Prédica: Zacarias 9.9-10
Leituras: Marcos 15,1-20 (21-39) e Filipenses 2.5-11
Autor: Valdemar Lückemeyer
Data Litúrgica: Domingo da Paixão
Data da Pregação: 09/04/2006
Proclamar Libertação – Volume: XXXI
1. Observações preliminares
Nosso texto já foi estudado duas vezes em Proclamar Libertação: vol. X, por Günter Wehrmann, onde é destacada a proposta pacifista do “rei que está vindo”, e vol. XIX, por Haroldo Reimer. Recorro a esses dois estudos, cito-os como freqüência neste auxílio agora elaborado, e mesmo assim, se houver tempo, recomendo sua leitura.
Já elaborei em outra ocasião um auxílio homilético no PL para o Domingo da Paixão ou Domingo de Ramos (PL XXVIII), onde levantei algumas perguntas em relação ao proprium desse domingo. Trago novamente essas perguntas e os comentários, hoje ampliados.
O domingo é o Domingo da Paixão (como prefere o Lecionário Ecumênico) ou é o Domingo de Ramos? A preferência pela definição e nomenclatura desse domingo coloca, a meu ver, o seu acento na mensagem. Não nos cabe delimitar ou excluir textos bíblicos indicados para leitura e pregação do domingo, mas há uma grande diferença, se, por exemplo, opto pela leitura “breve” ou “longa” do evangelho.
O Domingo de Ramos não tem recebido entre nós, nas comunidades evangélicas luteranas, o mesmo destaque e a mesma valorização como, por exemplo, na Igreja Católica. No entanto, dentro do ano eclesiástico, é um domingo especial, com sua mensagem específica. É o domingo que aponta para um “novo rei”, seu reinado, seu projeto de governo.
Por que não usar símbolos nesse domingo? Não sei até que ponto os ramos atualmente ainda ajudam a lembrar a recepção do rei. Que outro símbolo pode ser usado para apontar para a realeza, para o senhorio, para a autoridade “desse rei”? Bandeiras, bandeirolas, faixas? Ademais, como não temos entre nós a figura do rei, pouco sabemos a respeito dos símbolos que melhor caracterizam e identificam um rei.
O Domingo de Ramos é, em todos os casos, um domingo especial para a maioria da população. Ele é conhecido e é importante, pois inicia a semana mais marcante na vida de fé de nossa gente. Por isso, entre outras coisas, é tão importante trabalhar em toda a celebração desse domingo, no culto todo,
a tensão entre as duas (ou mais) compreensões da autoridade, do poder desse rei.
2. As duas leituras bíblicas
O evangelho, leitura “longa”, inclui não apenas o caminho de obediência e de humildade do rei, mas também o caminho da cruz, a sua crucificação. Caso o pregador opte pela leitura longa, e não apenas Mc 15.1-20, isso certamente deverá ser trabalhado na prédica.
A epístola, o conhecido Hino Cristológico, destaca a postura de servo humilde e obediente de Jesus, o Cristo, o Messias, o Rei justo. Jesus manifesta a sua realeza na postura de total esvaziamento de autoridade e de poder, e ele o fez para que Deus pudesse agir. Ele é o Servo de Deus através de quem Deus revela o seu poder, o seu plano, a sua vontade para com toda a humanidade.
3 .Leitura do texto – usando qual tradução?
Não considero necessário elaborar uma tradução própria, alternativa. O texto mais “tradicional” é a versão de João F. de Almeida, mas o de mais fácil compreensão, especialmente para quem apenas ouve a leitura do texto, é o da Tradução na Linguagem de Hoje. As considerações exegéticas apontarão para alguns detalhes importantes a serem observados.
4. Considerações exegéticas
v. 9: O anúncio é igual ao de um mensageiro enviado: ele tem uma mensagem importante para anunciar. O mensageiro vem com um convite para que toda a cidade de Sião/Jerusalém, isto é, seus habitantes, os filhos que nela vivem, expressem e manifestem sua alegria (por meio de dança, sugere o verbo) pelo que será anunciado e está por vir. A forma do anúncio é a mesma usada pelo mensageiro, que aponta para a vinda do governante soberano ou um hóspede ilustre. O novo, nesse caso, é que o mensageiro é o próprio Deus. Ele convida seu povo para alegrar-se, pois ele mesmo está agindo. Se Deus fala no “teu rei” e não no “meu rei”, é porque esse rei está destinado a ser o rei de Jerusalém, onde ele é aguardado há muito tempo. Os reis que cuidavam, que exploravam, que reinavam em Jerusalém não buscavam o bem do povo, mas sim o seu próprio bem. Jerusalém não era “sua” cidade, mas sua colônia, que exploravam. Contrapondo-se a essa realidade, consolida-se a esperança messiânica: Jerusalém terá o seu rei, que cuidará dela, de todos os seus habitantes.
O novo rei é caracterizado com algumas qualidades.
Justo: a tradução permite uma interpretação dupla. Ele é justo, porque a justiça de Deus o alcançou, ele foi beneficiado pela justiça de Deus; ou então com a interpretação ativa: ele é justo, trata todos com justiça, governa com justiça, exerce justiça.
Salvo: o novo rei experimentou ajuda, ele foi ajudado numa situação difícil, de onde saiu como vitorioso. E também essa característica pode ser traduzida na forma ativa: esse novo rei salva, ele ajuda (é salvador, cf. Almeida).
Pobre: várias traduções são possíveis para o referido termo em hebraico.Tendo em vista que ele descreve a entrada triunfal/a vinda triunfal do rei, recomenda-se a tradução que expressa a chegada desse rei, seja a de “pobre, humilde, modesto = pequeno” e não “manso” ou “brando”.
O rei vem montado em jumentinho. Quem usava essa montaria: o rei, a nobreza, os vitoriosos, ou então os humildes, os pobres? É animal de montaria dos que têm um certo “status” ou é animal de carga, de serviço? Opto pela interpretação que diz que jumentos eram animais de carga, usados para o serviço, ao passo que os cavalos eram usados para os carros de guerra e também como montaria para as batalhas.
v. 10: Quem é o sujeito da destruição/eliminação dos carros de guerra:
Deus ou o rei enviado? No original consta o verbo na 1ª pessoa do singular, portanto o sujeito é Deus. Mas já logo adiante, na segunda parte do versículo, volta o uso do verbo na 3ª pessoa: ele, o rei, é o sujeito da ação. Quase todos os comentaristas aceitam a correção da Septuaginta, que lê e traduz na 3ª pessoa do singular, isto é, o rei enviado por Deus eliminará carros de guerra e a cavalaria de guerra.
O seu anúncio de paz (= plano de governo) começa pela eliminação de todo o material bélico (carros, cavalos, armas), o que significa o fim da guerra e de toda violência. Não haverá interesse em subjugar e/ou dominar povos vizinhos, expandir fronteiras e assim por diante. Ele “anunciará” paz, promoverá a paz por meio da palavra, palavra criadora, promotora de vida – assim como em Gênesis Deus diz e surge a criação. Os atingidos e beneficiados com a sua promoção = paz serão todos os povos. O seu reino não terá limites (de mar a mar); ele será universal.
5. Estímulos
“A esperança pelo Messias da Justiça e Paz, em Zc 9.9,10, naturalmente não pode ser identificada com Cristo. Pois ela ainda tem suas limitações histórico-políticas. Mas ela transcende qualquer esperança particular. O Messias de Zc 9.9, embora seja descrito como rei, é tão singular e diferente de qualquer rei que já existia; sim, até é bem diferente dos famosos e piedosos reis Davi e Josias. Os dois ainda tinham poder e exércitos. Esse Messias, no entanto, esvazia-se de qualquer tipo de poder e ‘arma de morte’. Mais ainda: conforme esperanças messiânicas mais antigas, o Messias iria corrigir nações poderosas de sorte que convertessem suas espadas em arados e lanças em foices (Mq 4.3) e julgar os pobres com justiça (Is 11.4). No entanto, cf. Zc 9.9s, o próprio messias é sofredor e pobre. Ele mesmo é justificado e salvo e como tal promove justiça e paz, eliminando todo tipo de ‘arma de morte’. Esse Messias, por ser descrito como rei político e imanente – mas fraco, pobre, salvo e justo –, representa a mais ousada esperança.
Nesse sentido, o Messias aponta para o Cristo que nasceu pobre (Lc 2.7), que não tinha onde reclinar a cabeça (Mt 8.20), que se colocou primordialmente ao lado dos fracos e marginalizados, tendo comunhão de mesa com eles, e os aceitou (Mc 2.15), que sofreu a rejeição e condenação de todos na cruz. Mas Deus mesmo o salvou da morte ressuscitando-o; assim Deus o justificou diante do mundo. Ela é a nossa paz (Ef 2.14). Ele eliminará definitivamente o último inimigo, a morte com todas as suas manifestações (1 Co 15.26). Ele criará ‘novos céus e nova terra nos quais habita justiça’ (2 Pe 3.13). Esse novo que irrompeu no mundo vencerá. Por isso, não nos deixemos conformar com todo o sistema que promove e morte. Mas deixemo-nos inspirar pelo novo que Zc 9.9-10 sonhou e que em Cristo começou a irromper no mundo. Por isso sonhamos com um governo marcado pelo novo, tanto para o Brasil como para o mundo. Hoje queremos ver sinais concretos da nova justiça e paz, da vida boa que Deus quer para todos” (G. Wehrmann, PL X, pp. 99s).
“Em Jerusalém e no Reino do Norte desaparecerão as armas. O Messias que virá humilde e montado num jumento já não traz nenhuma conotação de poderio militar. Com a sua vinda, a guerra não será mais um objeto político. Seu propósito é desarmamentista, pacifista. Isso se evidencia também na frase (do Messias): ‘E ele falará (repetidamente) paz para as nações’. Poder-se-ia logo pensar em acordos e tratados de paz, como os que acontecem em nossos tempos. Mas aqui o texto procura sublinhar o poder da palavra, talvez como força capaz de persuadir e de convencer para a paz. Isso evoca qualidades messiânicas apresentadas em Is 11.4: ‘Com seus lábios ‘matará’ o perverso’. O objetivo dessa ação pacifista é a libertação (cf. v. 11). Aderindo a esse messias justo e protegido, pobre e nobre, que constitui uma revelação do Deus vivo, os outros povos talvez baixem as armas e entrem na ciranda do desarmamentismo. Assim esse Messias poderá ser o príncipe da paz, o Messias dos pobres, que não mais serão atropelados pela máquina da guerra” (Haroldo Reimer, PL XIX, p. 108).
“Na expectação do Messias, característica de fortes grupos do judaísmo da época, articulava-se a antiga concepção da monarquia teocrática com apenas leves retoques. Trata-se no fundo da esperança pela restauração do reino de Israel em sentido político (cf. Mc 11.10; At 1.6) com as respectivas implicações: Libertação do jugo estrangeiro, purificação de Jerusalém de todos os pagãos, castigo aos pecadores, reconstituição de Israel como santo povo de Deus. Seria o ungido descendente de Davi e, revestido do poder de Deus, esmagaria os ímpios. Obviamente, não seria o Messias rei qualquer. Na imaginação do povo, ele é o enviado de Deus que por isso será não só poderoso como também fará governo justo, trazendo a paz e erradicando o mal” (G. Brakemeier, Reino de Deus e Esperança Apocalíptica, p. 30).
6. A prédica (algumas ideias, alguns pensamentos, algumas sugestões)
* Há boas novas! Alegrem-se!
Ou será que não há mais motivo de esperança, razão para expressar alegria? Não há mais motivo para esperar por algo melhor, diferente, do que essa realidade que nos cerca, que tira o brilho da vida, sim, que mata a vida? Temos que nos conformar com o presente século?
* Duas notícias extraídas do jornal Zero Hora:
“Gastos militares mundiais superam U$ 1 trilhão em 2004! U$ 1 trilhão é o movimento mundial da indústria da corrupção!”
“Com 53,9 milhões de pobres, o equivalente a 31,7% da população, o Brasil aparece em penúltimo lugar em distribuição de renda entre 130 países. Pior que o Brasil, só aparece Serra Leoa.”
* É assim que Deus, o Criador, quer a vida para o seu povo? Deus aceita essa situação? Zc 9.9-10 é o brado do mensageiro de Deus que anuncia transformação radical. Deus tem uma nova proposta.
Domingo de Ramos – a cristandade celebra a “entrada triunfal do Rei Jesus em Jerusalém”. Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor!
* Estamos nos preparando para receber nosso rei = ele é humilde, esvazia-se de todo poder e pompa, é fraco. Nele e por meio dele Deus se revela inaugurando um novo tempo, um “novo mundo”.
* Ele promoverá a paz. A sua palavra é criadora. Destruição do armamento bélico, eliminação da violência e da agressividade – tudo isso é oferta do rei não apenas para Efraim e Jerusalém, mas é oferta para todos os povos. Schalom = paz, bem-estar, salvação, vida em abundância para todos, para todas as nações!
* O que Jesus fez entre o 1º e o 2º Adventos é apenas o início do cumprimento da profecia de Zc 9.9-10. A plenitude desse novo virá com o reino de Deus na sua presença total e definitiva. Agora ele aproximou as pessoas de Deus. Ele buscou os “afastados” para trazê-los de volta à casa do pai. Ele fez, por meio da sua morte, as pazes entre Deus e nós (Rm 5.11 e, em especial, 2.Co 5.18). Ele é a nossa paz!
Ele convida-nos a ser agentes, promotores dessa paz. Afinal, somos seus “súditos”, somos seus discípulos. Aprendemos com ele e “não podemos deixar de falar das coisas que vimos e ouvimos” (At 4.20).
Bibliografia
BRAKEMEIER, G. Reino de Deus e Esperança Apocalíptica. Editora Sinodal, 1984.
BREIT, H. und WESTERMANN, C. Die alt. Texte der vierten Reihe, Calwer Predigthilfen, Stuttgart, 1. ed., 1963, pp. 97ss.
GORGULHO, Gilberto. Zacarias: a vinda do Messias pobre. Comentário Bíblico, Editoras Vozes, Metodista e Sinodal,1985, pp. 89ss.
REIMER, Haroldo. In: Proclamar Libertação, vol XIX, edit e coord. Edson Streck e Nelson Kilpp, Editora Sinodal, 1993, pp. 106ss.
WEHRMANN, Günter. In: Proclamar Libertação, vol. X, coord. Nelson Kirst, H. Malschitzky e M. Schwantes, Editora Sinodal, 1984, pp. 91ss.