Proclamar Libertação – Volume 35
Prédica: João 7.37-39
Leituras: Números 11.24-30 e 1 Coríntios 12.3b-13
Autora: Iára Müller
Data Litúrgica: Domingo de Pentecostes
Data da Pregação: 12/06/2011
1. Introdução
O Domingo de Pentecostes é uma das datas mais importante da cristandade. Ali o Espírito de Deus transborda, alastra-se, espraia-se, não se contém mais e transforma a realidade. Ali um mistério se inicia, e quem nele crê não se cansa de proclamar. É uma responsabilidade grande pregar nesse dia e fazer com que a comunidade sinta que o Espírito também é concedido a ela para grandes e pequenas transformações.
As leituras previstas – Números 11.24-30, 1 Coríntios 12.3b-13 e João 7.37-39 – têm uma relação significativa entre si. Números faz alusão ao tempo de Moisés, tempo em que ainda se vivia em tendas, e como o Espírito pousou sobre os setenta anciãos e depois repousou sobre Medade e Eldade, e esses não pararam de profetizar. Coríntios também faz alusão ao Espírito, que, quando é concedido, leva a profetizar, a servir, a fazer milagre, a falar e a interpretar línguas, dons muito diferentes, mas cada um com um fim proveitoso. E nosso texto da pregação não fala de outra coisa: Jesus anuncia que aquele que receber o Espírito será como uma fonte, que jorrará em favor de um mundo mais misericordioso. Três textos sob medida para o Domingo de Pentecostes, pois se entrelaçam, complementam e dão respaldo coerente para a pregação.
É importante saber que há cinco auxílios homiléticos no Proclamar Libertação VI, XII, XVI, XXII e XXVIII sobre esse texto, e sugiro que, ao preparar a pregação, na medida do possível sejam lidos, pois cooperam grandemente para a compreensão do cenário em que ocorre o texto a ser pregado neste domingo. Eles também esclarecem uma questão problemática de tradução do grego, a qual vou me abster de discutir, pois neles há argumentos sufi cientes para fazer uma opção clara. Fico com a tradução de Lutero e Almeida, como fez o P. Kunert no PL 28.
2. Exegese
Há um contexto e uma trama a serem compreendidos aqui. Jesus foi à Festa dos Tabernáculos em Jerusalém, mas não foi sem a preocupação de passar despercebido nos primeiros dias da festa. Foi como clandestino, sozinho. Os discípulos foram antes. A festa durava mais dias, e temos certeza de que esteve por lá, pois até ensinou no templo, mas não atraiu publicidade sobre si mesmo, somente no último dia. Ele sabia que havia pessoas querendo matá-lo.
Havia cochichos sobre ele. Não há consenso sobre o que falavam de Jesus. Uns o admiravam, outros queriam eliminá-lo. Os que o admiravam baseavam-se nos sinais que haviam visto: milagres, compaixão com os necessitados, palavras de sabedoria, partilha, senso crítico em relação ao poder dominante. Os que queriam eliminá-lo temiam que ele liderasse as pessoas consideradas pobres e sem noção (“plebe que nada sabe”), que as influenciasse “mal”, contrariando a liderança confortavelmente acomodada em suas próprias normas. Os líderes religiosos observavam silenciosamente o movimento de Jesus e da população ali reunida. Eles se lembravam da confusão armada por ele na Páscoa, quando expulsou negociantes do templo e confrontou seus líderes.
A Festa dos Tabernáculos era a maior e mais sagrada festa para os judeus. Um acontecimento popular alegre, com música, canto e dança; tomava-se o melhor vinho. Durava em torno de sete dias e celebrava a saída do povo do Egito e sua peregrinação no deserto, onde a água era escassa. A festa ocorria depois da colheita. Por isso, com o passar dos anos, acrescentou-se a celebração pela colheita ao significado da festa, daquele tempo em que já não eram mais povo peregrino e tinham água para as plantações, mas nunca em abundância.
Os tabernáculos ou pequenas choupanas que construíam para a festa ao redor do templo podiam representar as tendas em que viveram durante a peregrinação no deserto, antes de se fixar, bem como o local onde o povo celebrava a colheita depois do trabalho, antes de existir o templo, no tempo em que já estavam na terra prometida. Mesmo ali havia tempos de seca; assim, a água sempre teve um significado vital para a sobrevivência desse povo.
Na Festa dos Tabernáculos, havia todo um ritual em torno da água. Era um ritual de agradecimento pela água e, ao mesmo tempo, um pedido por chuvas abundantes para garantir a vida. Ambos equivaliam ao pedido pela salvação. Eles não conheciam uma fonte de água que jorrasse sem parar, sem deixá-los em situação precária e de desespero frente à perda da colheita e frente à falta de água no geral para cozinhar, banhar-se, higienizar o ambiente, regar as plantas, dar aos animais. Toda a cerimônia lembrava os tempos difíceis de escassez de água, as secas, as plantações destruídas e, consequentemente, a fome. A festa celebrava experiências antigas permeadas de tradição religiosa.
A água é personagem de destaque na Festa dos Tabernáculos. A cada manhã, os sacerdotes buscavam água na fonte de Siloé, num recipiente de ouro, e em procissão a levavam ao altar. Misturavam a ela um pouco de vinho (pela colheita), derramando-a e duas bacias também de ouro, enquanto o povo ali admirava aquele ritual tradicional. Isso também acontecia no ápice da festa no último dia. Para eles, a água simbolizava a abundância nos tempos escatológicos. Por isso o grande impacto que causam as palavras de Jesus: “Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crer em mim, do seu interior fluirão rios de água viva”. Como se atreve? Tirar a abundância de água do momento escatológico e dizer que, já agora, nele há como saciar a sede?
Isso acontece no último dia, o mais importante da festa. Ele parece, sai do anonimato, expondo-se à raiva dos que o observam e querem eliminá-lo. Berra heresias aos quatro ventos, quebrando o clima de festa e a harmonia e perturbando o ambiente. Ele insinua que nem o ritual da água tampouco o vinho ali bebido em abundância matam a sede. Só Ele é quem substitui essa água. É muita coragem de Jesus. Para os outros, é um ato de petulância. Com esse enfrentamento, Jesus quer mostrar que não é o templo nem os sacerdotes que determinam e nem garantem isso, mas Deus. E a água já está dentro daquele que acreditar em Jesus e em sua proposta. Que não é lá no futuro, mas agora, se crerem em Deus que haverá abundância. É uma cena, sem dúvida nenhuma, dramática. Alguém berrando coisas que não fazem sentido! Toda essa festa, sua liturgia, sua alegria, a confluência do povo demonstravam a esperança pela vinda do Messias. E Jesus numa aparição dramática dá-se como substituto disso tudo? Ele rompe com a religião oficial e reafirma ser o enviado pelo Pai.
Jesus não só critica o ritual do templo, que não saciava mais a sede do povo, nem sua necessidade de solidariedade, paz e sentido de vida, mas se coloca, ele mesmo, como a fonte que sacia e não seca nunca. Ainda dá a possibilidade de cada pessoa ser uma fonte para outros. Ele diz isso na perspectiva do recebimento do Espírito para aqueles que nele cressem.
Cabe ainda explicar que não se sabe bem a que passagem bíblica Jesus quis se referir quando disse: “Quem crer em mim, como diz a Escritura…”. Comungo da mesma opinião da maioria, de que ele se refere à Escritura (Antigo Testamento) no geral, onde estão profetizadas sua vinda e sua missão, sua boa-nova.
3. Meditação
É interessante explicar para a comunidade que essas palavras de Jesus vêm logo depois do texto em que guardas são enviados pelos sacerdotes e principais fariseus para prender Jesus, pois ele fala abertamente que ele é o Cristo, enviado pelo Pai, que eles não conhecem, e isso desinstala e ameaça a tradicional festa. É um perigo para a tradição, que está acostumada há anos a fazer tudo da mesma forma, ser liderada sempre pelos mesmos critérios. Isso cega a comunidade para outras formas de fazer, para outros jeitos; impede de ver a essência, marginaliza algumas pessoas. Para resolver a questão, os principais sacerdotes e fariseus mandam prendê-lo para evitar novo tumulto. Tudo isso ocorre em meio à festa. E o que acontece?
Jesus fala as palavras da fonte, e o texto que vem a seguir mostra os guardas voltando de mãos vazias. Não prenderam Jesus. Dá-se um diálogo:
– Por que não o trouxestes? Será que também vós fostes enganados por ele? – pergunta a liderança da época. E os guardas atordoados diante da autoridade, com medo por ter descumprido uma ordem e por admiração pelas palavras de Jesus, respondem: – Jamais alguém falou como este homem. Aqui é dado a perceber que a palavra de Jesus é loucura, poucos a entendem. Mas os humildes entendem: os que não estão no poder, os submissos, que foram fazer um serviço sem saber bem por que e voltam sem tê-lo feito, porque também foram impactados pela fala e, mais ainda, pela autoridade da fala de Jesus.
Quem crer em Jesus recebe o Espírito e dele fluirão rios de água. Primeiro temos que beber da fonte de Jesus para então nos tornarmos fonte para outros. É um serviço de solidariedade e amor. Não se compra nem se vende a água dessa fonte, somente se recebe e se dá. Jesus ensina que quem nele crer recebe uma fonte tão poderosa, que é impossível estancá-la. Ela jorra sem esforço nosso, é dádiva. Por isso a distribuímos também, pois é abundante. Não é algo que diminui quando dividimos, como um bolo ou dinheiro, mas aumenta! Quanto mais gente beber dessa fonte, mais abundância haverá na terra. Abundância de solidariedade, misericórdia e justiça.
Eu entendo que Jesus estava furioso à vista dos rituais e de toda a festa que promovia a plenitude somente para o momento escatológico; fazia-a depender dos sacerdotes e, ainda por cima, deixava muitos de fora dessa alegria. Eu entendo Jesus se levantando e berrando alto que há outra maneira de viver. Que existe uma vida que brota sem esforço, da graça de Deus. Neste Domingo de Pentecostes, é vital que a comunidade sinta que o Espírito também é concedido a ela, para grandes e pequenas transformações. Que de cada pessoa é possível fluírem rios de água viva.
A pregação pode beneficiar-se também da ideia da importância da água para nossa vida, da percentagem de água que perfaz o planeta e da percentagem de água que compõe o corpo humano. Não é difícil comparar toda água que habita ao nosso redor e dentro de nosso corpo com rios que podem fluir de nós se bebermos da fonte chamada Jesus. Outra possibilidade também é falar o que ocorre com a falta de água em nosso corpo – a desidratação – e compará-la com a escassez de espiritualidade, com a vida sem sentido, sem solidariedade. Pentecostes é a festa de beber da água de Jesus e deixar-se transbordar com o mesmo Espírito de misericórdia e amor.
4. Imagem para a prédica
Na casa de meus avós, havia dois poços. Um no jardim na frente da casa, mais perto da cozinha, e outro nos fundos do terreno, quase na divisa com os vizinhos. Ambos estavam circundados por muitos bambus e árvores frondosas, estavam abrigados pelas sombras abundantes. Éramos proibidas de abrir a tampa dos poços e brincar sentadas nele. Aprendemos a respeitar a importância a autoridade dos poços. Jogar algo dentro? Jamais! Nunca podíamos buscar água no poço por conta própria, somente acompanhar um adulto nesse serviço. Jogava-se um balde leve, de latão, com uma longa corda lá para baixo e puxava-se de volta um balde pesado, cheio de água. O balde subia balançando, derramando o excesso, e meus avós ainda derramavam um pouco da água do balde de volta, para não derramar e desperdiçar. Depois passavam a água para o balde que ficava sempre na cozinha.
Era incrível olhar para dentro do poço: aquela escuridão, aquele silêncio e frescor restaurador, e lá no fundo um brilho se movia. Nossos avós nos seguravam pela camiseta nessa hora.
Essa experiência durava breves segundos, mas era muitas vezes repetida e não cansava, não saciava a nossa curiosidade de ver o fundo do poço. A água dos poços era doce, e a água do poço dos fundos era mais fresca ainda, quase geladinha.
O poço da frente era o mais usado. E quando chegava o verão com a seca, com a escassez de água, recorria-se ao outro poço. Tínhamos que caminhar um pouco mais, e era mais pesado para eles levarem o balde de volta à cozinha. O poço dos fundos tinha mais água. Ao lado dele ficava uma cisterna que recolhia a água que fluía abundantemente dele, para evitar o desperdício. Ao lado da cisterna ficava o tanque de lavar roupas. E aquela era também a água dada aos animais.
Durante o inverno, quando chovia muito, o poço transbordava, alagando toda a região do tanque e cobrindo a cisterna, que desaparecia com tanta água.
Lembro de meu avô dizendo que aquele poço nunca os deixara na mão, sem água. Até vizinhos vinham ali pegar água no verão. Era grátis, ninguém pagava, pois era compreendida como dádiva. Durante o auge do verão, ao redor do poço dos fundos, tudo estava seco, não havia abundância de água, a cisterna estava vazia, mas no fundo do poço sempre havia água. Era necessário ter uma corda mais longa para o balde alcançar a água, mas o poço nunca secou.
Assim gosto de imaginar a fonte que Jesus diz que fluirá dentro de nós se crermos nele. Uma fonte inesgotável de onde tiramos para dar aos outros.
5. Subsídios litúrgicos
Oração do dia:
Deus querido e misericordioso, ajuda-nos a entender o presente que tu nos dás. Ajuda-nos a viver da tua graça abundante e a entender melhor a tua Palavra. Que possamos beber de ti e dar aos outros de beber de nossa própria fonte de fé e misericórdia, que vem como um lençol de água, que não se vê, mas nos sustenta. Que a tua palavra nos hidrate e nos faça terra frutífera, seara abundante. Amém.
Confissão:
Aqui chegamos, Senhor, na tua presença como comunidade. Conscientes de nossas falhas e erros. Pedimos-te paciência com nossa falta de cuidado com nossa espiritualidade. A ela não dedicamos tempo em nossa agenda, para ela não buscamos recursos como para outras situações. Ainda bem, querido Deus, que ela não depende só de nós, mas jorra de ti. Perdoa-nos pelo mau uso da água do planeta, pelo desperdício de algumas pessoas que lavam calçadas com mangueira, que poluem os rios e mares, envenenando nossa própria moradia. Confessamos nossa inabilidade de lidar também com a saúde de nosso corpo, o templo do teu Espírito, que necessita da água para ser saudável. Acolhe-nos como tua criação, como teu sonho e não por causa de nossa conduta. Assim te pedimos em nome de Jesus, a fonte, o doador dos rios que fluirão de dentro de nós. Amém.
Bênção:
Que o Senhor nos abençoe com o discernimento sobre o uso da água.
Que o Senhor nos abençoe com a constante nutrição de nossa fonte, a fim de que ela transborde para os outros.
Que o Senhor nos abençoe com seu manancial de misericórdia.
Assim nos abençoe o triúno Deus Pai, Filho e Espírito Santo. Amém.
Bibliografia
NEWSON, Carol A. Women’s Bible Commentary. Kentucky: Westminster/John Knox Press, 1992.
PROCLAMAR LIBERTAÇÃO volumes VI, XII, XVI, XXII e XXVIII.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).