Proclamar Libertação – Volume 35
Prédica: Jeremias 31.7-4
Leituras: João 1. (1-9) 10-18 e Efésios 1.3-14
Autor: Haroldo Reimer
Data Litúrgica: 2º Domingo após Natal
Data da Pregação: 02/01/2011
1. Introdução
O ‘espírito’ deste domingo certamente está carregado com a virada de ano. Na comunidade, houve possivelmente alguma celebração de véspera de ano novo. Talvez no próprio dia de ano novo, a comunidade tenha se reunido em culto. Pode, assim, ter havido assiduidade maior aos eventos celebrativos na igreja. Para muitos, contudo, as emoções dos últimos dias talvez tenham sido marcadas somente por fogos, festejos, bebidas, programas televisivos, enfim, essas coisas profanas que as pessoas costumam fazer na virada do ano.
No conjunto dos textos, há certa continuação com o espírito de Natal.
O texto do Evangelho de João celebra o Verbo encarnado, enfatizando a sua constante presença em meio à história humana. Destaca-se, em especial, o
plano eterno ou a vontade de Deus de fazer das pessoas filhos e filhas de Deus (v. 12), esperando a resposta às suas manifestações.
O trecho da Carta aos Efésios destaca o louvor por causa do amor de Deus em fazer das pessoas filhos e filhas dele. A filiação divina é motivo para a ação de graças e louvor. O texto indica para elementos que se tornaram ‘dogmáticos’, tais como o estar sentado à direita. Esse tema, em si, remete aos chamados ‘salmos messiânicos’ (Sl 2; 46; 72; 110).
Em conjunto com essas leituras, o texto previsto de Jeremias 31.7-14 ganha em destaque. Ele afirma a boa-nova do cuidado de Deus para com as pessoas feridas, machucadas, deslocadas e deportadas. Antevê-se a chegada ao monte Sião como momento de grande alegria. Com a indicação para “trazer de volta” (v. 8), o tema da conversão (dar meia-volta) marca presença.
2. Exegese
O livro canônico de Jeremias é resultado de um complexo processo de transmissão, redação e composição. Isso já se depreende do fato de ser, depois dos Salmos, o segundo livro mais volumoso da Bíblia. Ele tem estrutura e composição diferenciadas na versão do cânone hebraico e do cânone grego da Septuaginta. A versão grega realizou vários rearranjos na sequência dos textos da versão hebraica, além de ser mais breve do que o suposto original hebraico (a versão hebraica tem 1/7 a mais de texto).
Na base do livro estão certamente palavras, eventos, sinais, ações simbólicas relacionadas com a figura histórica do profeta Jeremias, o qual dá nome ao livro. A atuação desse profeta costuma ser localizada ao longo do período entre o ano 626 a.C., em que se situa sua vocação profética, e os anos posteriores à destruição de Jerusalém, em 587 a.C., quando ocorreu a destruição dessa cidade e a deportação. Esse Jeremias teria atuado por mais de 40 anos, com conteúdos diferenciados em sua mensagem, vindo a encontrar a morte no Egito, para onde foi levado por companheiros após o colapso da capital do reino. O período de governo do rei Josias, tido em grande estima pelos autores deuteronomistas, é acompanhado com silêncio e elogio, vindo sua crítica a desabrochar novamente após a morte do rei.
Um dos temas marcantes no conjunto da mensagem do profeta Jeremias é o anúncio da atuação do Deus Yahveh na história do povo hebreu. Jeremias situa-se na linha da chamada profecia radical ou crítica, que tem em Amós, Isaías e Miqueias precursores importantes. Especialmente na linha do profeta Isaías (1-39), Jeremias anuncia aos habitantes de Jerusalém e Judá que não se deve confiar em alianças políticas com os babilônios, mas colocar a confiança unicamente no Deus Yahveh. Faz isso pelo motivo de que os povos mesopotâmicos seriam braço estendido ou o “cálice da ira” de Deus (Jr 25.15s.) para fazer justiça entre o seu próprio povo (Is 10.5; Jr 36). Esse anúncio foi dirigido por Jeremias de diferentes formas a seus contemporâneos, gerando, não raro, reações que o levaram à prisão (Jr 36.29), o que origina também muitas lamentações desse profeta. O relato de vocação estilizado em Jr 1.4-10 indica quatro verbos para caracterizar o aspecto negativo da mensagem (arrancar, derrubar, destruir, arruinar – v.10) e dois verbos de conotação positiva (edificar, plantar), prevalecendo, pois, o aspecto do anúncio de juízo ou desgraça. O sujeito das ações dos verbos, contudo, não é Jeremias, mas na maioria das 85 ocorrências é o próprio Deus.
Por estarem situados numa linha crítica, palavras e relatos de gestos simbólicos devem ter sido acolhidos e transmitidos por simpatizantes e seguidores que formaram o grupo de suporte de Jeremias. O texto de Jeremias 26 é muito elucidativo a respeito. O “povo da terra” fez memória de palavras críticas de Miqueias, que atuou décadas antes de Jeremias. Esse grupo do povo da terra também pode ser concebido como transmissor de palavras de Jeremias. Assim, fragmentos diversos da mensagem de Jeremias lograram sua transmissão até o período posterior à destruição de Jerusalém.
No período do pós-exílio, a profecia crítica passa por um processo de seleção e colecionamento, gerando uma transformação que situa Jeremias e outros profetas bíblicos como “profetas verdadeiros”. A base para a releitura é provavelmente uma codificação relativa à atividade profética, que se encontra em Deuteronômio 18.15-20 (cf. PL 31, p. 52-56, e PL 33, p. 92-100). Esse texto determina que o critério para a determinação da profecia verdadeira é seu cumprimento. Ora, o anúncio da destruição feito por Jeremias havia se realizado, inclusive com os agentes históricos previstos. Com isso as palavras de Jeremias convertem-se em profecia verdadeira. O processo de colecionamento e reelaboração das palavras de Jeremias, bem como de outros profetas, é atribuído a ‘círculos deuteronomistas’. Esses realizaram as releituras sob o prisma das leis deuteronômicas, que realçam especialmente a adoração exclusiva ao Deus Yahveh (monoteísmo), a centralização do culto em Jerusalém, a ausência de imagens (aniconismo) e o cuidado com os empobrecidos.
Da pena dos redatores deuteronomistas provêm provavelmente várias das perícopes que se encontram no chamado “livro da consolação” em Jeremias 30-
31. O nome ‘consolação’ deriva do fato de que os textos aqui agrupados, provavelmente de origem diversa, têm no anúncio de salvação seu ponto de cristalização.
O texto de Jeremias 31.7-14 tem conteúdo eminentemente salvífico, isto é, de anúncio de graça. O tema que perpassa a perícope é o anúncio de que os outrora deportados para as terras do norte haverão de ser reunidos e trazidos de volta à sua pátria, Judá.
Inicialmente, há um imperativo hínico. Um grupo nominalmente não-definido é conclamado a louvar a Jacó e a exultar por causa da “cabeça das nações”. O motivo do louvor são ações (futuras) de salvamento a serem realizadas pelo próprio Deus Yahveh. Esse reunirá e salvará o “resto” de seu povo. O termo
‘resto’ tem sentido aberto; aqui provavelmente se refere aos cegos, aleijados, mulheres grávidas e às de parto (v. 8); pode, contudo, também designar aquela parte do povo que foi deportada para a Babilônia; no caso, a antiga elite, agora na condição de empobrecidos. De qualquer forma, “chegar em casa”, “voltar ao lugar de origem” é o tema da perícope. A visão da fartura de bens materiais na chegada é sedutora.
Com o esboço desse idílio do regresso, o texto de Jeremias 31.7-14 situa-se nas proximidades de textos do chamado Dêutero-Isaías (40-55), em que o cuida- do especial de Deus para com os regressantes, em especial com os mais fracos (Is 40; 43; 55). Por isso a origem do texto em tela deve ser situada em contexto do exílio; nesse contexto, também se realizam as releituras para redefinir a própria imagem de Deus.
3. Meditação
As imagens sedutoras do regresso com a abastança na chegada buscam cativar os que estão dispersos a dar ouvidos aos mensageiros do Deus Yahveh e a colocar nesse a sua confiança. Há a necessidade de um “trabalho retórico” para promover mudanças nos ouvintes ou interlocutores. Pois, a partir da boca de Jeremias, havia saído o anúncio do juízo com guerras, mortes, deportações. A desolação já havia se instalado. Para os que sofreram as consequências da desgraça, a crise teológica e existencial era ver no próprio Deus o autor dos referidos eventos. Agora se tratava de modificar essa imagem de Deus: “aquele que espalhou a Israel o congregará e o guardará, como o pastor, ao seu rebanho” (v. 10). Por isso no texto há ênfase em mostrar o Deus Yahveh como um Deus que cuida, zela e protege. Isso não é um traço novo na imagem de Deus, pois muitos textos, especialmente do livro de Deuteronômio (15; 22), mas também de profetas como Oseias (3.1-5;11) ou mesmo dos Salmos, já mostram essa dimensão do Deus que cuida dos mais fracos e pobres.
No sentido do cuidado, destaca-se a imagem do Deus pastor (v. 10), a qual junto com a referência aos ribeiros de água (v. 9) remete para o conhecido Salmo 23.
Outra imagem é a do Deus pai (v. 9). Nessa imagem, parece-me haver um diálogo à distância com palavras proféticas de Oseias 1-2, nas quais se fala do rompimento da relação paterna com os filhos tidos como da prostituição. A indicação para a primogenitura de Efraim e a condição de filho de Israel remete diretamente para Oseias 11, embora nesse texto possa haver elementos maternos na imagem de Deus. Tradições do norte podem estar presentes aqui.
Essas duas referências conectam-se com a dimensão das atribuições divinas. No curso da construção da religião de Israel houve, especialmente no século VIII com a profecia de Oseias, uma discussão sobre quem é responsável pelas dádivas e bênçãos da natureza. No imaginário popular, dentro de uma matriz politeísta como era a do Oriente Próximo naquele período, atribuíam-se ao Deus cananeu Baal as dádivas da fertilidade do solo e dos ventres. Contra isso se insurge o profeta Oseias, propagando a mensagem de que por trás das dádivas da terra e dos ventres está o próprio Deus Yahveh, o qual deveria ser venerado como o verdadeiro doador desses bens. Correr atrás de outros deuses, como Baal ou Asherah, para prestar-lhes agradecimento, passou a ser rotulado como ‘idolatria’ (Os 2.4-11). No texto de Jeremias, essa polêmica já está pacificada no sentido de se mostrar que, no regresso da dispersão, Deus haverá de prover a abundância dos bens da terra (cereal, vinho, azeite, cordeiros, bezerros etc.). Esses são identificados como “bens do Senhor” (v. 12).
O acesso a esses “bens do Senhor”, que promovem fartura, satisfação, conduzem para a alegria e o folguedo de danças. Mulheres jovens (virgens) e pessoas idosas celebrarão de alegria, porque a sua situação foi revertida. Aqui se pode pensar em textos do livro de Lamentações, no qual mulheres lamentam a má sorte e a desgraça da gente de Jerusalém, causando dor e lamento para as “filhas de Sião”. A tristeza de outrora será transformada em regozijo e alegria (v. 13). Até os sacerdotes são incluídos na cena da abastança de comidas. Haverá “carnes gordas” (um bom churrasco) para os responsáveis pelo culto e santuário. Assim, todo o povo poderá gozar da abastança.
A localização dessa cena futura de bem-estar “nas alturas de Sião” é significativa. Com isso o texto está sintonizado com uma série de outros textos de caráter messiânico, nos quais a peregrinação a Sião é tema central (Is 2.1-4; Mq 4.1-5; Is 11). Isso evidencia a perspectiva judaíta presente no texto. Embora haja referência a Jacó, que remete para a realidade das tribos e do reino do norte, o alvo da cena futura de bem-aventurança é o monte Sião. Isso denota claramente traços da teologia deuteronomista. Essa insiste em afirmar que o Deus Yahveh é uno e responsável pelas mais diversas dimensões da vida, incluindo os bens da terra, a fertilidade dos ventres e a decorrente abastança. Com isso se constrói uma imagem de Deus mais complexa e inclusiva, mas que revela claramente a perspectiva monoteísta na fase conclusiva da história da religião do antigo Israel (REIMER, 2009). Sião ou Jerusalém é o ponto de convergência da bem-aventurança futura. A menção dos sacerdotes, e com eles a alusão ao templo, pode provavelmente remeter para as expectativas e propagandas para a reconstrução do templo no período do pós-exílio, como se pode ler muito bem nas palavras de Ageu. Esse conclamou para a reconstrução do templo, dizendo que por meio de tal realização haveria a possibilidade de bênçãos para todo o povo. Também trechos de Malaquias são ilustrativos nesse sentido, especialmente o conhecido texto de Malaquias 3.7-10, que também apresenta visão de abastança das bênçãos de Deus, embora condicionando a mesma à regularidade das ofertas e dízimos para o “tesouro da casa do Senhor” (v. 10). O bem-estar, também e em especial de ordem material, será indicativo para a presença de Deus na vida e na história. Isso é o traço messiânico no texto. A presença de Deus manifesta-se no abrigo solidário dos mais fracos.
4. Imagens para a prédica
Como o texto de pregação projeta uma imagem de bem-aventurança futura, eu experimentaria a pregação nessa mesma lógica.
Os textos de leitura, juntamente com o próprio contexto da celebração de culto, já asseguram os contornos dogmáticos: Deus encarnado, Jesus sentado à direita de Deus para fazer justiça etc. Poder-se-ia indicar rapidamente para diversas imagens de Deus: Deus que salva (êxodo), Deus que faz justiça (Is 3.12-15; 10.1-3); Deus que fere e mata; Deus que dispersa (profetas); Deus que sara e cuida etc.
A cena que eu esboçaria na pregação seria uma confraternização na comunidade. A referência seria a alegria da reunião após vivências de dispersão. Indicaria para a dispersão dos evangélico-luteranos no contexto brasileiro; para a dispersão dos membros da igreja no contexto das cidades; o afastamento por causa de processos sociais e econômicos (desemprego, doença, empobrecimento etc.). Se a imagem de bem-aventurança esboçada no texto será realidade, isso dependerá de passos concretos. Em nosso país, nos últimos tempos, tem havido muitos programas geradores de bem-estar nas famílias e para o povo mais pobre. A comunidade de fé deve participar desse processo, não imitando simplesmente os programas públicos, mas fazendo os seus programas. Igreja e comunidade, em muitos lugares, além de espaços de proclamação da Palavra, têm sido, infelizmente, espaços excludentes em termos sociais. Por isso projetaria a imagem de reuniões de comida na comunidade a preços bem acessíveis, convidando especialmente aquelas pessoas que não têm condições econômicas para fazer grandes despesas num evento da comunidade. Sendo integradas na comunidade, sentindo-se acolhidas, essas pessoas contribuirão para o bem-estar da comunidade. “Cuidar do bem da igreja” não consiste somente nas finanças comunitárias em dia, mas no fluir de pessoas no espaço comunitário, na dinâmica inclusiva do reino de Deus. A comunhão de pessoas diferentes em torno dos “bens do Senhor”, tanto a feijoada comunitária como a Santa Ceia, será efetivamente sinal da presença de Deus.
5. Subsídios litúrgicos
A sopa comunitária
Numa certa localidade apareceu uma pessoa que se instalou na praça central do lugar. Ali, para o espanto de muitos, fez um fogo e começou a cozinhar uma sopa. Para a admiração geral, porém, no caldeirão não havia mais do que água e pedras.
Diante da admiração por essa estranha refeição, várias pessoas que passavam por ali espontaneamente foram dizendo que poderiam colaborar com alguma coisa da sua casa para melhorar aquela sopa. Assim, alguns trouxeram batatas, outras, cenouras, ainda outras, um pouco de arroz, um pedaço de carne, sal e temperos. Cada pessoa que se sentia tocada trazia alguma coisa para ‘engrossar’ a sopa, temperá-la, dando-lhe sabor e consistência. Até sobremesa e bebida alguém acabou trazendo.
Aquela estranha pessoa ia mexendo a sopa. Após algum tempo, a sopa estava pronta. Acabou virando uma ‘supersopa’, demais para uma só pessoa. Assim aquele estranho e bizarro homem convidou todos para um banquete na praça. A sopa de água e pedra individual transformou-se em um farto e diversificado banquete comunitário.
Poema “Esperança”
Mário Quintana
Lá bem no alto do décimo-segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenes
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
– Ó delicioso voo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada.
Outra vez criança…
E em torno dela indagará o povo:
– Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!),
Ela lhes dirá bem devargarzinho, para que não esqueçam nunca:
– O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA…
Bibliografia
REIMER, Haroldo. Inefável e sem forma. Estudos sobre o monoteísmo hebraico. São Leopoldo: Oikos; Goiânia: PUC, 2009.
MEYER, Ivo. O livro de Jeremias. In: ZENGER, Erich e outros. Introdução ao Antigo Testamento. Tradução de Werner Fuchs. São Paulo: Loyola, 2003. p. 398-420.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).