Prédica: Marcos 6.30-34
Leituras: Jeremias 23.1-6 e Efésios 2.13-22
Autor: Erni Drehmer
Data Litúrgica: 9º.Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 06/08/2006
Proclamar Libertação – Volume: XXXI
1. Delimitações e contexto
A maioria dos comentários considera a perícope até o v. 44. Assim inclui a narrativa da multiplicação dos pães. A delimitação até o v. 34 provoca, de imediato, uma pequena reação de estranheza, mas não deixa de ter seus atrativos, pois permite uma leitura e, por isso mesmo, uma ênfase diferente nesse fato na vida e na ação de Jesus.
A narrativa em Marcos segue um amplo relato sobre a morte de João Batista (vv. 14-29). Antes disso (vv. 7-13), há a instrução e o envio dos doze, além de um resumo de suas principais atividades. Já em Mateus, a narrativa sobre a morte de João Batista também precede a perícope, só que com menos detalhes (14.1-12). Antes disso, no capítulo 13, temos uma coletânea de parábolas. Já em Lucas temos a narrativa inserida igualmente após o relato sobre a morte de João Batista, narrada em compactos três versículos (9.7-9) e igualmente precedida do envio e de instruções para os doze (9.1-6).
Ao olharmos para dentro do texto, é bom ter esses dois fatos como pano de fundo: o envio dos doze e suas primeiras experiências e a morte de João Batista por decreto de Herodes.
2. Refletindo o texto
v. 30: Os apóstolos voltam e relatam o que fizeram e ensinaram. O termo apóstolo não quer significar um título honorífico, mas caracteriza sua função, ou seja, são “enviados”. Não se trata de um grupo de amadores ou de admiradores de Jesus. Eles foram preparados com detalhes como deveriam agir, vestir-se e alimentar-se (vv. 8-11). Terminado o “estágio”, voltam e relatam suas experiências. Eles contam tudo o que fizeram e ensinaram. O ensino não está divorciado da prática. O discurso sobre a fé completa-se na ação na fé. Eis um primeiro e grande desafio a aprender da forma como Jesus agia: a ação, a coerência entre a pregação e a ação fará com que a missão dos doze, dos setenta ou das centenas de milhões de cristãos no mundo inteiro tenha credibilidade ou não.
v. 31: Como foi o relato dos apóstolos? Qual a sua impressão a respeito da reação do povo a quem pregaram? Não temos detalhes a respeito. O que sabemos, porque o texto nos diz, é que foi uma atividade intensa. Tão inten- sa, que não tinham tempo nem para comer. Jesus percebe isso neles e convida-os para descansar um pouco num lugar deserto. Esse chamado ao descanso pode receber várias interpretações. Há um cansaço físico a ser considerado. Mas o cansaço também deve ter uma boa carga emocional. Podemos imaginar o quanto esses apóstolos tinham a relatar sobre a miséria humana. Afinal, quando se abrem os olhos da fé, os contornos da dor, da injustiça e da miséria humana tornam-se assustadoramente claros. Mas também é possível imaginar que, ao relatar, algum deles tenha se empolgado pela causa, até o ponto de se sentir poderoso e ter prazer nisso. Contra isso, por exemplo, Jesus reage em Lc 10, quando os setenta enviados retornam e relatam o que aconteceu. Para colocar as coisas nos devidos lugares, ele alerta: “Não obstante, alegrai-vos, não porque espíritos se vos submetem, e sim porque o vosso nome está arrolado nos céus” (v. 20). Portanto, Jesus chama os apóstolos ao relaxamento exterior e também interior. É hora de avaliar o que aconteceu e o que isso significa para a caminhada da missão. A retirada para um lugar deserto é um chamado para meditação e oração. E Jesus vai com eles. Não por companheirismo ou para um apoio moral. Jesus vai com eles porque a missão não pode ser entendida sem o seu referencial. A missão não é dos apóstolos ou nossa; não temos a liberdade ou o direito de fazer dela o que quisermos ou como quisermos. A missão é de Deus: ele prepara, ele envia, ele dá o conteúdo, ele diz para onde devemos ir, por que e como. A nós, igreja de Jesus Cristo, cabe cumprir essa tarefa. Jesus convida os apóstolos a se retirarem com ele para que se reforcem a paz e o descanso que vêm da certeza de sua presença. Ao mesmo tempo, para que se reforce a constante busca da referência da missão em Deus como requisito básico para que ela continue sendo a missão de Deus, e não invenção humana. Missão fundamentada em princípios e critérios humanos não é missão de Deus, mas ilusão, exploração e lamentável forma de extorquir a credibilidade e, por meio dela, o dinheiro de um imenso rebanho sem pastor e, por isso mesmo, presa fácil dos falsos pastores citados em Jr 23.
vv. 32 e 33: Jesus e os discípulos deslocam-se para um lugar retirado. Não há uma referência geográfica clara onde seria esse lugar. De qualquer forma, não é muito distante. A multidão consegue acompanhar a partida e a chegada. Quando Jesus chega, já é aguardado pelo povo. Com se juntou essa multidão? Como ela tomou conhecimento da atividade de Jesus? Seriam caravanas de peregrinos indo para o Passah ou voltando de lá? Ou talvez já sejam fruto da atuação dos doze que acabaram de voltar de sua primeira missão? De qualquer forma, a multidão reconheceu os doze e Jesus. A pergunta a respeito da origem da multidão não é respondida. De qualquer forma, a multidão corre para lá, atrás de novidades. Essa cena não nos é desconhecida. Normalmente, a multidão expressa sua sede e necessidade por meio de correrias, às vezes aparentemente sem rumo. Estou redigindo o texto pouco tempo após a morte do papa João Paulo II. A mídia retratou exaustivamente a concentração de turistas do mundo inteiro na Praça São Pedro, que aguardavam até 12 horas na fila para contemplar por alguns segundos o papa morto, exposto à visitação. O que levou a essa busca e sacrifício? Teria sido fruto das inúmeras viagens do papa pelo mundo? A curiosidade natural do ser humano? Ou, ainda, expressão visível da procura de alguma orientação, da qual a maior parte nem mesmo tem consciência? A multidão busca Jesus, independentemente da motivação que a trouxe até ali. Será que frustrou a intenção de Jesus? Afinal, ele estava querendo promover um retiro espiritual com seus apóstolos para renovar as forças e avaliar a caminhada. E agora? O que fazer com essa multidão de cinco mil pessoas, que, mesmo nos dias de hoje, é um grupo razoável?
Será que os planos de Jesus se frustraram? Olhando da perspectiva humana, talvez sim. Está tudo planejado para descansar, e alguém bate à porta. O descanso da segunda-feira (para os obreiros e as obreiras), após um fim de semana cheio de atividades, é frustrado por gente que bate à porta da casa pastoral para pedir ajuda. Podemos imaginar que, para os apóstolos, tenha acontecido algo parecido. O que prometia ser um tempo para a recuperação das energias acaba se tornando em mais trabalho ainda. Mas, olhando da perspectiva de Deus, talvez não se tratasse simplesmente de uma retirada, de uma fuga para a solidão. Jesus desloca “a cena” do que vai acontecer para longe de qualquer outra possível interferência, para deixar bem claro que tudo o que vai acontecer está tão-somente ligado à ação de Deus por intermédio de Jesus e de mais ninguém. Ir a um novo lugar ou um lugar deserto afasta a ação de Deus junto à multidão das interpretações e das interferências do que quer que seja.
v. 34: Jesus olha para multidão com os olhos com que Deus olha para seus filhos e filhas. Por isso mesmo, consegue ver nela o que ela mesma não identifica. O texto diz que Jesus “se compadeceu”, isto é, ele sentiu uma dor física pela dor sentida por esse povo. Mesmo que o povo não saiba dizer onde e por que dói. Ali estava uma multidão abandonada à própria sorte, um rebanho sem pastor. Quem deveria cuidar desse povo não o estava fazendo. Assim como hoje uma enorme multidão de brasileiros e brasileiras espera ansiosamente que alguém faça por ela o que deve ser feito: saúde, emprego, justiça, terra para plantar, acesso à educação. Alguém está encarregado de fazer; muitas vezes, é pago regiamente para isso, mas não faz. Além disso, há nesse povo aquela necessidade que não consegue expressar: orientação, ombro para chorar, sentido para sua vida. A misericórdia de Jesus pelo povo retrata a misericórdia de Deus por seu povo. A imagem do pastor e seu rebanho é muito conhecida na Bíblia, desde o Antigo Testamento e no próprio linguajar oriental. É usado para caracterizar a relação do governante para com o seu povo e de Deus para com o povo de Deus. As leituras previstas para o domingo falam da função de proteção, reunião e orientação do pastor. Em Jeremias, há a profecia contra os maus pastores e a promessa de que Deus constituirá verdadeiros pastores que protegerão o povo de modo que esse não tenha mais medo e se sinta seguro. Em Efésios, a reaproximação do povo de Deus e entre si dá-se por meio da morte de Cristo na cruz. Fazer parte do rebanho do pastor caracteriza-se na participação da família de Deus. Quando Deus olha para o seu povo, ele sabe e sente qual a sua sede e fome. E Jesus olha para o povo e ensina muitas coisas. É preciso muito orientar um povo tão desorientado e faminto. Ele não só ensina, mas também dá de comer a esse povo. As duas coisas andam juntas: a pregação e a ação.
3. A caminho da prédica
Buscar exemplos concretos de como ídolos (muitas vezes fabricados pela mídia) conseguem atrair multidões. Essa atração existe porque há uma grande multidão buscando algo para sua vida, mas não consegue definir o que é. A multidão que correu atrás de Jesus também buscou algo. A diferença é que Jesus olha para esse povo com os olhos de Deus e percebe nele o que realmente precisa: orientação, segurança, além de comida. Deus continua hoje orientando a multidão carente de orientação por meio de seus enviados. Os enviados não são os donos da missão, pois ela é de Deus. Os enviados são os da família de Deus, os cristãos e cristãs, cujo desafio missionário é levar à multidão desorientada essa mensagem de Deus: ele não a abandona, sabe de suas necessidades e quer que ela tenha tudo o que precisa para a vida digna: desde o ensinamento até o pão (com tudo o que ele significa). Encerraria a prédica retomando o texto em seu início: assim como os apóstolos, todos os que somos enviados somos chamados de volta para contar o que aconteceu (de bom e de ruim). Na volta, reanimamo-nos com a certeza da presença de Deus, ao mesmo tem em que somos alertados de que o que realmente importa não são os “milagres” que realizamos, mas a justiça, a paz e a comunhão que brotaram de nossa pregação/ação.
4. Auxílios litúrgicos
Confissão de pecados: Deus da graça e da misericórdia. Apesar de teu constante chamado e oferta, comportamo-nos ainda como rebanho que não tem pastor. Perdoa-nos por nossos ouvidos e corações fechados. Também muitas vezes, ó Deus, nos tornamos os falsos pastores ao ver a multidão sem rumo, descobrindo nela a oportunidade de exercer poder sobre alguém, para tirar vantagens. Diante de tua misericórdia sentimos profunda vergonha desse comportamento. Sabedores de tua graça ousamos aproximar-nos e implorar: Tem, Senhor, piedade.
Credo apostólico: Desafiar a comunidade a que se olhe nos olhos e confesse a fé, para que se descubram força e ânimo, que brotam do momento em que se tem a coragem de confessar a fé que se tem e tirar disso a conseqüência para as ações.
Oração de intercessão: Além das autoridades em todos os níveis (também da igreja), dos doentes, dos enlutados e dos demais carentes de intercessão, incluir:
– as multidões que correm atrás do primeiro ídolo que aparece, porque está carente sem saber definir do que;
– especialmente o povo que não pode sentir o abraço de uma comunidade cristã, no qual percebe o abraço carinhoso do Pai.
Bibliografia
GRUNDMANN, Walter. Das Evangelium nach Markus. Berlim: Evangelische Verlaganstalt,
1973.
SCHNIEWIND, Julius. Das Evangelium nach Markus. In: NTD 1. Göttingen: Vandenhoeck
& Rupprecht, 1952.
SCHWEITZER, Eduard. Das Evangelium nach Markus. In: NTD 1. Göttingen: Vandenhoeck
& Rupprecht, 1968.
ZIMMERMANN, Wolf-Dieter. Markus über Jesus. Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus, 1970.