Prédica: Marcos 1.12-15
Leituras: Gênesis 22.1-4 (15,18) e Romanos 8.31-34 (35-39)
Autor: Werner Fuchs
Data Litúrgica: 1º. Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 05/03/2006
Proclamar Libertação – Volume: XXXI
A fonte jorra sempre, até mesmo quando ninguém vem beber, é assim também com a palavra de Deus!
Crisóstomo
1. Preliminares
Há o sermão “sobre” o texto. Representa uma atitude de estar acima ou por cima, não “sob” o texto, debaixo dele. É como um vídeo sobre economia solidária, em que os representantes das ONGs e os assessores falam sobre as experiências (clube de trocas, padarias comunitárias etc.), mas o depoimento rico e vivo dos próprios envolvidos fica à margem, quase esquecido.
Há a atitude de pregar “a partir” do texto. Não se corre o risco da superioridade. Pode-se mostrar que o texto bíblico significa um impulso para a fé e vida da pessoa e da comunidade. O perigo é a infidelidade: deixar o texto para trás, transformá-lo em pretexto e “viajar” pela Bíblia ou, mais seguramente, pelos temas prediletos e em voga.
Há a possibilidade, mais rara, porém preferível, de pregar “dentro” do texto. Evita-se submetê-lo a mediações interpretativas, geralmente ideológicas. Vale mais a ação do que a falação. As pessoas são convidadas a “acompanhar vivencialmente” o que o texto transmite, a entrar em sintonia com seu dinamismo, a acessar e resgatar o que está dentro dele, a mover-se com a narrativa, a sentir com os protagonistas e sofrer as forças atuantes e conflitantes daquele contexto. É palavra-acontecimento. É palavra-surpresa de Deus. É palavra dramatizada, brincada, gesticulada, mastigada, balbucia- da, sofrida, experimentada, dinamizada. Valem o verbo e o verbo por trás de cada substantivo. Morrem as fórmulas prontas e ressuscitam as vivências. Desaparece o comentarista e prevalecem os protagonistas. O povo que estava à margem naquele vídeo sobre economia solidária passa a ocupar o cenário todo. Informações exegéticas são úteis, mas apenas na medida em que se inserem nesse esforço. Ainda que nem todas as pregações atinjam plena- mente esse objetivo, vale a pena dar passos em sua direção.
2. Pesquisa
As duas cenas (vv. 12s e vv. 14s) fazem parte do bloco introdutório ao Evangelho de Marcos (vv. 1-15), cuja moldura é dada pela palavra “evangelho” (vv. 1 e 14). As cenas prévias descrevem a atuação de João Batista (vv. 2-8) e o batismo de Jesus (vv. 9-11). A sequência tem lógica intrínseca: João prepara a hora (citando Is 40.3), Jesus é batizado e, como Filho amado, resiste à tentação no deserto, João é preso e Jesus proclama que a hora já chegou porque o próprio Deus assume o governo. A brevidade de vv. 12s e vv. 14s poderia levar a pensar que se trata de “resumos”, razão pela qual Marcos deixaria fora detalhes amplamente conhecidos como, por exemplo, as três fases da tentação relatadas por Mateus e Lucas. Contudo, por ser anterior a esses dois evangelistas e por não haver certeza de que Marcos conhecia as fontes deles, omitindo-as deliberadamente, é preciso considerar se as alusões contidas nas duas cenas não falam por si diante do imaginário existente no judaísmo daquele tempo (por exemplo, em relação ao “deserto” ou a “Satanás”) e diante do conhecimento popular (por exemplo, sobre a prisão e morte de João). De qualquer modo, trata-se de um relato independente, no qual Marcos coloca suas próprias ênfases. Não importa a luta em si, mas o desfecho, a vitória de Jesus. Não importam os detalhes da prisão de João, mas a inauguração do reino de Deus.
Portanto, na primeira cena é preciso “resistir à tentação de interpretá- la a partir dos relatos mais completos de Mateus e Lucas. Ademais, a versão de Marcos é completa em si, quando vista diante do pano de fundo da crença judaica corrente de que nos últimos dias o espírito maligno seria derrotado em uma grande batalha de poder” (Mally, p. 25, aludindo a Cunrã: 1QS 3.13-4.26). Também se pode lembrar que “deserto” tem um duplo significado: lugar de provação (por exemplo, Massá e Meribá: Êx 17.7; Dt 32.51; 33.8 etc.) e lugar de um novo começo para o projeto de Javé com seu povo. A ação é protagonizada pelo Espírito de Deus. O verbo ekballein tem conotação violenta: expelir, expulsar (demônios: Mc 1.34,39,43; 3.15,22). Mas não se deve esquecer que o movimento do Batista já acontecia “no deserto” (v. 4), ou seja, Jesus sofreu um “deslocamento” simbólico para uma fase crítica da vida dele em relação ao projeto de Deus. O número “quarenta” simboliza um tempo delimitado de luta e vitória. Isso leva a recordar episódios similares no Antigo Testamento: o dilúvio (Gn 7.12), o jejum de Moisés (Êx 34.28), a caminhada de Elias (1 Rs 19.8), a dominação dos filisteus (Jz 13.1) etc. Jesus passa a fazer parte dessa “genealogia”: Noé, Moisés, Elias. “Ser tentado” (peirázomai) significa ser posto à prova em um conflito, sofrer uma crise e sair vitorioso na luta. “Por Satanás”: o Novo Testamento não apresenta uma visão sistematizada do diabo. Em momento algum, porém, o poder dele é tão grande que possa ser usado como desculpa para o eventual fracasso dos seres humanos, isentando-os de responsabilidade. Jesus vence, destruindo os planos de Satanás (cf. Mc 3.27; 1 Jo 3.8). “Estar com as feras” pode ser entendido de duas maneiras, de acordo com as quais a kai seguinte será traduzido por mas ou por e. Ou as feras, os animais silvestres, são considerados ferozes e fazem parte da provação, ou já simbolizam a nova harmonia com a natureza inaugurada pela vitória de Jesus, na qual a criação de Deus deixa de ser objeto e torna-se companheira do ser humano. Da mesma forma há exegetas que consideram o “serviço dos anjos” como assistência e apoio a Jesus durante a luta. Outros vêem-no como parte do resultado, decorrente da luta e posterior aos quarenta dias. Tecnicamente, “servir” significa “trazer alimento”, sustento, fim do jejum (novamente a relação com Moisés: o maná, e Elias: 1 Rs 19.5ss). Parece que ambas as vezes a opção precisa ser em favor da segunda alternativa, assegurando que o episódio no deserto, na solidão, e o episódio seguinte, sua atuação no meio do povo, sejam igualmente relevantes na obra redentora do Filho amado, do Messias Jesus.
Na segunda cena, o início do ministério público de Jesus, observa-se que o fato desencadeador é a prisão de João. Mc 6.14ss a atribui à crítica feita por ele ao casamento ilícito do rei Herodes. O historiador Flávio Josefo diz que Herodes temia uma revolta popular encabeçada por João e por isso o prendeu. Criticar o rei é um ato de insurreição. Esse clima de conflito político precisa ser devidamente considerado. O mesmo vale para o lugar dessa atuação. A “Galiléia” era o “Nordeste” da Palestina, a terra marginalizada cuja população há séculos vinha sendo invadida culturalmente e explorada economicamente. Era a “Galiléia dos gentios”, das nações (Is 9.1; Mc 4.15; o termo Galileia é síntese do hebraico gelil ha’gojim, região de pagãos). Era o mesmo lugar em que, no final do ministério público, o Jesus ressuscitado dá aos discípulos a incumbência de evangelizar os povos (Mc 16.7; Mt 28.16). A ação de Jesus sempre começa pela “periferia”, pelos lugares de opressão, pelo povo aparentemente sem esperança e sem chances. O “evangelho” é uma boa notícia anunciada oficialmente em nome de um governante: vitórias bélicas, atos de perdão etc. A “boa notícia de Deus” na Galileia ainda não correspondia totalmente ao “evangelho de Jesus Cristo” de depois da Páscoa, se bem que em essência se referia àquele. Deus “mostrou a cara” na Sexta-feira Santa e na Páscoa. “Retroceder para antes disso, a pregação não pode mais” (Pohl, p. 69). “No judaísmo palestinense ficara viva a ideia do mensageiro das boas notícias do Deutero-Isaías” (Friedrich, ThWNT vol. II, p. 712ss, cit. por Pohl, p. 69).
A mensagem de Jesus tem quatro elementos: a) o tempo está cumprido; b) o reino de Deus está próximo; c) arrependei-vos; d) crede no evangelho. Os dois primeiros são anúncios de fatos; os dois últimos são instruções para a ação. Isso tudo, ainda mais nessa sequência, expressa um tremendo dinamismo que, no contexto do clima e do lugar acima expostos, não pode ser debilitado, banalizado e deturpado por uma leitura supostamente “neutra”. A mesma exigência decorre do aprofundamento dos termos: a) kairós é tempo carregado de oportunidade; peplérotai (cumpriu-se) está no pretérito perfeito da voz passiva: fato consumado por Deus (passivum divinum), que não respeita calendário (cronologia), mas desse momento em diante impacta a realidade pela inconformidade de Deus com o sofrimento do povo; b) “reino” (basiléia, em hebraico malkut) refere-se tanto ao território como ao domínio (poder) de um rei: de nada adiantaria o território demarcado sem o exercício efetivo do poder, do governo; engizein (aproximar-se) no pretérito perfeito (“está próximo”) enfatiza a duração e o efeito da aproximação, resultando em uma impressão de proximidade premente e inquietante, mas não em presença plena (“chegou”); c) a convocação à conversão está na linha dos profetas (Is 59.20; 56.1s; 58.6) e do Batista (Mc 1.4), assegurando ao ser humano a dignidade de não ser objeto passivo, mas de poder e dever tomar uma decisão; d) o “e” não é aditivo, mas tem sentido explicativo: “ou seja, crede!” Prevalece a fé, a fé no Deus que se aproxima. Nos capítulos seguintes, Jesus não fala mais em “arrepender-se”, mas destaca cada vez mais esse “crer”. Não é crer “no” evangelho, mas em Deus com base no evangelho, a partir da boa notícia sobre um fato inusitado. A fé vem pelo ouvir (Rm 10.17). Deus falou com os galileus por meio da boa notícia. Agora são convocados a prender-se a ela, como o nômade finca sua tenda no deserto para resistir à tempestade de areia ou como o navio é amarrado ao cais para resistir à força das ondas. Em Marcos, a fé é crer “apesar de”, permitindo a Deus que de fato seja Deus em nossas vidas e nos torne justos e agentes de justiça (cf. Abraão: Gn 15.6).
3. Proclamação
3.1 – “Já sabemos”? A chegada simples de Jesus ao mundo é algo extra- ordinário! Hoje repetimos essas palavras, porém não sentimos mais nada de extraordinário. É como receber cartões e mensagens eletrônicas em datas festivas como Natal ou Páscoa – quem ainda lê com atenção? Em geral, passamos um olhar rápido nas palavras impressas e dedicamos atenção somente ao que o remetente anotou de próprio punho no cartão. Parece que “já sabemos” o que o cartão vai dizer. Será que palavras como “vida”, “confiança”, “fé”, “sonho”, “amor”, “alegria”, “paz”, “esperança de um mundo melhor” ainda dizem alguma coisa? Será que sempre dizem a mesma coisa? Existem surpresas por trás dessas palavras? Surpresas que nos arrastam consigo? Mc 1, sobretudo nos vv.1-15, traz um relato resumido, quase em tópicos. As cenas mudam rapidamente. Parece que os leitores de Marcos “já sabem” – e nós “já sabemos” – o que vai acontecer. Será mesmo? Se prestarmos maior atenção nesses quatro versículos, e até mesmo no que Marcos não diz, descobriremos o peso e a força de cada cena, de cada palavra. Abre- se um leque de novidades! Novidades surpreendentes e existenciais para nós.
3.2 – “Novidade 1”: resistir no meio do conflito traz a paz. “E logo” faz a ligação com a cena anterior, que mostrou o batismo de Jesus por João Batista e a voz dos céus que designa Jesus como amado Filho de Deus. A expressão “o Espírito” indica que o acontecimento seguinte é uma iniciativa de Deus, que Deus está no controle, até mesmo nos piores desertos da vida. “Impelir” é empurrar com força. O mesmo verbo é usado para expelir demônios e expulsar do paraíso. Ou seja, trata-se de um acontecimento crítico, angustiante, talvez violento, de mudança radical. “Deserto”: o v. 4 dizia que o movimento de João Batista já acontecia no deserto, portanto Jesus já estava lá antes. Agora, porém, ele é levado ao isolamento, à crise profunda diante do mundo exterior, do contexto social e diante de seu próprio íntimo. Você está diante da miséria, da corrupção e das injustiças sociais e duvida da presença de um Deus que ama. Você está no meio de uma multidão alegre e se sente sozinho, triste, incompreendido… A novidade são os “quarenta dias”. Quarenta é o número da provação, do teste, da crise e da resistência: o dilúvio durou 40 dias, Moisés jejuou 40 dias no monte Sinai, Elias caminhou 40 dias até o monte Horebe, o povo de Israel migrou 40 anos pelo deserto, na Quaresma lembramos durante 40 dias a paixão e morte de Jesus. “Quarenta” é um fardo pesado! Mas é tempo prefixado. Você ouve “quarenta” e sabe que depois da crise acontecerá a virada.
Para Jesus, é um período de “ser tentado”. Marcos não dá detalhes dessa tentação. Não fala de três etapas, como Mateus e Lucas. Diz apenas que Jesus foi tentado “por Satanás”. Reconhece que Satanás tem esse poder sedutor. O importante é que Jesus resistiu. Como sabemos que ele resistiu? Marcos informa apenas que ele “estava com os animais silvestres”, não necessariamente animais ferozes, e que “os anjos o serviram”. É discutível se os animais fazem parte da tentação, da ameaça, do terror que a religião judaica tinha diante de tudo que é impuro ou se já fazem parte do cenário de paz, de harmonia com a natureza, da reabertura do paraíso, no qual os anjos servem a Jesus. Damos preferência à segunda alternativa, até por ser mais surpreendente para os ouvidos daquele tempo e de hoje, e porque mostra que a resistência de Jesus trouxe uma paz integral, não apenas uma paz “angelical”, espiritual. Pelo contrário, traz reconciliação com a criação toda, com o meio ambiente. Resistir no meio do conflito traz a paz completa.
3.3 – “Novidade 2”: coragem política inaugura o reino de Deus. Uma nova cena: começa a atuação pública, o ministério de Jesus na sociedade! O v. 14 chega a informar o dia desse começo: “O dia em que João Batista foi preso”. É outra cena de conflito, é um conflito político. João Batista foi preso porque enfrentou pessoas poderosas. Aí Jesus sentiu: é a minha hora, o movimento iniciado por João não pode morrer. Deus precisa intervir. Em lugar do sentimento de derrota surge a coragem de prosseguir… O v. 14 também diz o lugar em que começou a atuação pública de Jesus: “na Galiléia”. Que lugar era esse? Era a periferia em termos sociais e religiosos, distante de Jerusalém. A Galiléia sofria a invasão econômica e cultural de vários povos. Havia mistura de raças, havia humilhação para os judeus sinceros. Era chamada a “Galiléia das nações”. Logo adiante estavam as dez cidades gregas. As melhores terras estavam na mão de estrangeiros ricos, sobretudo romanos. Era uma região cheia de povo sem vez e sem voz, sem terra e sem teto, um povo sem chances. É esse o lugar onde Jesus prega o “evangelho de Deus”. Evangelho é: boa notícia anunciada em nome de uma autoridade. Qual é a autoridade? O próprio Deus. Qual é a alegre e boa notícia para essa periferia, esse povo “sem chances”? É preciso prestar muita atenção nos dois verbos: “o tempo está cumprido”, foi completado, e “o reino de Deus está próximo”. Ambas as vezes trata-se do pretérito perfeito, que descreve um acontecimento no passado, mas que passou a vigorar imediatamente e que continua eficaz, incomodando até hoje. O “tempo” não é o tempo cronológico, mas é o kairós, o tempo cheio de significado, o tempo da grande oportunidade. O “reino de Deus” é essa grande oportunidade. Nele se expressa tudo o que Deus é capaz de dar para a plenitude de nossa vida. Nele convergem todas as esperanças daquele povo sem chances. É fato iniciado. É espaço criado no meio dos poderes contrários. Basta inaugurá-lo. A coragem política de Jesus inaugura esse reino de Deus.
3.4 – “Oportunidade”: poderíamos dizer que a fala de Jesus significa um desafio: “arrependei-vos e crede no evangelho”. Mas não se trata de pressionar ninguém, forçar ninguém. João Batista, no v. 4, ainda pregava o arrependimento para o perdão dos pecados. Apelava à consciência de cada um. Confrontava e desafiava, doa a quem doer. Isso foi importante. Mas a boa notícia de Jesus parte do fato da chegada do reino de Deus. Convida para participarmos da inauguração. Oferece uma grande oportunidade, um novo rumo na vida, a chance de dar meia-volta e entrar nesse novo espaço, no reino de Deus. Nossa reação somente pode ser a de agarrar essa oportunidade com gratidão. Como participaremos? “Crede no evangelho!” A expressão resumida na realidade significa: crer em Deus, não em outras coisas ou valores. Significa crer em Deus dentro do evangelho, com base no evangelho, por causa desse anúncio da boa notícia! Significa confiar nesse Deus apesar de tudo, apesar dos desertos sociais e individuais. “Abraão creu no Senhor, e isso lhe foi imputado como justiça” (Gn 15.6). Para Lutero, o ser humano somente é perfeito e justo quando deixa Deus ser Deus. Então Deus pode abençoá-lo de modo nunca imaginado e torná-lo uma bênção. Quando agarramos a oportunidade, passamos a abrir oportunidades para os outros, para os “sem-chances”. Porque Jesus, o dono desse pedaço, convidou e continua convidando. Amém.
Bibliografia
KÄLLSTEN, Delcio. “Auxílio Homilético sobre Mc 1.12-15”, in: Proclamar Libertação, vol, XXV, S. Leopoldo, 1999. pp. 129-135.
MALLY, Edward J. “The Gospel Acoording to Mark”, in: FITZMYER, J. A./BROWN, R. E. The Jerome Biblical Commentary, vol. II, 1972.
POHL, Adolf, O Evangelho de Marcos, Comentário Esperança, Curitiba, 1998.
STEUER, Aline. “Auxílio Homilético sobre Mc 1.12-15”, in: Proclamar Libertação, vol. XIX,