Proclamar Libertação – Volume 33
Prédica: Marcos 16.12-18
Leituras: Atos 4.32-35; 1 João 1.1-2.2
Autor: Carlos Luiz Ulrich
Data Litúrgica: 2º Domingo da Paixão
Data da Pregação: 19/04/2009
1. Introdução
Estudiosos da Bíblia (exegetas) afirmam que o texto de Marcos 16.9-20 não é de Marcos. Essa perícope existia à parte, sendo um dos relatos pós-pascais. Esses versículos somente mais tarde foram anexados ao final do Evangelho de Marcos, quem sabe para atenuar a maneira brusca e incomum com que o evangelista encerra sua obra. O texto indicado de Marcos 16.12-18 para a pregação faz parte de um acréscimo posterior. Não pretendo, no entanto, discutir o problema do final canônico do livro de Marcos. Sobre o assunto sugiro a leitura do texto de Carlos Musskopf, Proclamar Libertação, v. VIII, p. 173, 1982. Vou me limitar a dar algumas explicações necessárias para melhor entender o texto, tendo como objetivo a meditação e pregação do mesmo no culto.
2. Reflexão exegética
Apesar do texto ser um acréscimo posterior à obra de Marcos, ele está em íntima sintonia com a mensagem do evangelho. Podemos dividir o texto de Marcos 16.12-18 em três cenas: a aparição de Jesus, a incredulidade dos discípulos e o mandato de Jesus aos discípulos.
16.12 – aparição do Ressuscitado a dois discípulos;
16.13 – demais discípulos não dão crédito;
16.14 – aparição do Ressuscitado aos onze discípulos – censura à incredulidade dos mesmos;
16.15-16 – envio a todo o mundo;
16.17-18 – sinais que acompanham os enviados e enviadas.
O texto indicado para a pregação aponta para a aparição do Ressuscitado, primeiramente a dois discípulos que “estavam de caminho para o campo” (Mc 16.12), que não foram ouvidos, e depois Jesus apareceu aos onze, quando estavam à mesa (Mc 16.14). Percebem-se semelhanças com o texto de Lucas 24.13-35, aparição de Jesus aos discípulos que estavam a caminho para Emaús e sua revelação quando estavam à mesa no partir do pão.
A cena do texto também aponta para a incredulidade dos discípulos, tendo paralelos com os outros evangelhos. O v. 14, no entanto, chama a atenção, pois Jesus repreende com muita ênfase a falta de fé dos discípulos: “e censurou-lhes a incredulidade e dureza de coração, porque não deram crédito aos que o tinham visto já ressuscitado”. Os discípulos demonstram dureza em crer no Ressuscitado. Qual é a razão dessa falta de fé na ressurreição? Alguns dos discípulos que seguiram Jesus acreditavam que ele era um dirigente político-religioso. Judas Isacariotes, possivelmente um zelote, acreditava que Jesus tinha se desviado do movimento revolucionário. Quem sabe, Judas foi o primeiro que tomou consciência de que Jesus era o Messias e, por isso, seu suicídio seja a primeira e mais trágica confissão cristológica que temos (ARAYA, 1988, p. 228). Da mesma forma, Pedro fica desiludido e diz não conhecer Jesus, negando-o três vezes. As esperanças dos discípulos resumiam-se às transformações socio-politico-econômicas. Por isso é tão difícil crer no Ressuscitado. Não conseguem ver além da realidade que os circunda. Falta a utopia da ressurreição em suas esperanças. Assim como afirma o apóstolo Paulo em 1 Coríntios 15.19: “Se a nossa esperança em Cristo se limita apenas a esta vida, somos os mais infelizes de todos os homens”.
Jesus, portanto, censura a incredulidade dos discípulos, apontando para a continuidade da missão do Ressuscitado. Jesus envia os discípulos, tirando-os da inércia, colocando-os em ação a favor da vida: “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura” (Mc 16.15). A narrativa do v. 15 é parecida com o relato de Mateus 28.18-20, no qual se enfatiza a proclamação do evangelho para todas as nações, segundo Marcos, para todo o mundo. Percebe-se aqui a universalidade do evangelho. É para todo o mundo. Para essa tarefa é necessária a atuação dos discípulos. No discipulado vê-se a continuidade da ação de Jesus. A história de Jesus Cristo continua no testemunho e na atuação da comunidade. Inicia o tempo de atuação da comunidade cristã. Em Marcos 1.14, “Jesus foi para a Galiléia, pregando o evangelho de Deus”. A seguir, encontram-se em Marcos 1.16-20 o chamado e a vocação dos discípulos para ser “pescadores de pessoas”. O evangelho conclui com Jesus enviando os discípulos a todo o mundo para proclamar a boa-nova do evangelho. A tarefa da comunidade cristã são a ressurreição e a vida, proclamados e vivenciados pelo Cristo.
O v. 16 enfatiza o resultado do anúncio: “Quem crer e for batizado será salvo; quem, porém, não crer será condenado”. O Evangelho de Marcos afirma a centralidade do crer. Não basta o Batismo; é necessário crer na boa-nova do evangelho. O anúncio provoca decisão: crer ou não crer. Também aqui encontramos paralelos com o início de Marcos 1.15: “(…) o tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo; arrependei-vos e crede no evangelho”. A pregação de Jesus leva as pessoas à resposta na fé; o anúncio dos discípulos tem como resultado provocar a fé, que conduz à salvação. É necessária a vivência diária do Batismo; “por arrependimento diário, a velha pessoa em nós deve ser afogada e morrer com todos os pecados e maus desejos. E, por sua vez, deve sair e ressurgir diariamente nova pessoa, que viva em justiça e pureza diante de Deus e das pessoas” (explicação de Martim Lutero sobre o Batismo no Catecismo Menor).
Os discípulos são enviados por Jesus a todo o mundo para anunciar a boa-nova. Jesus capacita-os para a missão. Os v.17-18 apontam para os sinais que acompanharão os enviados e enviadas e aqueles que creem em Jesus; isto é, todas as pessoas que forem aderindo à nova proposta de vida, proclamada pelo Ressuscitado. O evangelho aponta para os seguintes sinais: “expelirão demônios; falarão novas línguas; pegarão em serpentes; e, se alguma coisa mortífera beberem, não lhes fará mal; se impuserem as mãos sobre enfermos, eles ficarão curados” (Mc 16.17-18).
Os dois primeiros sinais – “expelir demônios e falar novas línguas” – mostram que a ação dos discípulos é libertadora, curadora e comunicadora do mundo novo. O primeiro milagre que Jesus realiza em Marcos 1.21-28 é a cura de um endemoninhado. Jesus liberta o homem, anunciando a vitória da vida. Jesus inaugura uma nova linguagem: a do amor. Assim devem fazer todas as pessoas que têm fé em Jesus: libertar as pessoas de todo tipo de alienação. Falar em novas línguas significa ampliar o horizonte, buscando a compreensão com as outras pessoas. Para anunciar o evangelho a todo o mundo, faz-se necessário conhecer novas línguas, novos costumes… É necessário um processo de inculturação.
O terceiro e quarto sinais – “pegarão em serpentes; e se alguma cousa mortífera beberem, não lhes fará mal…” (v.18a) – apontam para os confrontos e conflitos suscitados pela fé. Quem anuncia o projeto de vida do Cristo Ressuscitado sofre perseguições, oposições de formas traiçoeiras (serpentes) ou evidentes e abertas (tentativa de matar os enviados – discípulos). Com o próprio Jesus isso aconteceu: fariseus e herodianos conspiram a morte de Jesus (Mc 3.6). Os discípulos também sofrerão perseguições. Deus, no entanto, não permitiu que a morte de Jesus tivesse a última palavra, e sim a ressurreição. Dessa forma, todos os que creem têm a promessa da vida eterna.
O quinto sinal – “se impuserem as mãos sobre os enfermos, eles ficarão curados” (Mc 6.18b) –, à semelhança do primeiro sinal – “expelirão demônios” – , coloca os discípulos em estreita comunhão com a atuação de Jesus, colocando-se ao lado dos sofredores, curando-os (Mc 1.34, Mc 1.40-45…). A missão dos discípulos e discípulas coloca-se na continuidade histórica da missão do Cristo crucificado e ressurreto.
3. Meditação
A pregação para o 2º Domingo da Páscoa, também conhecido como Domingo da Misericórdia, indica a nós o caminho da misericórdia de Deus, apontando para a alegre notícia da ressurreição. Necessita, portanto, ter relação com o tempo litúrgico e com os outros textos indicados para a leitura: Atos 4.32-25 e 1 João 1.1-2.2.
O Ressuscitado revela-se aos discípulos em dois momentos: quando estavam a caminho do campo e à mesa. O caminho – revela o movimento da comunidade e o estar à mesa – lembra a comunhão do partir do pão – da Ceia. A revelação do Ressuscitado sempre se dá no coletivo, primeiramente a dois discípulos e depois a onze discípulos. O que ressalta no texto é a chamada de atenção que Jesus dá aos discípulos: “Censurou-lhes a incredulidade e a dureza de coração, porque não deram crédito aos que o tinham visto já ressuscitado” (Mc 16.14). Essa censura também alcança cada um de nós. Cremos no Ressuscitado? Como Jesus se revela hoje em nosso meio? A Palavra e os sacramentos (Batismo e Ceia) são importantes em nossa vivência comunitária? Anunciamos a vida nova, revelada por Jesus?
No Evangelho de Marcos, Jesus apresenta-se anunciando o evangelho (Mc 1.14). Os discípulos irão, portanto, dar sequência ao que Jesus fez, ampliando o campo de ação. (Em Mc 1.14, Jesus anuncia na Galileia; em Mc 16.15, os discípulos deverão anunciar o evangelho a todo o mundo.) A partir do testemunho e da atuação dos discípulos firma-se a igreja cristã. O anúncio provoca decisão: crer ou não crer. O v. 16 enfatiza o resultado do anúncio – a fé. A pregação de Jesus leva as pessoas à resposta na fé; o anúncio dos discípulos tem como resultado provocar a fé que conduz à salvação: “Quem crer e for batizado será salvo. Quem não crer será condenado” (v. 16). Precisamos viver como pessoas batizadas, que se arrependem todo dia, nascendo diariamente como pessoas agraciadas pelo Deus do perdão e da misericórdia. O Lutero sempre dizia nos momentos de tentação: “Sou batizado!” Sou filho e filha de Deus.
A história de Jesus continua no testemunho e na atuação missionária da comunidade… “Ide a todo o mundo”. Os discípulos precisam anunciar o evangelho a todos (v.15-18), exatamente como Jesus tinha feito. Não deve haver ruptura entre a missão de Jesus e a missão dos discípulos. Os sinais que acompanharão os discípulos no anúncio do evangelho apontam para a continuidade da presença amorosa e libertadora de Jesus na atuação missionária dos enviados. Assim deverão fazer os que tiverem fé em Jesus: libertar as pessoas de todo tipo de alienação, apontando-lhes o verdadeiro sentido da existência, que se mostra no Deus gracioso que resgatou Jesus da morte.
A ressurreição é o anúncio da vida que vence a morte. A ressurreição fala do poder de Deus. É a esperança contra toda a esperança. É justamente isso que afirma o texto de 1 João 1.1-2.2: “O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios olhos, o que contemplamos, e as nossas mãos apalparam, com respeito ao Verbo da vida (…) o que temos visto e ouvido anunciamos também a vós outros” (….). A carta de João anuncia com alegria o Verbo, a Palavra que se fez vida. A alegria torna-se completa com sua ressurreição, surgindo uma nova forma de organização – a comunidade cristã: “(…) pois nenhum necessitado havia entre eles (…) distribuíam a qualquer um à medida que alguém tinham necessidade” (At 4.35). A comunidade que vive a partir do anúncio do Ressuscitado é missionária e diacônica. Ela se transforma e se deixa transformar, pois depende unicamente do Deus da misericórdia, da graça e do amor.
4. Imagem para a prédica
Ler o texto de forma pausada, apontando para os movimentos e atuações – Jesus ressuscita, revela-se no caminhar coletivo (duas pessoas) e no encontro comunitário (quando os onze estavam à mesa) – Mc 16.12-14.
Chamada de atenção – incredulidade – coração duro. Temos também nós um coração duro? O que nos torna incrédulos? O que nos torna crentes na ressurreição? – Mc 16.14.
Recordação do Batismo – ênfase no crer, na vivência diária do Batismo – Mc 16.16.
Tal qual os discípulos, somos enviados ao mundo a todos os lugares – acompanhados dos sinais que produzem cura, libertação, vida e amor (Mc 16.17-18), mostras da graciosa misericórdia de Deus.
Sugiro utilizar como exemplo para a pregação a pipoca (grãos e estouradas). Um pequeno texto de Rubem Alves para ajudar na reflexão:
“Repentinamente, os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes transformavam-se em flores brancas e macias, que até as crianças podiam comer. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e de uma dureza assombrosas. Na simbologia cristã, o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho da pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro” (Rubem Alves).
Ser discípulo e discípula de Jesus é deixar-se transformar. É saber-se embalado pela fé na ressurreição, na vida transformada, na vida que vence a morte. É vencer todo dia a incredulidade, a dureza de coração… Quem experimentou a presença do Ressuscitado, quem vive diariamente seu Batismo, anuncia, em palavras e ações, essa experiência transformadora a todo o mundo. O Ressuscitado revela-se em nosso caminhar coletivo, comunitário, solidário… Na Palavra e nos sacramentos. É o que também vamos vivenciar, hoje, na celebração da Ceia.
5. Subsídios litúrgicos
Na minha incredulidade:
Converte-me, Senhor
Se meu passo é errante,
converte-me, Senhor;
Se minha fé é débil,
converte-me, Senhor;
Se minha mente é estéril,
converte-me, Senhor;
Se minhas mãos são rudes;
converte-me, Senhor;
Se meus olhos são ferozes,
converte-me, Senhor;
Se minha língua é cruel,
converte-me, Senhor;
Se minhas intenções são más,
converte-me, Senhor;
Se meu coração é fraco,
converte-me, Senhor;
Converte-me, Senhor, e serei o que realmente sou.
(Luiz Carlos Ramos, Quaresma e Páscoa, CultoArte, p. 81)
6. Preparando a celebração da Ceia
Senhor,
A tua mesa é farta e santa.
Que nossa bondade seja tanta
Ao repartir, com alegria, o pão,
O vinho e a ternura do perdão.
Senhor,
A tua mesa é justiça-em-esperança.
Que na força dessa aliança
A nossa vida seja a Eucaristia
E o teu reino se faça dia a dia.
Senhor,
A tua mesa é anúncio da graça.
É também denúncia da desgraça
Que no mundo-novo-em-construção
Não nos encontre na omissão.
Coloca-nos em ação.
Amém.
(Carlos Alberto Rodrigues Alves, Quaresma e Páscoa, CultoArte, p. 89)
Bibliografia
ALVES, Rubem (Org.). CultoArte: Quaresma e Páscoa. Petrópolis: Vozes; Campinas: CEBEP, 2001.
ARAYA, Eugenio. Marcos 16.9-14(15-20). In: KILPP, Nelson; TREIN, Hans Alfred. Proclamar Libertação. v. XIV. São Leopoldo: Sinodal, 1988. p. 225-232.
LUTERO, Martim. Catecismo Menor. 4. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2001. p. 18.
MUSSKOPF, Carlos. Marcos 16.9-14(15-20). In: DREHER, Carlos A; KIRST, Nelson. Proclamar Libertação. v. VIII. São Leopoldo: Sinodal, 1982. p. 173-178.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).