Prédica: João 17.9-19
Autor: Gerd Uwe Kliewer
Data Litúrgica: Domingo Judica
Data da Pregação: 01/04/1979
Proclamar Libertação – Volume: IV
ENVIADOS AO MUNDO…
I – Procurando entender o texto
A perícope é parte da assim chamada oração sacerdotal de Cristo. A situação: Jesus está em Jerusalém. Iniciou a paixão. Ele acaba de dar, na ceia com os seus discípulos, um exemplo de humildade e amor fraterno, lavando-lhes os pés. O traidor foi denunciado e saiu para completar a sua traição. Jesus sabe que os dias junto com os seus são contados. Que será dos seus discípulos? E da comunidade dos que nele creram? A preocupação leva à oração. Uma oração pública, dirigida, naturalmente, a Deus, mas destinada também aos ouvidos dos presentes. Que procura orientar, confortar, ensinar aos ouvintes, conscientizá-los da nova situação em que eles deverão viver. Uma oração semelhante àquela que o pregador profere antes ou depois da sua prédica, para preparar a comunidade para os pensamentos expressos na prédica ou para resumir estes.
A oração está colocada como conclusão de uma série de ensinamentos, promessas e admoestações (caps. 13,31 – 16,33). Mas Bultmann tem razão quando acha que o material coletado nos caps. 13-17 não parece estar muito bem organizado, e que provavelmente houve confusão dos diversos trechos. (Bultmann, p. 349ss) Na tentativa de reorganizá-lo, ele coloca a oração sacerdotal depois de Jo 13,30. Então Jesus teria, após o afastamento do traidor, com os ânimos dos discípulos ainda exaltados, feito esta oração, cujos temas centrais depois são desdobrados nos ensinamentos e nas . palavras de despedida de Jo 13,31-35; 15,1 – 16,33; 13,36 – 14,15 e completadas com a promessa do Consolador em 14,16-31, quando então ele ordena: Levantai-vos, vamo-nos daqui! (14,31) e vai para Getsêmani.
Se essa reordenação está certa, não sei responder; mas é evidente que redator, evangelista e copistas mexeram no texto. Devido às diversas inclusões tenho dificuldades em descobrir os pontos principais; mas destacam-se os seguintes motivos:
– Jesus sai deste mundo, e isso é a realização completa da alegria, da salvação escatológica para os discípulos.
– Os discípulos ficam neste mundo, sem a tuteia de Jesus. Estão no mundo, mas não são do mundo. Foram enviados a este mundo por Jesus, assim como este foi enviado pelo Pai. Eles têm a palavra de Deus, e isto faz com que o mundo os odeie.
– Intercessão de Jesus: Preserva-os em teu nome. Não os tires do mundo, mas guarda-os do mal. Santifica-os na verdade que é a tua palavra.
– A unidade de Jesus com a sua comunidade: Através deles eu me santifico, para que também eles sejam santificados na verdade.
Parece-me que o escopo central se deriva da preocupação de Jesus com a comunidade que ele deixa no mundo. Qual a situação desta comunidade? Ele a define: Estão no mundo, mas não são do mundo.
Que significa isto? Se eles não são do mundo, de quem então?
Pertencem a Deus e com isso a Jesus que foi glorificado neles (v 10). O mundo não tem mais poder sobre eles. Que mundo é este9 O universo? A criação? O mundo dos homens? Entendo que a ultima definição chega mais perto daquilo que João designa por mundo Deus amou o mundo (Jo 3.16), seu Filho veio para salvá-lo, não para julgá-lo (Jo 3.1 7; 12,47): Jesus, o Cordeiro de Deus, assume o pecado do mundo (Jo 1.29). Essas afirmações só fazem sentido se entendemos este mundo como o mundo dos homens, o universo no qual eles convivem, se relacionam entre si e com o ambiente natural. Hoje em dia faiamos em sistemas sócio-culturais e estruturas. Será que podemos dizer: Assim Deus amou o sistema sociocultural dos homens que mandou o seu Filho unigênito… ou 'Vede o Cordeiro de Deus que carrega os pecados do sistema sócio-cultural? Soa meio esquisito, mas dá sentido. E os versículos 15 e 16: Não peço que os tires deste sistema sócio-cultural, mas que os preserves do mal. Não são das estruturas vigentes, como também eu não sou Fica razoável, não fica?
Definido assim, qual a relação de Deus para com este mundo. Ele o ama. Não o ama como alguém que gosta, se aproveita, se diverte nessas estruturas. Não. Ama-o por causa cio homem que, de um lado, precisa dessas estruturas para poder viver a sua vida humana, mas que, de outro lado, não encontra neste mundo a sua realização ultima. Por isso ele manda o seu Filho para dentro desse sistema Não para tirar o homem dessas estruturas, mas para
salvá-lo dentro delas. A salvação nos vem aqui e agora, neste mundo.
Mas apesar de este sistema ser amado por Deus, ele não deixa de ser mundo caído. Ele é escuridão que resiste à luz (Jo 1.5), não reconhece a luz (Jo 1.10). Este mundo dos homens é uma entidade que se opõe a Deus e à sua salvação; é governada pelo príncipe deste mundo (Jo 12.31; 16.11). Este, porém, já está julgado e o mundo vencido por Jesus Cristo (Jo 16.11,33). Como se manifesta esta vitória? No surgimento, através da proclamação de Jesus, de um grupo de homens que não são do mundo, mas de Deus, e permanecem nele, e Deus (Jesus Cristo) neles (Jo 17.14,16). Esse grupo dos crentes em Jesus – a comunidade – vive uma relação diferente com as estruturas deste mundo. Continuam no mundo (v.11; só Jesus vai para junto de Deus) mas não são do mundo. Jesus deixa bem claro que não se trata de uma situação meramente acidental, espúria: Não peço que os tires do mundo. (v.15). Eles têm que ficar neste mundo, no seu ambiente sociocultural, é aqui que se deve provar a fé. Eles são mandados para dentro das estruturas (v.18). Mas ao mesmo tempo vale que eles não são do mundo. São de Deus (v.9). Pertencem a um novo mundo, trazido por Jesus e embrionariamente presente na comunidade dos que creem na sua palavra que é a verdade (v.17). Eles reconhece¬ram e aceitaram o único mandamento de Jesus: Amai uns aos outros como eu vos amei, para que também vós ameis uns aos outros (Jo 13.34). E o cumprimento deste mandamento é o sinal distintivo dos que vivem no mundo (Jo 13,35). Ele relativiza todas as normas, leis e costumes vigentes no sistema sociocultural. Para o seguidor de Jesus Cristo as leis deste mundo não têm mais valor absoluto, as modas perdem o seu poder de coerção. Isto significa que o cristão não precisa das coisas deste mundo, que ele as rejeita. se abstém delas? Não é bem assim. Lutero diz que 'estar no mundo significa estar nessa realidade concreta e usar os bens desse mundo: Eles (os discípulos) estão no mundo, veem, ouvem e comem aqui na terra, usam os cinco sentidos e os quatro elementos do mundo, vestem manto e paletó, têm dinheiro e bens; por isso estão ainda no mundo. (Luthers Werke, Calwer Ausgabe 3, p. 300) Mas não estão mais subordinados a estas coisas, não permitem que as suas necessidades físicas, os seus interesses económicos e as exigências sociais determinem a sua vida de maneira absoluta. Sua vida é determinada pelo mandamento do amor. Ë esse o escândalo, é por isso que o mundo os odeia, pois o mundo não aceita este mandamento. Não o aceita, porque é contrário a seus interesses. Surge daí a inimizade, o antagonismo (= oposição irredutível) do mundo com Deus e com tudo que é de Deus. (Compare tb. 1 Jo 1,15-17).
II – Procurando situar o texto no presente
Jesus deu muitos exemplos de que ele colocava o amor acima das leis e os costumes deste mundo: realizou curas no sábado, foi para a casa de marginalizados e prostitutas, colheu alimento no sábado. De outro lado, não rejeitou comida nem bebida boa. Fez vinho para os comensais de uma festa de casamento. Pedro teve que aprender de maneira drástica que às leis religiosas deste mundo não valiam mais para a comunidade cristã (At 10,9-20). Paulo se aproveitou das facilidades de comunicação que o Império Romano proporcionava e dos seus direitos de cidadão romano (At 22,25). O nosso texto reflete muito bem a situação da comunidade cristã no primeiro século em que esta é rejeitada, mal entendida, odiada, perseguida pelos poderosos do sistema sócio-político, mas ao mesmo tempo é beneficiada pelas estruturas deste sistema, organizando os seus deserdados e marginalizados, usando as suas comunicações existentes, aproveitando o sincretismo cultural para evoluir a sua mensagem. E a inimizade do mundo, dispersando os crentes, agiu como força motriz da expansão do cristianismo.
E hoje? Do antagonismo entre mundo e Cristo, vigente nos primeiros séculos, nós evoluímos para a cultura ocidental e cristã que se expande por todo o universo e que pretende ter assimilado, pelo menos em parte, os mandamentos de Jesus nas suas estruturas. Surge a pergunta: O nosso sistema sociocultural também se enquadra na categoria mundo que o evangelista João usa? Sem negar os efeitos benéficos que o cristianismo possa ter tido no processo de organização social, ouso afirmar que estamos longe do Reino de Deus nesta terra e que o antagonismo fundamental entre Deus e o nosso sistema sociocultural continua. Se isto for assim, levantam-se perguntas para nós, os cristãos de hoje: Como nós hoje expressamos o nosso estar no mundo, mas não ser do mundo? Será que não somos do mundo? Vejamos algumas evidências:
Facilmente sucumbimos ante as exigências que o nosso sistema coloca. Ele por exemplo exige que sejamos produtivos, competentes, trabalhadores. Nisso não há nenhum mal, mas será que pode ser o sentido da vida? Outra exigência é a de consumir o máximo possível. Quem consome, tem status, é alguém. Decerto conhecemos a propaganda da TV do tipo: Você viu a fulana de tal? Comprou uma sala de estar, toda novinha!-Não diga!……… E porque a fulana comprou, nós também temos que comprar, pois agora é moda. Leio num boletim de comunidade, em matéria escrita pelo pastor: Quando alguém da comunidade enriquece, ele compra um carro novo, uma casa luxuosa e arranja uma amante. É. São estas as estruturas que nos dominam. Um pastor, vendo o meu carro (um fusca de muita tradição, ano 1961) disse: Se eu aparecesse com um carro desses na frente da casa dos meus membros, já não teria mais vez, estaria desacreditado. Produzir, consumir…. é esse o ritmo que o nosso sistema nos impõe. E nós vamos na onda. Naturalmente não há nada de mal no consumo em si Viver é consumir. Mas o que há é uma perversão. Em vez de satisfazer as simples necessidades físicas, o consumo se torna uma necessidade ideológica, pretende proporcionar realização pessoal, transforma-se num fator de imposição, opressão, classificação.
Outra presença constante no nosso sistema é o medo. Pensando um pouco, acorrem-me muitas coisas das quais o cristão médio tem medo: medo do comunismo, dos russos – não é esse medo que mantém a máquina do armamento em andamento? Medo de ladrões – as casas dos cristãos na minha comunidade são as mais bem guardadas por grades e cadeados. Medo do caos social – portanto defendemos a ordem às custas da justiça. Medo da morte, da doença, medo de perder o que temos, medo do exame, do futuro, de espíritos, maus olhares, medo de Deus. .
Também a igreja não escapa às forças do mundo. Sim, no que concerne as suas estruturas, ela parece ser bem mundana Ela se burocratiza, formaliza os procedimentos, constrói hierarquias, arroga-se poderes e procura dominar. E não só a nível de Secretaria Geral, mas também a nívei paroquiai. Se, por exemplo, um presbitério decide que Quem não paga contribuição não é enterrado. batizado, etc.. A lei quem paga, leva é claramente uma lei do nosso sistema. Pensando, então, na nossa Faculdade de Teologia, sinto-me bastante abalado. O aumento do número de estudantes exige regulamentos, sistemas de avaliação, verificações, cálculos de médias…. Parece importante, necessário para o bom funcionamento, para a boa formação. Mas é um sistema mundano e como tal não próprio da comunidade cristã. E se o abolíssemos? Aonde iríamos parar? Temos medo de imaginar isso.
Está aí o grande problema. O mundo – o sistema sociocultural – não é algo externo a nós. Nós o internalizamos As suas leis e normas, seus princípios e valores fazem parte da nossa personalidade, parecem-nos naturais, normais, expressão da vontade divina. Não conseguimos imaginar um mundo alternativo, diferente. Achamos que sempre foi assim, foi bom assim e deverá continuar assim. O mundo está dentro de nós. É também parte dos grupos em que nos reunimos, das comunidades que formamos. Nós somos o mundo. O mundo que está em oposição a Deus, mas que Deus amou de tal maneira que ele deu o seu Filho unigénito, para que todo aquele que nele crê, não pereça, mas tenha vida plena.
E está aí a nossa saída. Aos que nele crêem, Jesus traz a palavra de Deusque é a verdade, que liberta (Jo 8,32), a palavra que é ele mesmo que venceu o mundo (Jo 16,32). Vencer o mundo não significa julgá-lo, condená-lo categoricamente, afastar-se dele. Está aí o problema oposto, também presente na atualidade. Grupos cristãos pronunciando seu anátema generalizado sobre este mundo, negando realidade e relevância às coisas deste mundo, proclamando não quererem nada com as estruturas mundanas (na verdade, muitas vezes, estão por demais integrados nelas). Combatendo o mundo como se ele fosse o demônio. Conhecemos isso dos grupos pentecostais, adventistas e semelhantes. Mas encontramos a mesma atitude na nossa igreja. Sem dúvida há, no nosso sistema sociocultural, aspectos condenáveis. Mas esses devem ser descobertos e combatidos num processo mais especificado. Se o mundo fosse o mal em si, então Jesus oraria: Tira-os deste mundo. Não. Vencer o mundo significa livrar-se do seu poder coercitivo absoluto, tornar-se senhor dele, senhor das suas estruturas (e observe-se que aqui estou falando do mundo enquanto sistema sociocultural, não do mundo natural, quero dizer: não me torno senhor das matas, dos rios, dos campos para derrubá-los, poluí-los, destruí-los, mas senhor das leis do sistema que manda destruir, poluir, derrubar em nome do egoísmo descarado). Significa ter como se não tivesse…. Significa usar e viver as coisas e regras deste mundo sem deixar-se envolver por elas. Respeitar as coisas deste mundo sem subordinar-se a elas. Fazer uso das possibilidades que as suas estruturas oferecem para promover o amor entre os homens, para fortalecer-nos na tribulação, apoiar-nos mutuamente. Tornar-se livre no mundo, do mundo, perante o mundo e através do mundo.
Pois nesse último aspecto – o do aproveitamento do mundo sociocultural para a promoção dos objetivos do amor – também pecamos. Com que eficiência sistemas capitalistas, militares, ideológicos fazem uso das técnicas modernas de comunicação e de organização, para unir forças, impor interesses, defender posições e aumentar áreas de influência. E quão tímidos, em comparação, são os esforços dos cristãos de usar as mesmas técnicas para um trabalho de promoção do amor e da fraternidade.
III – Tentando pregar a partir do texto
Acho que desenvolveria a prédica em torno da relação cristão-mundo. Essa relação desdobraria em quatro tópicos:
1. A liberdade dos cristãos frente ao mundo: A comunidade cristã e de Deus, não do mundo. Com isso ela tem uma liberdade maravilhosa frente às estruturas e pressões deste mundo. Essa liberdade é uma vacina poderosa contra todos os ismos – comunismo, capitalismo, consumismo, egoísmo, militarismo…. O cristão nunca será um bom comunista, pois rejeitara o caráter absoluto dessa doutrina. Também nunca será um bom capitalista, pois não poderá aceitar a procura do lucro como norma única. Será mau consumidor por se negar à ideologia do consumo. Subordinará todas as suas lealdades – de empregado, executivo, militar – à lealdade a seu Senhor. E devido a essa sua liberdade o cristão – e a comunidade cristã – pode viver em qualquer sistema, seja ele democrático ou comunista, totalitário ou liberal. Pois a sua liberdade emana de Deus, não do sistema. Pergunta: Essa liberdade está presente entre nós, que nos chamamos de cristãos?
2. A inserção do cristão nas estruturas do mundo: A liberdade não desliga o cristão da sua realidade sociocultural. Como Jesus veio para dentro das estruturas do mundo, também a sua comunidade vive a sua fé cristã nelas. E faz isso não de maneira forçada, com má vontade. Participa, apesar de sua distância crítica, sabendo que a salvação acontece aqui e agora. E usa responsavelmente as possibilidades que este mundo oferece para os objetivos do amor divino.
3. O antagonismo dos cristãos com este mundo: A inserção nas estruturas deste mundo não resolve o antagonismo entre a comunidade cristã e o mundo. A sua lealdade é outra. Nunca a comunidade esquece o poder de sedução, de corrupção deste mundo e repete a oração de Jesus: Guarda-os do mal. Dispostos a viverem em qualquer sistema sociocultural, os cristãos nunca se conformarão – no sentido literal da palavra – com qualquer desses sistemas.
4. A felicidade dos cristãos neste mundo: Apesar da complexidade do seu relacionamento com o mundo, a existência da comunidade cristã é uma existência feliz. Sem dúvida há tribulações e ódios (se não os há, provavelmente alguma coisa na relação comunidade-mundo está errada). Mas essas tribulações não conseguem abafar a promessa do gozo completo (Jo 17.13) presente aqui neste mundo na palavra da verdade, nem a fé firme de que Deus os guarda em seu nome (v. 11).
IV – Indicações bibliográficas
Bultmann. Rudolf. Das Evangelium des Johannes. Göttingen. 1950.
Konings. Johan. Encontro com o quarto Evangelho. Petrópolis. 1975.