Conservados íntegros e irrepreensíveis para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo
Proclamar Libertação – Volume 39
Prédica: 1 Tessalonicenses 5.16-24
Leituras: Isaías 61.1-4,8-11 e João 1.6-8,19-28
Autor: Michael Kleine
Data Litúrgica: 3º Domingo de Advento
Data da Pregação: 14/12/2014
1. Introdução
A preocupação principal de Paulo é com a fé da comunidade em Tessalônica (3.1-10). Ele temia que, em sua ausência, a comunidade pudesse ter sido levada a deixar a fé (3.5), ou seja, deixando “o Deus vivo e verdadeiro” para servir “aos ídolos” (1.9). Por causa dessa preocupação com o “estado da vossa fé” (3.5), Paulo envia Timóteo a Tessalônica para “vos fortificar e exortar na fé” (3.2 – trad. Bíblia de Jerusalém). A carta também cumpre esse objetivo de exortar a permanecer na fé, apesar das “boas notícias da vossa fé” (3.6) e de que “estais firmados no Senhor” (3.8). Por isso não espanta que um termo importante na carta é parakaleō: chamar para perto, convidar, exortar, encorajar, consolar. O próprio anúncio do evangelho Paulo chama de paraklēsisj (2.3; cf. 2.2-4). Como “ama que acaricia os próprios filhos”, ele lhes oferece o “evangelho de Deus” (2.7s), como “pai a seus filhos… exortamos, consolamos e admoestamos” (2.11s). Ele exorta quanto à maneira de “viver e agradar a Deus” (4.1), bem como a progredir no amor (4.10). Os próprios membros da comunidade devem exortar/consolar uns aos outros a respeito da “vinda do Senhor” (4.18; 5.11).
Tudo isso (sc. a ação do próprio Deus via anúncio do evangelho, exortação, consolo, edificação) tem um único objetivo: firmar/fortalecer os corações em santidade irrepreensível diante de Deus “na vinda de nosso Senhor Jesus, com todos os seus santos” (3.13; cf. 5.23; 1Co 1.8). Dessa forma, o próprio Senhor Jesus prepara a sua comunidade para a sua vinda definitiva e a “livra da ira vindoura” (1.10; cf. Rm 5.9), a grande catástrofe que será o “dia da vingança do nosso Deus” (Is 61.2). Através da pregação/consolo/exortação do profeta/apóstolo/pregador (Is 61.1-4) o próprio Deus cobre o seu povo “de vestes de salvação” e com o “manto da justiça” (Is 61.10); e o povo alegra-se na expectativa pelo advento do dia em que “o Senhor fará brotar a justiça e o louvor perante todas as nações” (Is 61.11) como fruto daquilo que foi semeado. Essa ardente expectativa pela “vinda do Senhor”, pelo “Dia do Senhor” (5.2) – que perpassa toda a carta e toda a pregação de Paulo – lembra-nos que falar em Advento é muito mais do que falar em “preparação para o Natal”.
2. Exegese
O bloco final da Primeira Carta aos Tessalonicenses (capítulos 4-5) contém exortações e conselhos práticos (4.1-12; 5.12-22) que emolduram uma explicação sobre a vinda do Senhor e o Dia do Senhor (4.13-5.11). O objetivo desse bloco é a exortação: “vigiemos e sejamos sóbrios” (5.6), “porque Deus não nos destinou para a ira, mas para alcançar a salvação mediante nosso Senhor Jesus Cristo” (5.9). De forma condensada, Paulo retoma nos v.16-24 o que ele diz no início da carta (1.2-10): ele recorda o motivo de alegria e gratidão dele e da comunidade, ou seja, o fato de terem chegado à fé, e exorta que permaneçam firmes nessa fé e alegria.
V. 16 – Alegrai-vos sempre! A alegria é “fruto do Espírito” (Gl 5.22), ou seja, junto com o amor, a paz, a longanimidade, a benignidade entre outros, ela é resultado da ação do Espírito Santo naquelas pessoas que “são de Cristo” (Gl 5.24) e “vivem no Espírito” (Gl 5.25). É alegria que está em total conformidade com o reino de Deus que se está esperando, pois esse é “justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo” (Rm 14.17). Paulo também fala da “alegria da fé” (Fp 1.25), “na esperança” (Rm 12.12), “do Espírito Santo” (1Ts 1.6) e “no Senhor” (Fp 3.1). É o próprio Deus quem preenche os cristãos e as cristãs com “toda alegria e paz no crer” (Rm 15.13). Mesmo sendo puro fruto da ação de Deus – assim como a fé e o amor –, as pessoas que creem podem “cooperar” com a alegria umas com as outras (cf. 2 Co 1.24; 2.3; Fp 4.1; 1Ts 2.19s; 3.9), lembrando umas às outras do seu fundamento comum “no Senhor” (1Ts 3.7-9). É o que Paulo faz com essa sua carta, resumindo sua intenção com o chamado: Alegrai-vos!
V. 17 – Orai sem cessar. Assim como a alegria, a oração é igualmente um fruto da ação do Espírito Santo (cf. Rm 8.15,26). A partir de 1Ts 1.2-3, vemos que para Paulo orar é, em primeiro lugar, colocar-se conscientemente “diante (emprosthen = na presença de) do nosso Deus e Pai”. Da mesma forma estaremos diante/na presença de (emprosthen) “nosso Senhor Jesus Cristo na sua vinda (parousia)” (2.19; cf. 3.13: “com todos os seus santos”). Esse estar na presença de Deus ou “do nosso Senhor Jesus” caracteriza e relaciona entre si a alegria, a oração e a ação de graças (cf. 1Ts 1.2s; 2.19; 3.9; 3.13). Da mesma forma caracteriza e relaciona entre si a existência presente “no Senhor” e o encontro futuro “em sua vinda” (cf. 2Co 5.10). Essa relação entre presente e futuro explica a frequente menção da oração (constante/incessante) junto com a vigilância em diversas passagens do Novo Testamento (Ef 6.18; Cl 4.2; Lc 21.36; Mt 26.41; Mc 14.38).
V. 18 – Em tudo dai graças porque essa é a vontade de Deus em Cristo Jesus para convosco. Segundo Rm 1.21, “dar graças” (juntamente com “glorificar”) é a atitude fundamental da criatura humana em relação a seu Criador: o auto-oferecimento e a submissão obediente a Deus. Paulo descreve ali a inimizade do ser humano em relação a Deus como a recusa em glorificá-lo como Deus e dar-lhe graças. Dando graças e glorificando, o ser humano aceita sua condição de criatura e de dependência absoluta de Deus. Essa é a vontade de Deus, revelada em Cristo Jesus.
Paulo diz aqui (v.16-18), mas de forma extremamente condensada, o mesmo que escreveu aos filipenses (Fp 4.4-6). Ali também aparece a tríade alegrar-se – orar – dar graças. Tanto aqui como lá, Paulo não está falando de um estado emocional, mas de uma postura de vida. Como indicam as expressões sempre – constantemente – em tudo, a alegria, a oração e a gratidão constituem uma atitude permanente, ou seja, independem de condições outras que não sejam o “estar firmado no Senhor” e a expectativa confiante de que “perto está o Senhor”. Assim, alegrar-se – orar – dar graças – é atitude oposta à preocupação ansiosa com a própria sobrevivência (merimnaō: cf. Fp 4.6; Mt 6.25,28,31,34). Essa merimna biōtikos (Lc 21.34: preocupação com o que pertence à vida em sentido bio e psicológico) sobrecarrega o coração. Por isso vale aos que foram chamados “para o seu [de Deus] reino e glória” (1.12) aquilo que foi dito à comunidade em Roma: “o reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo” (Rm 14.17). Segundo podemos depreender do que Paulo escreve em 1 Tessalonicenses, a preocupação primeira de quem está “no Senhor” é com o “estado da fé” (cf. 3.6: diante do perigo da provação e dos abalos causados pelas tribulações, cf. 3.2s.), ou seja, com o estar/permanecer “firmados no Senhor” (3.8) e não com a sobrevivência material, social e emocional.
V. 19 – Não apagueis o Espírito. Trata-se da ação do Espírito Santo, que é a fonte dos múltiplos carismas atuantes na comunidade (1Co 12). Essa ação é concebida como fogo (cf. Mt 3.11; At 2.3). A recomendação de Paulo poderia ser a mesma que ele faz em Rm 12.11, só que formulada ao contrário: “Sede fervorosos/ardorosos no Espírito”. “Fervoroso no Espírito” era, por exemplo, Apolo, que “falava e ensinava com precisão a respeito de Jesus” (At 18.25). A formulação de Paulo é muito ampla, de modo que não podemos ter certeza se ele se refere a alguma situação específica em que estavam sendo colocados empecilhos à ação do Espírito na comunidade. Pode ser uma referência aos v. 16-18, ou também especificamente ao v. 20, que trata do carisma da profecia.
V. 20 – Não menosprezeis profecias. A profecia é um dos variados carismas existentes na comunidade (Rm 12.6; 1Co 12.10), tida por Paulo em alta conta (1Co 14.1) por causa do seu benefício para a comunidade: na edificação, exortação, consolo (1Co 14.3) e ensino (v. 31). O dom da profecia consiste no falar a palavra certa na hora certa através de revelação divina (1Co 14.30). “A uns estabeleceu Deus na igreja, primeiramente, apóstolos; em segundo lugar, profetas; em terceiro lugar, mestres” (1Co 12.28). Profetas estão, pois, entre aqueles “que vos presidem no Senhor e vos admoestam” (1Ts 5.12). Seja por causa de algum eventual abuso, seja pela sua função de admoestar (v. 14), o fato é que os “profetas” estavam sofrendo resistências para exercer sua função na comunidade (v. 12-13).
V. 21 – Julgai todas as coisas, retende o que é bom. Para evitar abusos, todas as manifestações carismáticas devem ser examinadas (dokimazō). O próprio Paulo foi examinado/provado por Deus (2.4). Segundo Rm 12.6, o critério para examinar a profecia é a “analogia da fé”, ou seja, se ela está em conformidade com as afirmações fundamentais da fé, conforme foram ensinadas pelo apóstolo. Aquilo que foi aprovado como “bom” deve ser segurado com firmeza.
V. 22 – Abstende-vos de toda forma de mal. Recomendação de caráter geral para evitar tudo o que pode causar dano à comunidade. Não parece estar se referindo diretamente ao versículo anterior.
V. 23s – Aqui Paulo mostra a razão de tudo o que foi recomendado anteriormente: ser encontrados “íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo”. Mas para que isto seja possível, é preciso ser santificado por Deus. As recomendações dos v. 16-22 significam a exortação a viver em conformidade com a santificação operada por Deus, “que vos chama para seu reino e glória” (2.12). As próprias recomendações dadas são instrumentos usados por Deus para santificar, ou seja, para “conservar” os/as tessalonicenses na fé que receberam, para que permaneçam “firmados no Senhor” (3.8). Paulo espera por uma catástrofe, a “ira vindoura”, da qual Jesus “nos livra”. Ele o faz através do Espírito e dos seus dons/carismas, da exortação, consolo, edificação. Tudo com a função de manter todos sem culpa e “inteiros” no dia da ira. O mesmo que “vos chama” (v. 24) se mantém fiel a seu chamado, conservando todos íntegros para o seu “reino e glória”. Paulo expressa sua confiança como em Fp 1.6: “Estou plenamente certo de que aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até ao Dia de Cristo Jesus”.
3. Meditação
“Conservados íntegros e irrepreensíveis para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” – eis a preocupação de Paulo com a comunidade, eis a nossa preocupação como ministros e ministras. Este é o centro ao redor do qual deve girar a pregação neste domingo de Advento. Paulo exorta: “vigiemos e sejamos sóbrios” (5.6). Parece-me que as recomendações de 5.12-22 visam contribuir para que isso aconteça. Inicialmente, trata da relação pessoal com Deus (v.16-18); em seguida, aponta para a ação do Espírito na comunidade (v.19-22).
Parafraseando os v.16-18: Deus quer que vocês, que estão na fé em Jesus Cristo, permaneçam nessa alegria que vos foi dada, através da oração incessante e da ação de graças permanente. Paulo está nos lembrando de que a vida, em todos os seus momentos (sempre – sem cessar – em tudo), deve ser vivida sob os olhos de Deus. É assim que Deus nos conserva por inteiro (“íntegros”), “espírito, alma e corpo”. Nada do que fazemos está excluído da esfera “espiritual”. “Espiritualidade” não é um ambiente separado da vida diária, mas abrange tudo. Também não é algo para ser vivido apenas individualmente. O “fogo” do Espírito Santo atua na comunidade (v.11-15,19-22). Quem fica longe da comunidade, no mínimo, está “desprezando as profecias”, ou seja, o anúncio da palavra de Deus que edifica, consola, exorta.
A imagem que me vem à mente é a do caminho. Tendo o apóstolo como instrumento (1.5,9), o próprio Deus, através da sua palavra eficaz (2.13), tirou (converteu) os tessalonicenses do caminho dos ídolos e os colocou no caminho (serviço) do “Deus vivo e verdadeiro” (1.10). Da mesma forma, ele os mantém firmes (3.13) e os conserva (5.23) nesse caminho através da pregação/exortação do apóstolo, de Timóteo (“ministro de Deus no evangelho de Cristo”, 3.2) e dos “que vos presidem no Senhor” (5.12). Não basta estar no caminho certo, é preciso ficar nele até o fim, até alcançar o objetivo. Jesus Cristo – o Caminho – está vindo ao nosso encontro. Ele próprio nos colocou nesse caminho por onde ele vem nos encontrar. Ele mesmo nos conserva nesse caminho por meio de alguns instrumentos colocados à nossa disposição pelo Espírito Santo: o consolo e exortação mútuos (“uns aos outros”) e dos “que vos presidem no Senhor”, a oração, as “profecias” (anúncio oportuno da vontade de Deus/pregação) e – podemos acrescentar – a Ceia do Senhor. Nessa última, a comunidade está na presença do Senhor como em nenhuma outra parte ou momento. Torna-se com ele uma unidade indissolúvel.
Vigiemos! É muito fácil sair do caminho no qual fomos colocados, esquecendo-nos dos “benefícios” recebidos (cf. Sl 103,2), confiando nas próprias escolhas e meios, afastando-nos da comunidade. É preciso ficar atento/a e desconfiar do caminho solitário, separado da comunhão. Diante de Deus somos e sempre seremos crianças, para as quais vale: não solta a mão do pai e da mãe! Fica o tempo todo de olho neles! É muito fácil perder-se nessa multidão! E a mão do Pai está nos meios da graça que ele coloca ao nosso alcance.
A propósito: a alegria da qual fala Paulo (v.16) pode ser comparada à alegria da criança que se perdeu dos pais na multidão e foi encontrada. É a alegria de quem “estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado” (Lc 15.32). É ouvir o convite do próprio Deus: “Alegrai-vos comigo!” (Lc 15.6,9) e participar do “júbilo no céu” (Lc 15.7,10). Para alegrar-se, é preciso dar-se conta do perigo do qual se foi livrado. Alegrai-vos sempre significa: não se esqueçam do perigo que corriam antes de ser colocados no caminho.
“Orai sem cessar” é o convite para colocar-se permanentemente na presença de Deus. A oração é o oxigênio que alimenta o fogo do Espírito Santo que nos foi dado. Buscar a presença de Deus em oração significa submeter tudo à sua vontade, aceitar nossa dependência total. O mesmo vale para o “dar graças”.
Nos v. 19-21, temos o convite para buscar/aceitar a ação do Espírito que age através dos outros em nosso favor – na comunidade. É através deles que nossa alegria, nossa oração e nossa ação de graças – em suma: nossa fé – são alimentadas. Mas aqui vale: julgai todas as coisas. Existem critérios claros para saber o que é “bom”, o que edifica. O apóstolo ensinou-os, fazem parte da confissão de fé. Hoje temos a Bíblia, os Catecismos, a Confissão de Augsburgo para avaliar o que se faz e se fala na comunidade e na igreja.
Mais uma imagem que pode ser útil: a da criança de poucos meses que quer dar seus primeiros passos. Ela ainda não consegue firmar as pernas, por isso precisa de ajuda. Pode ser segurada por um adulto que lhe dá firmeza e conduz ou pode ir se segurando nos móveis da casa que funcionam como corrimão que leva ao objetivo. Somos – e sempre seremos – como essa criança no caminho que Deus nos colocou para nos encontrar com o Senhor Jesus que vem em nossa direção. Precisamos da ajuda dele para ficar de pé e andar. Assim como a criança, não temos noção do perigo que está à nossa volta. Podemos e devemos implorar incessantemente por sua ajuda. Alegramo-nos quando ele o faz. Usamos os corrimões que ele colocou para nos auxiliar (pregação, sacramento, exortação mútua, oração).
Bibliografia
BORNKAMM, Günther. Paulus. Vierte Aul. Stuttgart/Berlin/Köln/Mainz: W. Kohlhammer, 1979.
BULTMANN, Rudolf. Theologie des Neuen Testaments. 3. durchg. u. erg. Aul. Tübingen: J.C.B. Mohr, 1958.
LÜNEMANN, Gottlieb. Kritisch exegetisches Handbuch über die Briefe an die Thessalonicher. Zweite verb. u. verm. Aul. Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1859. (Disponível em: https://play.google.com/books)
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).