos ímpios que decidem armar ciladas contra o justo “filho de Deus”, a fim de condená-lo à morte para ver se Deus virá em seu socorro. Apesar da correspondência com a paixão de Jesus, o título “filho de Deus” deve referir-se aos judeus duramente perseguidos no séc. I a.C., no Egito. Jr 11.18-20 parece fornecer um exemplo concreto da pessoa justa que sofre perseguição e atentados à sua vida: o profeta Jeremias. Esse texto aprofundaremos a seguir. A leitura da epístola, Tg 3.16-4.6 (há diversas delimitações alternativas), por seu turno, contrapõe a inveja e a cobiça humanas, causa de todas as desavenças e conflitos, à sabedoria divina, que promove conciliação e paz. E conclui com uma variante da dualidade “ímpio-justo”: “Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes” (alusão a Pv 3.34 e Jó 22.29?).
O evangelho, Mc 9.30-37, reúne três tópicos: no contexto do anúncio da paixão, morte e ressurreição de Jesus (vv. 30-32), insere-se a discussão dos discípulos sobre quem seria o maior (vv. 33-35), culminando na afirmação de Jesus de que quem acolhe uma criança acolhe o próprio Jesus (v. 36s.). Conforme o evangelho, não cabe aos discípulos de Jesus buscarem a glória enquanto os passos do mestre caminham em direção à cruz; a atitude adequada é o serviço. Ao contrário dos textos paralelos, Marcos não acentua a contraposição “maior” x “pequenino como uma criança” (cf. Mt 18.5; Lc 9.48), mas o fato de Jesus e o próprio Deus se identificarem com os pequeninos a quem os discípulos são chamados a servir.
Os textos do Antigo Testamento (Sab e Jr) e do evangelho abordam, cada um a seu modo, o tema do justo perseguido e sofredor. A lógica normal da sabedoria tradicional em Israel – de que os justos prosperam e os ímpios fracassam – não (mais) corresponde à realidade. Essa, pelo contrário, mostra que pessoas boas e justas – como o profeta, que abomina a hipocrisia e desconhece o interesse próprio, como os judeus da diáspora, que buscam viver sua fé e seus costumes em meio a uma civilização discriminadora, ou como Jesus, cuja mensagem de perdão e aceitação e sua proposta de amor e inclusão provocam o ódio dos poderosos – não são exaltadas e glorificadas; pelo contrário, elas experimentam rejeição, antipatia e perseguição a ponto de correr risco de vida. Como vincular isso à política e às eleições?
O texto de Tiago aborda o mesmo tema a partir da perspectiva antropológica: a inveja e a cobiça levam à discórdia; e conclui que, para o bem da coletividade, é melhor que os cristãos abdiquem da soberba e se submetam à sabedoria divina. Pois essa atitude pode propiciar uma boa convivência na “pólis”. Nas palavras do evangelho, isso quer dizer que o melhor político não é aquele que quer galgar os mais altos escalões do poder, mas aquele que se prontifica a servir aos pequeninos. Não só porque esses pequeninos são especialmente carentes, mas também porque Jesus está com eles.
3. Aspectos exegéticos de Jr 11.18-20
O texto previsto para servir de base para a pregação, Jr 11.18-20, inse- re-se na unidade maior, geralmente delimitada em 11.18 a 12.6, que poderia levar o título: Jeremias é ameaçado de morte em Anatote, sua aldeia natal. Muitos já observaram que os acontecimentos narrados no relato não se encontram numa seqüência coerente, que o texto mescla poesia e prosa e que a resposta de Deus, em 12.5, pouco tem a ver com o atentado contra Jeremias: tudo isso comprovaria que o texto surgiu de um processo redacional. Apesar disso, pode-se perceber claramente a situação: pessoas de Anatote (11.21), entre as quais parentes do próprio profeta (12.6), conspiram contra Jeremias e buscam eliminá-lo (11.18,21). O motivo é, sem dúvida, a mensagem profética (11.21), que é amplamente desfavorável ao templo e aos sacerdotes (a cuja “classe” também pertencia a família de Jeremias). Mas o profeta fica sabendo do plano e consegue salvar-se. Essa salvação ele atribui a Deus (11.18), a quem ele se dirige, aflito, em oração, com o pedido de ajuda e de vingança contra seus inimigos (11.20), o que inclui – horribile dictu – morte pela espada e desgraça para a própria família (11.22s). O profeta acrescenta, em sua oração, uma discussão com Deus a respeito da prosperidade dos maus e dos que levam o nome de Deus apenas na boca, mas não no coração (12.1-3,4b), ao que Deus responde, não sem rudeza, com uma espécie de reprimenda que remete o profeta à sua missão e recomenda-lhe não esmorecer por “qualquer” dificuldade.
O recorte feito pelos homiletas do lecionário evita questões que pode- riam tornar-se polêmicas ou até escandalosas dentro de uma homilia. O pe- dido de vingança é apenas tocado de leve (11.20); as partes mais “fortes” são deixadas de fora (11.22-23). Também se pretende excluir da pregação a reflexão sobre a prosperidade dos maus e a resposta – incompreensivelmente rude – de Deus a seu profeta (12.1-5). Sugiro, no entanto, que se mantenha pelo menos a reflexão sobre o sucesso dos ímpios como pano de fundo, pois se insere dentro do tema maior do domingo: o profeta (justo) sofre e é perseguido por causa de sua missão.
A unidade redacional Jr 11.18-12.6 é a primeira das cinco “confissões” de Jeremias (as outras são: 15.10-21; 17.12-18; 18.19-23 e 20.7-18). As chamadas “confissões” são lamentos individuais nos quais o profeta derrama sua alma angustiada diante de Deus e expressa seus mais profundos sentimentos e experiências com a missão profética de anunciar uma mensagem dura para o povo. Nas “confissões”, Jeremias admite ser rejeitado por seus ouvintes, ter-se tornado um excluído da sociedade, ter sido forçado por Deus a anunciar o que ele pessoalmente não gostaria de dizer. Em suma, as confissões mostram como o profeta sofre por causa de sua fidelidade à missão que lhe foi dada. As confissões não são uma mensagem destinada ao grande público. Deve-se presumir que somente um círculo restrito de seguidores teve acesso a esses momentos de conflito pessoal do profeta com Deus a respeito de sua missão.
4. A caminho da pregação
Certamente é importante destacar que alguém a serviço de Deus pode ter dúvidas quanto à sua missão, podendo inclusive chegar às raias do desespero por causa dela. A missão de quem está a serviço de Deus certamente não é fácil, especialmente num mundo como o nosso, caracterizado pela falta de critérios éticos. Talvez seja confortador saber que os que estão no serviço de Deus podem dirigir-se a ele e não apenas despejar tudo aquilo que os sufoca e esmaga em sua tarefa, mas até “brigar com Deus”, como o profeta Jeremias faz. Podemos, inclusive, colocar abertamente os nossos sentimentos mais “feios” e “demasiadamente humanos”, como os nossos desejos de vingança. Nem há como esconder essas nossas fragilidades e limitações humanas diante de Deus. Quem consegue colocar nas mãos de Deus o sentimento de vingança desiste, na verdade, de vingar-se com as próprias mãos; quem briga com Deus sabe, no fundo, que pode esperar dele – só dele – um sentido até para as coisas absurdas da vida.
O tema mais importante indicado pelo recorte homilético do texto, no entanto, parece estar vinculado à natureza da missão profética. É difícil determinar o que vem a ser um profeta – não só em tempos confusos como os nossos. O que entendemos por fenômeno profético e missão profética dependerá muito de nossas tendências políticas ou cores partidárias. Talvez nem se possa reconhecer um profeta no momento de sua atuação e somente a história posterior seja capaz de confirmar se, no passado, alguém foi ou não foi um profeta no meio do povo. Como se sabe que alguém, de fato, está falando em nome de Deus? O próprio Jesus foi mal interpretado quando fazia milagres.
Uma coisa que sempre chama a atenção é que um profeta caracteriza-se por sua coerência. Mensagem e vida não se dissociam, antes se complementam. A própria vida torna-se mensagem (cf., p. ex., Os 1 e Jr 16). E essa coerência é tão flagrante, que chega a assustar as pessoas; ela é tão provocadora, que suscita a rejeição dos destinatários da mensagem; ela é tão verdadeira, que chega a escandalizar. A coerência profética levou muitos ao sofrimento, à perseguição e à morte violenta. Quase nunca é assim como muitos esperam: estar a serviço de Deus não significa portas abertas, problemas resolvidos. Pelo contrário: as reações podem ser bastante adversas. Mas quando o sofrimento é conseqüência da seriedade com que se abraça a causa de Deus e de Cristo, ele dá credibilidade ao anúncio de quem sofre. Torna-se testemunho autêntico, verdadeiro “martírio”.
O verdadeiro profeta e a verdadeira testemunha do reino evidentemente não buscam o sofrimento; mas tampouco fogem dele. Deus não se alegra com o sofrimento; esse certamente não é vontade de Deus, mas conseqüência da rejeição humana. A realidade do sofrimento não se coaduna com uma teologia do sucesso; afinal, as pessoas de fé nunca sofrem, pois certamente estão sempre amparadas pela providência divina. O sonho do pregador de sempre ter “casa cheia” e “platéia empolgada” segue parâmetros humanos que poucas vezes sintonizam com a pregação e atuação do próprio Jesus. Esse previu que seus discípulos encontrariam resistência e perseguição, porque o serviço ao próximo também põe a descoberto as inúmeras maneiras de manipular pessoas e de tirar proveito delas.
Importante na pregação talvez seja destacar que todas as pessoas de fé, comprometidas com a causa do reino de Deus, podem estar bem, mas também podem estar mal. Estar de bem com a vida, sentir-se realizado, conquistar vitórias é algo bonito também para os discípulos e as discípulas de Cristo. Mas não é sinal especial de bênção ou aprovação divina. Por outro lado, sofrer decepções, rejeição e humilhação na vida, ser alijado de regalias por causa do compromisso assumido tampouco é sinal de abandono de Deus. Ele certamente estará com todos aqueles que assumiram o serviço do reino e em cuja atuação se percebe com nitidez a coerência entre o discurso e a prática.
5. Sugestões litúrgicas
(Elaboradas por Sônia G. Mota, adaptados do Livro de Culto da IECLB, e Rubem Alves (org.), Culto e Arte, Vozes, 1999)
Acolhida (por jovem): Recebemos mais este dia como presente do Deus da vida. Temos que andar, mesmo que nem sempre temos certeza sobre o caminho. Temos que enfrentar as situações, embora nem sempre saibamos como. Temos que tomar decisões, mesmo que nos sintamos despreparados. Temos que escolher os dirigentes do país, ainda que tenhamos dúvidas. Mas confiamos em Deus! Temos fé! E ele nos leva à frente! A todos e todas, bom dia! Desejamos que todas as pessoas se sintam acolhidas nesta casa de oração. Deus está aqui! Sentimos a sua presença entre nós; por isso somos um só corpo fraterno, membros da mesma família de Deus.
Canto: HPD 2, 332: “Deus está aqui” (durante o canto, os participantes dão-se o abraço de boas-vindas).
Invocação: É em nome do Pai e da Mãe de todos os povos, que nos fez nascer do amor e da terra; é em nome do Filho, irmão de homens e mulheres nessa vida em construção; é em nome do Espírito Santo, brisa suave que nos dirige para a vida em plenitude, que nos reunimos para louvar, agradecer, saborear a companhia dos irmãos e das irmãs e para renovar a fé e as forças. Aqui nunca estamos sós.
Canto: HPD 2, 395: “Vejam que belo” (Sl 133).
Pedido de perdão: (anunciar algumas “dores do mundo” que foram notícia durante a semana; diversas pessoas são convidadas a ler as correspondentes manchetes de jornais e colocá-las diante do altar)
D – Tanta dor, tanta miséria, tanta desunião, tanto sofrimento! Nosso mundo geme, nosso mundo sofre. Apesar das muitas igrejas, entidades e instituições que agem em nome do Deus da vida, ainda há muito o que fazer!
C – Tem compaixão de nós!
D – Deus de amor, perdoa-nos quando o povo cristão, chamado para ser testemunha do teu projeto de vida, fraqueja diante das dificuldades e perde a esperança.
C – Tem compaixão de nós!
D – Oremos: Deus, fonte de fé e vida! Quando estivermos com medo do desconhecido, dá-nos coragem! Quando nos lamentarmos por nos considerar incapazes e quando nos sentirmos cansados e desapontados, lembra-nos que és tu quem gera o novo e a esperança das situações mais difíceis. Perdoa as nossas fraquezas, medos e nossa acomodação. Amém!
Oração final: (pode-se convidar um casal da comunidade para leitura alternada; no final, podem ser acrescentadas as intercessões específicas da comunidade)
L 1 – Quando o sol despontar clareando o dia, trazendo as responsabilidades que nos cabem,
C – Abençoa-nos, Deus da vida!
L 2 – Quando faltarmos com a caridade e nos deixarmos invadir pelo egoísmo,
C – Perdoa-nos, Deus da misericórdia!
L 1 – Quando nossos passos nos desviarem do caminho da luz, da ética e do compromisso com os teus propósitos,
C – Faze-nos retornar, Deus da luz!
L 2 – Quando as agruras da vida nos confundirem, as provações sobrevierem e nosso coração se encher de angústia,
C – Fortalece-nos, Deus do amor!
L 1 – Quando a impaciência, a desconfiança e o temor nos assaltarem,
C – Ajuda-nos a perseverar, Deus da fé!
L 2 – Quando o desamor, a injustiça e a falta de solidariedade nos atingirem,
C – Protege-nos, Deus da justiça!
L 1 – Quando precisarmos tomar decisões que irão interferir em nossa vida e na vida de milhões de pessoas,
C – Orienta-nos, Deus, e fica conosco todos os dias. Amém.
Bênção: Que Deus seja contigo, meu irmão, minha irmã; seu Espírito guie nossos passos; sua graça alente nosso coração; que sua palavra, hoje proclamada, seja praticada em nossas vidas. Por Jesus Cristo, amém!
Canto final: HPD 2, 432: “Canção da caminhada”.