Prédica: João 19.16-30
Leituras: Oseias 6.1-6 e Hebreus 9.15-17,26b-28
Autor: Werner Wiese
Data Litúrgica: Sexta-feira da Paixão
Data da Pregação: 14/04/2006
Proclamar Libertação – Volume: XXXI
1. Enfoques de contexto para a compreensão do texto
A sexta-feira da Paixão é uma das datas mais marcantes para a caminhada da igreja. Hoje vivemos uma perda gradativa da memória de datas e eventos significativos para a igreja. Tanto mais urge focar o significado da paixão e morte de Jesus Cristo nesse dia. O processo contra Jesus de Nazaré é herança comum da tradição evangélica (Mt – Jo). Por causa da familiaridade com esse processo e os textos que o narram, há o risco de não percebermos mais a peculiaridade inerente ao processo movido contra Jesus. Vida e morte são banalizadas. Destaquemos alguns elementos do processo prece- dente à morte de Jesus.
a – O contexto sociorreligioso e político: a páscoa dos judeus. A páscoa era a festa mais importante do judaísmo. Ela atraía milhares e mais milhares de peregrinos judeus e não-judeus de muitos lugares e países a Jerusalém. Durante a festa da páscoa, Jerusalém, que tinha em torno de 25 a 30 mil habitantes fixos, “hospedava” mais de 100 mil pessoas; alguns intérpretes falam de algumas centenas de milhares de pessoas. O “acúmulo” de pessoas implicava riscos da perda do controle social e de desencadear rebeliões contra o poder público instituído. Por isso qualquer sinal de tumulto era reprimido à força e podia significar a perda da autonomia do povo judeu (Jo 11.47-48). Esse fator de risco determinava em muito o clima da festa de páscoa em Jerusalém.
b – As reações às palavras de Jesus no processo movido contra ele: 1) A maneira como Jesus falava “irritou” a liderança religiosa do judaísmo (Jo
18.20-22; 19.6-7) e lhes forneceu as “provas legítimas” para pedir sua condenação (Jo 19.12b, 15b); 2) Pilatos entre dois fogos. Conforme a narrativa joanina, enquanto a liderança judaica empenha-se em eliminar Jesus, Pilatos está propenso a soltá-lo. Ele reconhece a inocência do acusado (Jo 18.29b,
38c; 19.4, 15b) e teme arcar com as consequências de sua decisão (Jo 18.29b,31a; 19.7-8-11). Como “humanista” e “defensor dos direitos humanos” (Eis o homem! – Jo 19.5), Pilatos faz de tudo para absolver Jesus (Jo 19.12a,15b). Mas para “salvar sua carreira política”, Pilatos cede à pressão religioso-política judaica (Jo 19.12b, 15, 16).
c – A conotação teológica dos acontecimentos. Apesar dos aspectos sociorreligiosos e políticos tramados contra Jesus, o enfoque teológico não pode ser ignorado na leitura do contexto e texto de Jo 19.16-30. O intento de eliminar Jesus não está apenas no final de seu ministério, mas vem de longe, perpassa o evangelho e lhe dá uma conotação que não elimina, mas transcende os aspectos sociorreligiosos e políticos do processo de crucificação de Jesus (Jo 11.47-53; cf. principalmente os vv. 50-52; cf. também Jo 18.32; 3.14).
2. Enfoques exegético-teológicos do texto
Das quatro narrativas (Mt, Mc, Lc e Jo) da crucificação e morte de Jesus na cruz, a de João é a “menos dramática” – se assim pudermos dizer. Apesar da atitude desumana e crueldade profunda que a crucificação representava, o evangelista é escasso no uso de palavras que possam despertar nossa compaixão com Jesus e com os outros dois crucificados, um de cada lado de Jesus (v. 18). Tanto mais se deve dar atenção aos detalhes e à conotação que esses recebem no texto.
vv. 16-18: A crucificação de Jesus como tal. No texto grego, as palavras “Então, Pilatos o entregou para ser crucificado. Tomaram eles, pois, a Jesus” (19.16-17a) formam o v. 16. Depois que Pilatos investigou as acusações feitas contra Jesus e constatou a inocência desse (Jo 18.29; 19.4), as palavras do v.
16 dão a impressão de que, no fundo, Pilatos não estava nem ali. Embora figurasse como testemunha da inocência de Jesus, em última análise ele não tinha condições de reconhecer a reivindicação absoluta de Deus em Jesus Cristo. Por essa razão também pôde entregar “sem constrangimento” ou, no máximo, pôde “livrar-se” da cumplicidade da morte de Jesus por meio de um gesto público, como “lavar as mãos” (Mt 27.24). Diferente das narrativas dos sinóticos (Mt 27.32; Mc 15.21), conforme João, Jesus mesmo carrega sua cruz até o lugar da crucificação. Com isso provavelmente o evangelista enfatiza dois aspectos teológicos:
1) A pequenez e humildade de Jesus – o Filho sofredor de Deus. Ninguém outro pode assumir essa tarefa em seu lugar. O sentido de sua cruz e morte é diferente de todas as outras cruzes e mortes; sem querer amenizar a dor e a coragem que essas atestam. A morte de cruz que Jesus de Nazaré sofreu tem significado vicário, substituto para o pecado da humanidade. Aqui lembramos de Jo 1.29, 36. E, não por último, indicamos as palavras da instituição da Ceia do Senhor (Mc 14.22-26 e par; veja também 1 Co 1.18ss).
2) O fato de Jesus carregar sua própria cruz é sinal de que sua igreja deve estar preparada para sofrer por causa de seu Senhor (cf. Jo 9.22; 12.42; 16.2). A escassez de palavras tanto em torno do ato da crucificação de Jesus como dos “outros dois” (allous duo), no v. 18, pode guardar-nos de uma má interpretação da crucificação de Jesus como se essa tivesse uma coloração ideológico-partidária específica. Ao menos sob o viés do evangelista, a causa primária da crucificação não foi uma questão ideológico-política.
vv. 19-22: A causa da crucificação. Era bastante comum que a causa da crucificação de uma pessoa ou seu nome constassem na cabeceira da cruz, exposta ao público. Pilatos escreveu a causa da crucificação de Jesus em língua hebraica (dialeto aramaico), latina e grega: “Jesus NAZARENO, O REI DOS JUDEUS”. Hebraico (aramaico) era a língua popular, latim a língua oficial-judicial e o grego a língua comercial. O local da crucificação de Jesus ficava perto da cidade e de uma estrada. Isso fez com que muitos judeus lessem o título afixado no cimo da cruz de Jesus. Conforme a narrativa joanina, isso não era por acaso. Pilatos, querendo ou não – não sabemos se ele quis ser irônico ou sincero –, tornou-se “testemunha da realeza” de Jesus. Mesmo sob o protesto dos principais sacerdotes (v. 21), Pilatos insiste: “O que escrevi escrevi”(v. 22). Aqui se poderia falar do testemunho da realeza universal de Jesus em meio à mais desumana humilhação que pode existir. Seu reino não é deste (ou como os reinos deste) mundo (Jo 18.36; veja também Jo 1.35-39, 45-49). A igreja como povo de Deus faz bem em nunca esquecer essa realidade para que, em seu meio, a disputa pelo poder não se instaure ou sempre de novo seja desmascarada, literalmente, pela palavra da/na cruz.
vv. 23-24: Os soldados e as vestes de Jesus. No v. 23a, é retomado o v. 18a, sem, contudo, enfatizar de alguma forma a crucificação em si. Ao contrário, as vestes de Jesus são mais focadas do que ele próprio e sua crucificação. Não seria isso um sinal de banalização da vida e da morte? À primeira vista, pode parecer que sim. Mas, na realidade, o evangelista tem todo o interesse em apontar para o cumprimento da Escritura (v. 24), conforme o Salmo 22.18. No momento em que a injustiça e as atitudes mais desumanas parecem festejar o triunfo, sem que haja alguém que lhes resista, Deus não perdeu definitiva- mente o controle. Inclusive os carrascos da brutalidade – da crucificação, sem o saber, participam do cumprimento do testemunho bíblico a respeito do Filho de Deus: “Assim, pois, o fizeram os soldados” (v. 24c).
vv. 25-27: Mulheres e o “discípulo amado” ao pé da cruz de Cristo. Conforme o testemunho neotestamentário, desde os primórdios até o final do ministério de Jesus são mencionadas mulheres como ouvintes e participantes na sua causa. Às vezes, Jesus as surpreende, e vice-versa. Eis apenas alguns exemplos: Lc 2.36-38; 7-11-15; 7.37ss; 10.38-42; Jo 2.1ss; 4.6ss; 8.1ss; 11.1ss; 19.25-27; 20.1-2; 20.11-18. Em relação às testemunhas ao pé da cruz de Cristo, três aspectos merecem breve destaque: 1) As mulheres. Provavelmente eram quatro. Elas – juntamente com o “discípulo amado” – são o elenco das testemunhas opostas aos quatro soldados incrédulos. 2) Conforme o testemunho do Evangelho segundo João, a mãe de Jesus é testemunha do primeiro e último ato (sinal) de Jesus (Jo 2.4-5; 19.26-27). Esse fato merece ser registrado, não para engrandecer e idolatrar Maria, mas como testemunho animador para muitas mulheres de hoje. 3) Sob a cruz de Jesus Cristo surge a comunhão dos solitários, que se tornam solidários por meio do agir do próprio. Esse gesto de comunhão é determinante para a igreja cristã como corpo unido por Cristo e em Cristo, determinante para entendermos o que confessamos no 3º artigo do Credo Apostólico em relação à comunhão dos santos, e é um elemento inestimável para minorias que crêem em Jesus – talvez minorias ameaçadas.
vv. 28-30: A salvação para a humanidade está consumada. Aqui encontramos o auge do evento da cruz ou crucificação de Jesus. Nos versículos em destaque, ocorre três vezes o verbo consumar/cumprir (teleô / teleoô). Esse auge contraria a razão, o sentimento e o ideal humanos. Mas é exata- mente nessa contradição ou nesse paradoxo para a lógica humana que está o cerne do agir de Deus em Jesus de Nazaré: “Está consumado”. Esse é o grito do triunfo da fraqueza e autenticidade de Jesus – o Cristo de Deus – contra todos os poderes opostos a Deus e ao ser humano que o possam lançar no vazio, desespero e finalmente na perdição eterna. Destaquemos novamente três aspectos: 1) Jesus Cristo externa sua profunda necessidade humana em meio à obra de Deus: “Tenho sede” (v. 28b). 2) Jesus Cristo completa em obediência a obra de Deus: “Está consumado” (v. 30b). 3) Também na morte Jesus Cristo se rende a Deus: “E, inclinando a cabeça, rendeu o espírito” (v. 30c). Dessa forma, ele enfrentou toda tentação, completou toda a obediência a Deus e remiu todo pecado (veja aqui Rm 5.12ss; Fp 2.5-11). Do acima visto entendem-se as palavras do apóstolo Paulo aos coríntios: “Porque decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo e este crucificado” (1 Co 2.2).
3. Sugestão para a prédica
Sugestão de tema para a prédica: A crucificação e morte de Jesus entre injustiça humana e agir de Deus. Possíveis subdivisões: a) A causa da crucificação de Jesus (vv. 16-22). É recomendável considerar o contexto do processo contra Jesus, destacar a crucificação como tal e o que a envolveu. Sugere-se fazê-lo em estilo narrativo ou com algum recurso visual. b) O agir de Deus na cruz de Jesus Cristo é o fundamento da comunhão cristã concreta (vv. 23-27). Aqui o texto de Os 6.1-6 pode ser contemplado, tanto no que tange à falsa segurança diante de Deus (vv. 1-5) e principalmente no que se refere ao cerne da vontade de Deus: a misericórdia e conhecimento de Deus (v. 6). c) A morte de Jesus Cristo na cruz como agir salvífico pleno de Deus. Aqui o texto de Hb 9.15-17, 27b-28 pode ser incluído. A conclusão da prédica deve ser bem planejada, de modo que ela seja o encaminhamento à celebração da Ceia do Senhor.
O texto da prédica é propício, especialmente os vv. 25-27, para destacar a comunhão com o Senhor (Kyrios) e uns com as outras. É importante enfatizar que essa comunhão não é produção de manobra ou monitoria humana, mas é dádiva de Deus. At 2.41-47 também poderia ser contemplado, em algum momento, para focar a experiência da unidade ancorada nos grandes feitos de Deus em Jesus Cristo. Por essa razão, não se deve omitir a relação entre a comunhão (koinônia) e a eucaristia.
4. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados: Senhor, estamos diante de ti com nossa culpa: buscamos mais a nossa própria honra do que a tua, preocupamo-nos com nosso conforto e nos acomodamos diante das necessidades humanas à nossa porta. Sabemos que nos tornamos culpados diante dos outros, mas não temos a coragem e humildade de confessar concretamente nossa culpa e repará- la. Senhor, desperta-nos para nossa tarefa como cristãos e cidadãos em nossa cidade e na tua igreja. Senhor, tem compaixão conosco e ajuda-nos a estender tua compaixão aos outros. Amém.
Oração de intercessão: Senhor, trazemos na tua presença as aflições do mundo, rogamos pelas autoridades políticas e eclesiásticas em nosso país para que lhes dês sabedoria para dirigir o que é de sua competência e as guardes do poder que corrompe. Pedimos que consoles os doentes e enluta- dos, que presenteies a nós todos com a dádiva da comunhão contigo e com as irmãs e irmãos na fé. Senhor, ouve-nos conforme tua vontade. Amém.
Bibliografia
JEREMIAS, Joaquim. Jerusalém no tempo de Jesus. Pesquisas de história econômico-social no período neotestamentário. São Paulo: Ed. Paulinas, 1983.
MARTINI, R. Romeu. Eucaristia e conflitos comunitários. São Leopoldo: EST & Ed. Sinodal, 2003.
PARZARNY, Ulrich. Ein Schrei zerreisst die Welt. Über die sieben Worte Jesu am Kreuz.Gladbeck / Westfalen: Schriftenmissions-Verlag, 1978.
SCHNELLER, Udo. Das Evangelium nach Johannes. In: Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament, vol. 4. Leipzig: Evangelische Verlagsanstalt, 2004.