Prédica: Lucas 7.11-17
Autor: Meinrad Piske
Data Litúrgica: 16º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 30/09/1979
Proclamar Libertação – Volume: IV
I — Considerações exegéticas
A perícope está inserida entre o relato da cura do servo do centurião de Cafarnaum (7.1-10) e a vinda dos mensageiros de João Batista que perguntam pela messianidade de Jesus: És tu aquele que estava para vir ou esperaremos outro? Nota-se nas três perícopes, em sua sequência, um assunto comum que as une e, mais do que isto, a intensificação deste mesmo assunto que é a ressurreição. A cura à distância do servo do centurião de Cafarnaum, que estava doente, quase à morte (v.2), prepara o relato da ressurreição do jovem de Naim, que estava sendo levado ao cemitério (v.12); os dois relatos preparam nesta sua sequência a resposta de Jesus aos mensageiros de João Batista, que diz: os mortos são ressuscitados (v.22). Apenas partindo do aspecto redacional podemos afirmar que o interesse destes relatos, e especificamente do relato da ressurreição do jovem de Naim, é demonstrar que Jesus é o Messias e que com ele o tempo da realização das promessas messiânicas chegou.
Além desta história, os Evangelhos conhecem mais duas outras sobre ressurreições de pessoas, uma relatada apenas por João (Jo 11), a ressurreição de Lázaro, e a outra – a ressurreição da filha de Jairo – relatada pelos três evangelhos sinóticos (Mt 9, Mc 5, Lc 8). A ressurreição do filho da viúva de Naim é relatada apenas no Evangelho de Lucas.
Também o livro de Atos conhece dois relatos de ressurreições, ambas realizadas por intermédio de apóstolos: a ressurreição de Tabita, por intermédio de Pedro (At 9), e a ressurreição do jovem Êutico, por intermédio de Paulo (At 20). Existe também um parentesco entre estes relatos do Novo Testamento e as histórias do Antigo Testamento que, segundo alguns exegetas, servem de modelos para as ressurreições nos Evangelhos e no livro de Atos, a ressurreição do filho da viúva de Sarepta, por intermédio de Elias (1 Rs 17), e a ressurreição do filho da sunamita, por intermédio de Eliseu (2 Rs 4).
A característica maior dos milagres de ressurreição que os Evangelhos relatam, em comparação com os outros milagres relatados, está na intenção com que os Evangelistas os relataram, ou seja: anunciar que Jesus, o ressurreto e Senhor, tem poder sobre a morte. A intenção maior não é contar o que aconteceu em Naim, em Betânia ou em Cafarnaum com o filho da viúva, com Lázaro ou com a filha de Jairo, mas é testemunhar que Jesus Cristo, que morreu e ressuscitou, tem o poder sobre a morte. Não podemos deixar de considerar que os Evangelistas escrevem no tempo das comunidades cristãs que professam ser Jesus Cristo o Senhor ressurreto.
Se quiséssemos apenas considerar a autenticidade e veracidade do milagre em si, entendendo que o Evangelho nos relata algo sobre Jesus de Nazaré, estaríamos encurtando o Evangelho, e não entendendo a intenção de Lucas ao relatar este acontecimento. O teólogo Bultmann diz tratar-se, nesta história da ressurreição do filho da viúva de Naim, de uma composição literária de caráter secundário, provinda do helenismo judaico-cristão, onde diversos elementos, que compõem a perícope, são típicos para um milagre do helenismo, e aponta os seguintes: o encontro do milagreiro com o féretro, a multidão que age como testemunha, o fato de a mãe ser viúva e também a impressão que o milagre em si causa naqueles que assistem a tudo, o público. Mas aqui falta a intenção principal de Lucas, ou seja, a de testemunhar a Jesus como o Senhor sobre a morte. Analisando o texto detalhadamente nós descobrimos esta tendência em diversos pontos:
V. 11: Este versículo serve de elo de ligação entre a historia da cura do servo do centurião de Cafarnaum (7, 1-10) e o presente relato. Em dia subsequente ou depois disto, como sugerem algumas variantes do texto grego, Jesus dirige-se com os seus discípulos e seguido de numerosa multidão para uma cidade chamada Naim, nome que aparece apenas aqui e que se localiza a Sudeste de Nazaré, na Galileia.
V. 12: Uma outra multidão está saindo da cidade de Naim. Acompanha uma viúva cujo filho está sendo levado ao cemitério O fato de tratar-se de filho único de uma viúva é um agravante, pois com o filho único a viúva perde também o seu sustento futuro, bem como seu amparo. Na porta da cidade encontram-se as duas multidões, tendo uma no centro Jesus e a outra a viúva, cujo filho está sendo levado ao cemitério.
V. 13: Depois de descrever o cenário e terminar a introdução para o que vai acontecer, o Evangelista confronta Jesus com a viúva infeliz Jesus se compadece dela quando a vê. Importante é observar que Jesus – como fora descrito e denominado no versículo 11 – é descrito agora como SENHOR. Especialmente no Evangelho de Lucas encontramos em diversas passagens este título messiânico usado preferencialmente pelas primeiras comunidades cristãs para descreverem quem é Jesus (por exemplo: 7.19; 10.1; 10.39; 10.41; 11.39; 12.42; etc.). É na qualidade de SENHOR que Jesus age agora, quando ordena à mulher que não chore. Antes de qualquer gesto ou ato vem a palavra, a palavra que exige fé: Não chores. Na expressão SENHOR transparece o Senhor ressurreto.
V. 14: Todo o versículo reflete a ação soberana daquele que é SENHOR, tanto o tocar no esquife (não se importando que é proibido tocar num morto), como a palavra de ordem aos que o conduzem, como também a ordem – aqui bem acentuada -dirigida ao jovem morto: Jovem, eu te mando, levanta-te.
V. 15: A consequência desta palavra de ordem é que o jovem se levanta – obedece à ordem recebida – e começa a falar. Se a morte é o reino do silêncio, a palavra falada é o sinal da vida. Não é o jovem que vai ao encontro de sua mãe, mas é Jesus – soberanamente ele continua agindo – que o devolve à sua mãe.
V. 16: O temor é consequência normal em todos os lugares onde o poder de Deus se manifesta aos homens. Diversas vezes no Evangelho de Lucas podemos constatar esta verdade, tanto em Zacarias (1,12), no nascimento de João Batista (1,65), nos pastores na noite de Natal (2,9), como também na cura do paralítico de Cafarnaum (5,26), na história da tempestade acalmada por Jesus (8,25) e no relato da ressurreição (24,5). É uma das mais antigas experiências humanas, este temor que se manifesta sempre que o homem se vê confrontado com Deus. Isto também atesta o Antigo Testamento, desde Adão (Gn 3,10) até Moisés (ÊX 3,6) e Isaías (Is 6,5). O temor diante da revelação de Deus ou do poder de Deus é parte integrante da fé.
O povo que assistiu a tudo vê em Jesus o grande profeta, expressão usada também pelos discípulos no caminho de Emaús, quando descrevem quem é Jesus (Lc 24,19). Soa isto aqui como a lembrança do povo com respeito a Elias e Eliseu, os grandes profetas que ressuscitaram o filho da viúva de Sarepta e da sunamita, respectivamente.
Deus visitou o seu povo, esta expressão lembra o cântico de Zacarias, onde aparece de maneira idêntica em duas passagens (Lc 1.68 e 78). A presença de Deus que visita seu povo para redimi-lo é comemorada com estas palavras.
V. 17: Com R. Bultmann podemos dizer que este versículo parece ser uma composição redacional posterior, acrescentada mais tarde à perícope, porque o v. 16 já encerra de forma estilisticamente perfeita o relato. Toda a Judéia e cincunvizinhanças tomam conhecimento deste acontecimento. Provável é que o termo Judéia compreende toda a Palestina, a terra habitada pelo povo judeu.
Alguns exegetas querem ver neste versículo a indicação de que a ação de Jesus, comemorada no louvor do povo que a tudo assistiu, tem como consequência a ação missionária, a saber: testemunha-se que ele é Senhor sobre a morte.
II — Considerações teológicas
Não existe dúvida alguma para nós de que a ressurreição de Jesus Cristo e a esperança da ressurreição dos cristãos é um dos pontos fundamentais da fé e da doutrina cristã. Lembramos apenas a passagem clássica de 1 Co 15 para não esquecer este fato: Se Cristo não ressuscitou é vã a nossa pregação e vã a vossa fé (1 Co 15,14). Entendendo o milagre da ressurreição do filho da viúva de Naim como um testemunho sobre a ressurreição e do poder de Cristo sobre a morte, nós nos sabemos colocados no centro de nossa fé com esta história.
Mas não podemos esquecer o que escreveu Leonardo Boff: Não como quem volta à vida biológica que tinha antes, a exemplo de Lázaro ou do jovem de Naim, mas como quem, conservando sua identidade de Jesus de Nazaré, se manifestou totalmente transfigurado e plenamente realizado em suas possibilidades humanas e divinas. O que aconteceu não foi a revivificação de um cadáver, mas a radical transformação e transfiguração… (p. 135). Isto significa -nas palavras de Boff – que a história de Naim deve ser classificada como um milagre de revivificação e não como ressurreição. Ressurreição é muito mais que revivificação. Podemos ver o milagre de Naim apenas como um sinal da ressurreição e como um testemunho do senhorio de Jesus Cristo sobre a morte, mas não podemos querer identificar a revivificação com a esperança da ressurreição. Isto implica em usarmos o termo ressurreição com o devido cuidado quando falamos da história de Naim, de Lázaro ou da filha de Jairo.
Verdade é que nós estamos um tanto desorientados com relação aos milagres descritos no Novo Testamento. Não sabemos ao certo o que fazer com os milagres e como interpretá-los. Iwand já escreveu há cerca de 30 anos que está na hora de refletirmos novamente dogmaticamente sobre o milagre, e parece que ainda vivemos na dependência de uma reflexão mais acurada sobre este tema um tanto quanto omisso em nossa teologia.
De um lado temos a linha que defende a unhas e dentes a autenticidade dos milagres descritos no Novo Testamento, partindo de uma compreensão fundamentalista da Bíblia, e de outro lado temos a linha que parte da análise crítica e que olha com certo desprezo para estas perguntas. Tentativas de definir o que é milagre encontramos no Evangelischer Erwachsenenkatechismus e no livro de Lindolfo Weingaertner Adão, onde estás. Ambos apontam para o fato de que os milagres descritos na Bíblia são atos soberanos de Deus e que estes milagres são sinais desta soberania.
Neste sentido devemos ver o milagre da ressurreição – ou revivificação – do filho da viúva de Naim como um sinal da soberania de Jesus Cristo sobre o poder da morte. E devemos entender que o Evangelista, ao relatar o acontecimento, quer testemunhar o poder de Jesus Cristo, que a comunidade cristã conhece como o Senhor ressurreto. Este é o centro teológico que deve transparecer na prédica sobre este texto: mais do que isto, neste centro devemos procurar o escopo para a prédica.
III — Considerações situacionais
A nossa realidade brasileira se apresenta, sob o aspecto de milagres, numa miscelândia total. Se temos de um lado os chamados intelectuais que não acreditam de forma alguma em milagres e não admitem a possibilidade de um acontecimento extraordinário, temos por outro lado a grande maioria do povo brasileiro que acredita em milagres e espera milagres em toda a parte. Vale a pena ler e refletir sobre o artigo de Werner J. Dietz Culto Radiofônico – Bênção e Perigo, publicado no Anuário Evangélico de 1978. Apenas prestando um pouco de atenção para o que acontece no nosso meio, também nas nossas comunidades evangélicas, nós ficamos estarrecidos com a tal da crendice popular tantas vezes lograda e enganada – muitas vezes maldosamente – mas mesmo assim sempre de novo ressurgindo para novas esperanças de curas milagrosas, quer seja por intermédio de curandeiros tradicionais, os benzedores, quer seja por intermédio de macumbeiros e espíritas que fazem os passes, quer seja por intermédio dos milagreiros e curandeiros chamados cristãos e que querem e prometem em alto tom curar todas as doenças pelo poder de Jesus.
Por trás desta busca constante do milagre nós podemos procurar as causas que levam o nosso povo a este desesperado esperar por coisas sobrenaturais, e podemos ver que em grande parte se deve à educação que deixa muito a desejar, à péssima e miserável situação social (é mais fácil encontrar um curandeiro que enfrentar uma fila de INPS) e também ao mau preparo espiritual de nosso povo.
Dentro desta situação devemos pregar sobre um milagre, e a gente se pergunta se deve, involuntariamente, com a prédica, ainda colaborar com a ideologia milagreira que se alastra pelo Brasil ou se a gente não deve ter a coragem de negar o milagre, peio menos muitos milagres aclamados como tais, não só de boca em boca, mas também por intermédio de programas radiofônicos.
Ainda não ouvi num programa radiofônico a afirmação de que um destes nossos missionários milagreiros tenha ressuscitado alguém, mas na boca do povo existem estas afirmações acontecidas geralmente muito longe do lugar onde se está, impedindo assim a comprovação do fato. Mas com respeito aos mortos, quem causa sérios problemas é o espiritismo – ele não precisa ser procurado, pois os espíritas se apresentam por si só e transmitem mensagens que o falecido envia aos sobreviventes – o espiritismo causa problemas porque via de regra relativiza a morte ou até a cobre de uma aura de realização plena da pessoa humana, que não morreu, mas desencarnou.
É consolador ler e meditar que Jesus levou a sério a morte do jovem de Naim, que não tentou consolar com afirmações tão comuns em nossos dias, de que o morto está num mundo melhor, que agora está na luz, ou coisas semelhantes. Deveria ser um dos aspectos a serem considerados na prédica: se por um lado existe o desespero que a morte causa, existe por outro lado também o consolo fácil e barato de que o falecido partiu desta para a melhor.
Nossa realidade é moldada neste sentido muito mais pela ideia da imortalidade da alma do que pela fé na ressurreição. Esta fé na ressurreição deve ser despertada e este é um dos deveres nesta prédica. A morte não deve ter o aspecto horroroso e desesperador, mas também não deve ser relativizada com doces ópios do mundo melhor.
IV — A caminho da prédica
O lema da semana que inicia com o 16º. Domingo após Trindade é a passagem que diz: Nosso Salvador Cristo Jesus destruiu a morte e trouxe à luz a vida e a imortalidade mediante o Evangelho (2 Tm 1.10). Esta frase poderia ser citada como palavra de intróito na liturgia e ela pode servir de introdução para a prédica.
Entendo que a homilia é a forma mais apropriada e condizente para a prédica sobre este texto da ressurreição do jovem de Naim. Lembrando o conselho do teólogo de Heidelberg Rudolf Bohren -a palavra do texto é o que temos de mais precioso em nossa prédica – devemos deixar a própria história, o próprio texto falar. A história da ressurreição pode ser recontada pelo pregador que, na medida em que conta a história, medita com a comunidade sobre a mesma.
1 – Podemos citar no início o lema da semana e dizer que esta frase deve acompanhar-nos durante a semana e que nós devemos meditá-la. A história da ressurreição do jovem de Naim nos auxilia a compreender esta frase.
2 – Começamos então com a última frase do texto: Esta notícia se espalhou por toda a Judéia e circunvizinhanças, e afirmamos que se espalhou de tal maneira que chegou aos nossos dias, tendo sido inserida no Evangelho de Lucas. Podemos lembrar que Naim aparece apenas neste lugar no Novo Testamento e que nós conhecemos este nome somente porque ali Jesus ressuscitou um jovem.
3 – Jesus dirigiu-se a Naim e estava acompanhado pelos seus discípulos, e uma grande multidão o seguia. Conseguimos imaginar de que falava e qual o motivo daquelas pessoas que o seguiam. Tinham ouvido o que ensinava e tinham visto o que realizara.
4 – Uma outra multidão está saindo da cidade, vem vindo ao encontro de Jesus e daqueles que o seguem. Levam ao cemitério um jovem, filho único de uma viúva. Procuram demonstrar à viúva que perdeu seu filho a sua solidariedade. Uma cena que todos nós conhecemos e conseguimos imaginar com facilidade.
5 – Aqui se encontram a morte, de um lado, e, de outro, o Senhor da vida; o próprio texto ressalta isto quando denomina Jesus SENHOR. E na qualidade de Senhor Jesus age.
O seu senhorio e sua autoridade ele manifesta tendo compaixão da mulher que sofre. Importante é observar que Jesus é movido de compaixão pela viúva, sua atenção dirige-se primeiramente à mãe do jovem morto. Não está aqui retratado o sofrimento que a morte nos causa, quando nós temos de levar à sepultura um ente querido e nada mais podemos fazer do que chorar? Não é aqui que conhecemos o sofrimento e a dor? Jesus ordenou à mulher que não chorasse. Antes de fazer algo com respeito ao seu filho, ele da a ordem de não chorar, exige fé na sua palavra; Não ver para crer e sim crer e depois ver.
6 – Ele se dirige aos que levam o féretro e novamente com autoridade manda que eles parem e então dá a ordem ao jovem morto: Levanta-te. Por intermédio de sua Palavra ele ressuscita o morto.
7 – Do silêncio da morte surge o sinal de vida: o jovem levanta-se e fala. Jesus o dá novamente à sua mãe, restituindo a comunhão que fora aniquilada pela morte.
8 – Do temor nasce a fé e a confiança em Deus. Quem nunca experimentou este temor diante de Deus ainda não experimentou a grandeza e a majestade de Deus. O povo que a tudo assistiu tira as suas conclusões, e do temor nasce o louvor. Exaltam a pessoa de Jesus, descrevendo-o como sendo o grande profeta e enaltecendo a Deus por ter visitado o seu povo. Deus visitou o seu povo – este é o fundamento de nossa fé, pois Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o mundo (2 Co 5.19).
V — Bibliografia
– BOFF. Leonardo. Jesus Cristo Libertador. Petrópolis. 1972.
– BULTM ANN. Rudolf. Die Geschichte der synoptischen Tradition. Göttingen. 1961.
– DIETZ. Werner. Culto Radiofônico — Bênção e Perigo. In: Anuário Evangélico 1978. São Leopoldo.
– EVANGELISCHER ERWACHSENENKATECHISMUS. Gütersloh. 1975
– GOLLWITZER. Helmuth. Die Freude Gottes. Berlin.
– IWAND. Hans-.loachim. Preditftmeditationen. Göttingen. 1963.
– WEINGAERTNER. Lindolfo. Adão, onde estás? São Leopoldo. 1977.