Prédica: João 16.5-15
Autor: Nelson Kirst
Data Litúrgica: Domingo Cantate
Data da Pregação: 13/05/1979
Proclamar Libertação – Volume: IV
I — A aflição dos discípulos
Nos tantos estudos feitos recentemente em nosso meio sobre o discipulado, uma dimensão deixou de receber a atenção que merece. Trata-se da angústia, da aflição, tantas vezes companheira do discípulo que procura seguir a Jesus.
Essa aflição pode ter causas diversas. Guiados pelo nosso texto (e também pelo trecho precedente, 16,1-4), somos levados a pensar nas seguintes:
a) A inversão de valores que o discípulo presencia no mundo. O assassínio de discípulos é visto como culto tributado a Deus (16,2). Em nossa atualidade raramente se chega a tais extremos. No entanto, a contradição entre os valores do mundo e dos discípulos é gritante e aflitiva. O que o mundo vê como bom, o discípulo muitas vezes, a partir de sua fé, só pode encarar como mau.
O mundo exalta a eficiência fria e calculista, a competição desenfreada, o lucro a qualquer custo e coloca-os bem mais alto do que a integridade humana de velhos, menores abandonados, doentes mentais, excepcionais, índios, bóias-frias e favelados. Coletas de assinaturas feitas pelos pobres contra a carestia são consideradas desonestas, enquanto a economia que os explora é incentivada a ser sempre mais exploradora. Os que dão sua energia e sua vida para corrigir essa inversão de valores são perseguidos como criminosos, enquanto que os agentes dessa situação diabólica são favorecidos. Os poucos que possuem mais do que de sobra para comer, morar e se divertir recebem todas as condições possíveis para que lhes sobre sempre mais e mais, enquanto que à esmagadora maioria que já sofre carência de alimentação, habitação, ensino e emprego são impostas condições nas quais sua carência aumenta sempre mais e mais. Policiais corruptos e assassinos são considerados justos e pessoas inocentes são eliminadas sem deixar vestígios.
b) Diante de tal situação, o discípulo, cujo mestre certa vez contou a Parábola do Bom Samaritano, se aflige. E, quando é corajoso, protesta. E, quando protesta, é expulso e perseguido (cf. 16,2). O mundo que usufrui os benefícios da situação descrita acima não suporta contestação dos seus valores pervertidos. O mundo conhece meios, desde o suborno e a manha sutil até o crime mais violento, para desligar o discípulo incómodo. Assim, perseguição e expulsão podem tornar-se parte da existência do discípulo, hoje como no tempo de João.
II – A sensação de abandono
A aflição do discípulo se agrava terrivelmente quando, em meio a todas as contradições, ele se vê assaltado pela sensação de estar abandonado por Deus.
A aflição (melhor do que tristeza, v.6, Almeida) enche o coração do discípulo, ao ser defrontado com as adversidades do mundo (porque vos tenho dito estas cousas, no v.6, refere-se aos vv.1-4). isto. a ponto de ele não perceber o que de fato se passa, v.5: 'E nenhum de vós me pergunta: Para onde vais?. De tão obcecado pela sensação de abandono, não chega a captar o significado do momento, não chega a fazer aquela pergunta simples, evidente, e que o levaria a entender aquilo que realmente importa ao discípulo mergulhado na aflição.
Ao discípulo aflito João dá um alerta, portanto, de que a aflição pode se transformar numa tentação capaz de cegá-lo para o verdadeiro significado da hora presente. A tentação do discípulo esmagado pelas contradições e perseguições do mundo pervertido que o cerca é sucumbir à sensação de que Deus não está aí, de que Deus se entregou e perdeu a batalha, de que o mal tem a última palavra. A esse discípulo João diz: Cuidado, você está ficando cego, você não está colocando a pergunta certa, não está percebendo a única coisa que de fato importa.
III — A superação da aflição
O centro do nosso texto está na superação dessa aflição, v.7. Tudo o mais – ou seja, as duas outras partes da perícope, vv.8-11 e 12-15 – e apenas desenvolvimento daquela afirmação central do v.7. Se a prédica conseguir com êxito falar ao discípulo de hoje sobre sua aflição, sobre a tentação que esta implica, e sobre sua superação, poderá de sã consciência dedicar menos atenção aos vv.8-11 e 12-15.
Aos discípulos mergulhados na aflição e na sensação de abandono, cabe dar ouvidos ao que disse o autor do Evangelho de João aos discípulos da sua comunidade, mergulhados na mesma aflição e sensação de abandono.
Ao discípulo aflito João diz: Realmente, Jesus não está fisicamente aí com vocês. Mas ele também não os largou abandonados no mundo, como talvez lhes pareça em sua cegueira. Apesar das contradições e perseguições que o mundo impõe a vocês, Jesus está presente, bem ali, por meio do Ajudador (melhor do que Consolador, v.7, Almeida). Vocês, discípulos, correm o risco de não perceber que vocês têm a presença e companhia do Ajudador.
Vejam, pois: À sua comunidade, João não anuncia o Ajudador, mas afirma que ele está aí, no seu meio. Este Ajudador que está aí é como uma repetição de Jesus, é o outro paracleto (14,16), em cuja atuação continua a efetivar-se a revelação de Jesus (cf. os vv. 13-15 e já antes 14,26 e 15,26).
Estaria ele aí, no meto dos discípulos, sem que o percebam? Estariam os discípulos de hoje realmente cegos para a sua presen¬ça, como João lhes quer fazer crer? Onde e como estaria esse Ajudador agindo hoje em meio aos discípulos? Sigamos as indica¬ções de João, nos vv.8-11.
O Ajudador está aqui, no meio dos discípulos, apresentando provas (melhor do que convencer, v.8, Almeida) ao mundo no tocante a pecado, justiça e juízo (v.8). E como é que o Ajudador faz isso?
Só pode ser através do testemunho e da ação da comunida¬de de discípulos. O mundo, por si, não pode receber o Espírito (14,17). João só pode estar pensando, então, que o apresentar provas do Ajudador acontece através do testemunho e do serviço dos discípulos, hoje como na comunidade joanina. Endereçando nosso texto à comunidade de discípulos, de hoje e de então, João diz que:
– o Ajudador atua justamente com discípulos que sofrem a aflição imposta pelo mundo, a sensação de abandono, e sucumbem à tentação cegante.
– o Ajudador prepara os discípulos, seus instrumentos, guiando-os a toda a verdade (v.13), ensinando-lhes, em identidade perfeita com o Filho e com o Pai, a essência e o significado da obra salvífica de Deus em Jesus (este é o sentido específico de toda a verdade; cf. todo o trecho vv.13-15).
Mais uma vez: João não anuncia o Ajudador, mas diz que ele está aí, que ele está guiando os discípulos de Jesus, aqui e agora, a toda a verdade; que, pela percepção que os discípulos vão tendo, por sua mão, sobre a história e a vontade de Deus, o Ajudador vai esclarecendo-os sobre o significado da obra de Deus em Cristo. Em suma: João diz que o testemunho e serviço dos discípulos, apesar da aflição e da sensação de abandono, são a própria presença de Jesus, e que, portanto seus discípulos não estão abandonados por Deus. Ou seja, aos discípulos que se sentem aflitos e abandonados, João diz: O próprio testemunho e a ação de vocês são evidência de que Jesus está com vocês, agindo em vocês pelo seu Ajudador, ajudando vocês a entenderem sua obra. E a partir da compreensão de sua obra, o Ajudador opera em vocês – sim, ele já está operando em vocês! – no sentido de apresentar provas ao mundo no tocante a pecado, justiça e juízo (vv.8-11).
Pelo testemunho e ação dos discípulos, ontem e hoje, o Ajudador apresenta provas ao mundo quanto ao seu pecado, porque não crêem em mim (v.9). Pelos discípulos o mundo deve saber que pecado não é a suposta blasfêmia de Jesus, nem atos isolados, nem falta de moral, mas um comportamento básico que consiste em rejeitar Jesus como o Deus feito homem (cf. 5,44ss; 6,36; 8,46; 10,37ss; 12,21-25). Olhando para o testemunho e ação dos discípulos, vendo sua atitude em meio às contradições e perseguições apontadas acima (cf. a parte l), o mundo pode perceber o pecado de sua rejeição de Jesus.
Pelo testemunho e ação dos discípulos, ontem e hoje, o Ajudador apresenta provas ao mundo de que a justiça está com Jesus, que foi para o Pai, e não com o mundo, que o crucificou; e de que Satanás, o príncipe deste mundo, já está julgado (v.11).
Testemunho e ação dos discípulos refletem este fato. Naquilo que fazem, em meio às contradições e perseguições apontadas acima, na maneira como agem ou deixam de agir, nas opções que tomam, na rejeição dos valores do mundo, na disposição de viver e lutar por outros valores, no zelo pela integridade humana dos marginalizados e oprimidos, ao contrário dos zelos do mundo, na força que emana dessa sua atuação acanhada, mas eloquente, apresentam-se provas ao mundo de que Jesus foi para o Pai, de que as forças do mal e da morte não prevaleceram, de que a justiça está com o Jesus ressurreto, de que o poder do príncipe do mal já não domina tudo, mas já foi subjugado, como mostram as brechas que os discípulos de Jesus vão abrindo em seu esquema de poder.
IV – Uma mensagem para discípulos
Uma prédica sobre nosso texto poderá seguir exatamente o esquema desenvolvido acima, nas partes l a III. Acontece, porém, que esse trecho é dirigido a discípulos, a gente que não precisa ser convertida, a discípulos que, por serem convertidos, vivem seu discipulado – e sofrem aflição e sensação de abandono na vivência desse discipulado. Dirigindo-se a tais discípulos, o texto não quer admoestar, nem exortar, nem anunciar. O texto quer simplesmente dar forças aos discípulos, em meio à sua aflição, afirmando-lhes que na sua vivência de discipulado está a própria ação de Jesus, nos seus múltiplos aspectos. Assim, o texto encoraja-os a continuar, na certeza da presença do Senhor.
V – Como aplicar o texto a não aflitos?
A atualização desenvolvida acima não faz sentido algum, se dirigida a pessoas que – mesmo que membros de nossas comunidades – não sofrem aflição e sensação de abandono, no discipulado. Aflição e sensação de abandono, no discipulado, são a condição para compreender e ser atingido por uma atualização desse texto.
Que fazer, então, se – abstraindo de falar em nós, pregadores – temos diante de nós uma comunidade dominical de pessoas bem intencionadas, religiosas, mais ou menos bem situadas, cuja ida ao culto é uma busca sincera de Deus, misturada com um anseio por segurança e auto-confirmação, mas que não sofrem seu discipulado?
Para uma tal comunidade de ouvintes sugiro que o pregador leia o texto, e explique brevemente a quem ele foi dirigido e o que pretendeu transmitir aos seus leitores. E então o pregador deverá dizer por que esse texto não serve para cristãos que não sofrem seu discipulado. Dessa forma o texto servirá, desta vez, apenas como pretexto (e por que não?) para que o pregador pergunte, com sua comunidade, se realmente é possível uma comunidade, um cristianismo, um discipulado, sem a aflição e a sensação de abandono.
Esta prédica terá que ser poimênica. A comunidade deverá sentir a solidariedade pastoral do pregador. A prédica não será uma lista impiedosa de perguntas acusadoras, mas uma busca sincera e honesta do pregador humilde e também pecador, com sua comunidade, pelo significado do discipulado.
Para o pregador que julgar adequado seguir por este caminho, sugiro o que segue para o desenvolvimento de uma prédica:
I – Um texto que não serve para nós
a) Ainda antes da leitura pode ser dito à comunidade que o texto que segue não serve para nós.
b) Leitura do texto – a situação dos discípulos endereçados por João, ontem e hoje, (16.2; cf. acima a parte l) – a mensagem do texto em tal situação. (Esta parte deve ser muito breve e apenas registrar o essencial).
c) Por que o texto não serve para nós? Porque aparentemen¬te o nosso discipulado, o nosso ser cristão não nos aflige tanto assim. Podemos estar aflitos por uma série de outros motivos, mas o nosso ser cristão dificilmente nos causa dor de cabeça.
d) Que fazer, então, com o nosso texto? Talvez seja bom nos expormos ao seu desafio, deixarmos que questione nossa maneira de ser cristãos. Todo discipulado implica aflição, ou não?
Por que sofriam aflição os discípulos endereçados por João? Porque eram tão diferentes do mundo. Porque tinham valores diferentes dos valores do mundo. Isto é: As coisas que eles julgavam importantes na vida não eram as coisas que o mundo julgava importantes (Cada pregador saberá como desenvolver este ponto; cf. acima l /a). Então entravam em choque com o mundo, com cujos valores estavam em flagrante contradição.
II – Por que nosso ser cristão é tão fácil?
a) Dos discípulos endereçados por João nos vem, então, a pergunta: Por que nosso ser cristão é tão fácil: pelo menos, tão mais fácil que o deles – e de outros discípulos de hoje que conhecemos? Por que nosso ser cristão não nos causa aflição? Talvez seja porque não permitimos que ocorra em nós e através de nós um verdadeiro confronto entre os valores do discipulado e os valores do mundo.
b) Eles eram bem diferentes do mundo naquilo que achavam importante, naquilo em que investiam sua energia e sua vida. Tão diferentes, que o mundo não os aturava e os perseguia. Mas, por que é que o mundo atura a nós, como cristãos: e não só nos atura mas até concede-nos lugar de destaque em suas solenidades e atos festivos? Talvez seja porque não somos assim tão diferentes do mundo. Talvez sejamos mesmo muito iguais ao mundo. Aparentemente a verdada que trazemos conosco não nos muda, não nos faz diferentes, mas é por nós domesticada, permitindo que nos acomodemos, em boa harmonia com o mundo.
c) Seria isso um indício de que não somos lá tão cristãos assim? E, se não somos tão cristãos assim, que significado tem nossa participação no culto e na vida da comunidade? Não seria isso talvez uma busca – muito honesta e sincera, é verdade – por segurança, por estabilidade, e nem tanto uma busca pela vontade de Deus?
III — O que podemos fazer?
a) Se esta é a nossa situação, o que podemos fazer? Podemos, estimulados pelo desafio desse nosso texto, repensar o nosso ser cristão. Façamos isto em atitude de oração, sem querer defender posições com unhas e dentes, mas de mente aberta. Estejamos dispostos a ouvir qual é realmente a vontade de Deus para os discípulos de Jesus, e deixemos que essa vontade nos atinja. (Ao pregador não faltarão elementos para discorrer sobre esta vontade).
b) Como os discípulos endereçados por João, também nós podemos confiar que o Ajudador nos guiará a toda a verdade. Demos-lhe ouvidos. Este pode ser o início de uma vida cristã mais autêntica.
VI — Bibliografia
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