Prédica: Mateus 22.1-14
Autor: Wilfrid Buchweitz
Data litúrgica: 20º Domingo após Trindade
Data da Pregação: 28/10/1979
Proclamar Libertação – Volume: IV
I — O Evangelho de Mateus
Uma visão geral do Evangelho de Mateus, sua intenção, missão e preocupações, encontra-se em um artigo de Gottfried Brakemeier em PROCLAMAR LIBERTAÇÃO II, de 1977, sob o título Observações Introdutórias Referentes ao Evangelho de Mateus.
Tomo a liberdade de relembrar e recomendar o referido artigo.
II — O nosso texto
Na tradução do texto há apenas variantes de pouco peso e nenhuma delas mudaria realmente o sentido da tradução de Almeida.
A parábola das bodas está inserida no trecho maior dos caps. 21-25, que se referem aos dias que Jesus viveu em Jerusalém antes do acontecimento da Paixão propriamente dita.
Há uma sequência de três parábolas, a parábola dos dois filhos, Mt 21,28-32, a parábola dos lavradores maus, Mt 21,33-46, e a parábola das bodas, Mt 22,1-14, todas elas com traços importantes muito semelhantes.
O trecho de 22,1-14 não se encontra em Marcos. Em Lucas 14,16-24 pode-se divisar a mesma parábola, mesmo que seja com traços bastante diferentes. A transmissão de parábola de Jesus, ate chegar até Mateus e Lucas, assumiu contornos bastante distintos. É possível reconhecer que se trata da mesma parábola, mas ao longo da tradição surgiram traços diversos que encontramos numa comparação de Mateus e Lucas Possivelmente os próprios Mateus e Lucas contribuíram para esta diversidade a partir de sua experiência do evangelho, do contexto em que se encontravam e da comunidade a quem queriam transmitir o evangelho.
O texto não contém maiores dificuldades para a sua compreensão. Mesmo assim, há dois pontos que merecem menção:
O primeiro refere-se aos vv. 7 e 8. Percebe-se que são uma inclusão, uma intercalação no fluxo normal da parábola. Lucas não menciona nada parecido. Por outro lado, não há dúvida que o conteúdo dos versículos é autenticamente de Mateus; veja, por exemplo, cap.21,33 e seguintes. Com a situação em mente, de que Israel rejeitou o convite de Deus. e com a preocupação de comunicar isso ao povo israelita, Mateus deve ter intercalado os vv. 6 e 7 sem se preocupar demasiadamente com a sequência estilística e traditória das palavras. Esta questão, por isso, não precisa preocupar.
O segundo ponto refere-se à questão da veste nupcial, v.11. Que vem a ser a veste nupcial? Qual é o sentido? Se os convidados são gente que vem das estradas e encruzilhadas, maus e bons, onde está o sentido da veste nupcial? A pergunta sempre causou e continua causando dor de cabeça aos exegetas. Basta ver uma divergência de opiniões bastante ampla. A mim me parece que a interpretação de Schlatter faz sentido. Ele diz que não se deveria querer sobrecarregar a passagem. Faz parte do convite que seja levado a sério, honrá-lo, dar-lhe o valor que tem. Sem veste nupcial senta-se à mesa das bodas quem permite que lhe perdoem os pecados, mas ao mesmo tempo quer conservá-los (Schlatter, p.328). Sem veste nupcial está quem aceita o convite para as bodas, mas dentro da sala de banquete quer fazer a sua própria festa, quem aceita o convite para o reino de Deus, mas ao mesmo tempo quer continuar construindo o seu próprio reino. Isso não é possível. Cada um dos dois reinos exclui o outro.
III — Exegese
O reino de Deus é dádiva, totalmente. Deus prepara tudo (v.4). Os convidados não precisam dobrar um dedo e não precisam contribuir com um tostão. O rei prepara toda a festa. A distribuição dos convites é indiscriminada. A preocupação é realizar a festa, encher a sala do banquete para abranger a todos, todo o mundo. O caráter de graça do reino de Deus difere de maneira impressionante do caráter de mérito de toda a religiosidade humana. Mateus se preocupa em dizer que Israel desempenhou um papel especial na implantação do reino de Deus no mundo. Israel foi escolhido primeiro, não por quaisquer méritos, mas pela liberdade que Deus tem. Israel não só desperdiçou este privilégio, mas desperdiçou o próprio reino. Israel não só desperdiçou displicentemente o reino, mas o rejeitou consciente e agressivamente. Por isso o convite de Deus não vai apenas além das fronteiras de Israel agora, mas passa por cima de Israel, deixa Israel de lado, esquece Israel e passa a outros povos. Agora outros povos se tornam privilegiados. O convite é universal. Quando num lugar ele é rejeitado, recusado, é estendido a outros, a quantos encontrardes (v.9), a maus e bons (v.10).
A preocupação de Mateus é de comunicar aos israelitas as verdades acima, tentar motivar Israel para que se enxergue, se reconheça diante da mensagem do reino e assim se converta Mateus crê na possibilidade de conversão de Israel, mesmo que seja muito tarde e se tenham perdido, recusado, muitas oportunidades.
Ao lado disso Mateus diz que diante da mensagem do reino as diferenças entre homens e povos se tornam nulas. Todos os homens são alvos da mensagem. A única barreira para a entrada no reino é a recusa dos próprios convidados. Só eles mesmos podem se excluir. Ninguém mais e nada mais. Eles podem se excluir com toda a liberdade. Mas estes não quiseram vir (v.3), eles não se importaram (v.5), e maltrataram e mataram os servos (v.6) Ninguém é obrigado a aceitar o convite. Ë verdade que a rejeição do convite tem consequências.
Também aceitar o convite tem consequências. Aceitar o convite, chamado, escolha de Deus, significa aceitar uma outra realidade, significa mudar de um mundo para outro, trocar de mundo, viver uma outra vida, adotar outro conteúdo de vida, viver a vida numa outra direção. O mundo do amor e da graça de Deus tem uma base e conteúdo todo próprios. Ali não cabe mais gente com a velha roupa de uma vida voltada para si mesmo. Faz parte da sala de banquete a roupa do amor a Deus e do amor a todos os outros convidados, da comunhão com Deus e todos os outros convidados, por mais diferentes e estranhos que estes sejam. Não querer por roupa nova, na sala de banquete, significa querer aceitar a graça de Deus, mas ao mesmo tempo querer continuar a viver a velha vida voltada para si mesmo. E isso é contra-senso. São duas coisa;, onde uma exclui a outra. Por isso este convidado precisa ser lançado fora.
O v.14 muitas vezes atrai uma atenção muito grande e desperta grande curiosidade e uma porção de perguntas Sou de opinião que ele não diz nada que já não tenha sido dito no texto Poderia ser entendido como uma espécie de resumo final Muitos são chamados tem o sentido de que o chamamento e amplo, abrangente, no sentido de que todos são chamados, o chamado é universal, o evangelho é oferta para o mundo inteiro, é dádiva para o mundo inteiro. Mas a conclusão plena do convite, o uso da oportunidade proporcionada, é restrito. Nem todos permitem que o círculo se feche, que a obra de Deus seja concluída. Só poucos permitem que Deus termine o seu propósito e possa dizer definitivamente sim a eles.
IV – Meditação
O reino de Deus é festa. É um privilégio pertencer a ele e participar dele. É uma situação, uma realidade, onde reina amor e graça. ËÉ me dado amor e graça sem que se imponham condições, sem que precise fazer ou dar algo em troca. Eu posso distribuir amor e graça também, sem precisar esperar ou pedir algo de volta de outros, sem me sentir superior ou credor de alguém. Como é difícil na vida dar algo a outros sem esperar retribuição ou receber algo sem querer retribuir. O reino de Deus oferece esta possibilidade. No batismo Deus me inclui em seu reino e eu opto por viver neste reino, continuo constantemente optando por viver nele e a participar da construção dele. Eu sou convidado e aceito tal qual sou, com todos os meus limites e falhas e omissões. Também isso não me é cobrado. Isso também não é cobrado aos companheiros da festa. O pastorado é uma oportunidade especial, muitas vezes com vantagens sobre outras profissões, de me ocupar com a Palavra que me dá condições de perceber e viver o reino. Por outro lado, o pastorado traz constantemente o perigo de ser vítima da rotina, de ler a Bíblia por hábito, de fazer orações por hábito, de realizar cultos, ofícios, visitas, reflexões, por hábito e rotina. E isso me assusta. Porque quando eu faço as coisas por rotina, isto é (ou não é?) muito mais grave do que quando um pedreiro faz seu serviço por rotina.
O reino de Deus não está entre nós na sua plenitude, está entre nós apenas em parte. Há sinais. Mas há também muita coisa que é contrária ao reino de Deus. Há muitas coisas que encobrem o reino de Deus e seus sinais. E a gente se impressiona, deixa-se envolver e prender por isso. Então surgem conflitos entre a realidade no reino de Deus e a realidade fora do reino de Deus. A consequência deste conflito é cruz. Assim a minha vida de cristão e de pastor é caracterizada por este conflito, pela cruz. Em nosso tempo a cruz é uma realidade presente no reino de Deus. Acho que se pode dizer que onde há reino de Deus neste mundo, ali há cruz. Será que dá para dizer que onde não há cruz não há reino de Deus? Ê isso que a teologia da cruz de Lutero quer dizer?
É um conflito constante o de pôr e tirar a veste nupcial Eu me deixo chamar por Deus, convidar, aceito o convite para o seu reino. Dentro do reino eu constantemente tiro a veste nupcial, deixo de lado o Rei, viro-lhe as costas, desprezo sua Palavra, não considero os outros convidados, aponto com o dedo para a sua roupa quando eles tiram a veste nupcial, rejeito-os quando a sua veste nupcial é de outro feitio ou cor que a minha. Isso também vale, talvez valha especialmente, em relação a meus colegas pastores. Uma outra visão teológica, uma outra concepção de trabalho, mais eficiência que a minha, menos eficiência que a minha, mais ordenado, menos, estudo de teologia, mais idade, menos idade bastam para que eu queira afastá-lo, anulá-lo, desprezá-lo, ou eu me afasto, anulo, desprezo a mim mesmo. Por que tanto ciúme profissional, e muitas vezes fofoca, justamente entre nós pastores? Que tristeza quando a gente durante dias, semanas, meses, conseguiu construir algo na comunidade, conseguiu crédito e confiança e então destrói tudo isso novamente através de um testemunho lamentável de meu relacionamento com um colega pastor. Mesmo assim, sem querer diminuir a minha responsabilidade, o banquete começou e o convite continua valendo e eu optei por aceitar o convite, como indivíduo e dentro da Igreja, como membro de uma igreja. Também estou disposto a pôr veste nupcial. Peço ao Rei, posso pedir ao Rei que ele me perdoe e permita que eu fique na festa. Peço aos outros convidados que estejam dispostos a festejar comigo e a aceitar que eu festeje com eles. Será que, às vezes, deveríamos pôr alguém na rua? Alguém que quer tirar vantagem da festa sem querer festejar conosco?
E a comunidade?
A comunidade da Faculdade é formada por estudantes e professores e seus familiares, por funcionários e por alguns vizinhos, todos moradores do Morro do Espelho e quase todos de alguma forma ligados a serviços diretos na igreja, isto é, todos convidados para a festa e todos aceitando o convite de uma ou outra forma. Seria muito difícil que em alguém na comunidade da Faculdade não estivesse acontecendo ou tivesse acontecido de alguma forma uma aceitação do convite para o reino de Deus E conhecido que para os estudantes o tempo de estudo e muitas vezes um tempo de definição e crise. Quando começam a trabalhar com teologia, também sob o aspecto científico, surgem muitas perguntas e dúvidas, acompanhadas de muito sofrimento, e quando junto com isso surge a pergunta se vale a pena ou se a gente está disposta a investir toda uma vida na promoção do reino de Deus, então por vezes surgem conflitos dolorosos. Ao mesmo tempo esta comunidade tem, como poucas outras, oportunidade de penetrar querigmática e cientificamente dentro do evangelho do reino de Deus Ao mesmo tempo, na realidade ela está marcada por muitas tensões, conflitos e agressões.
Os professores talvez se caracterizem sempre de novo pelo perigo de dominarem a teologia no aspecto científico, de se colocarem acima dela, de a manipularem, de não verem mais a perspectiva de fé e vida da teologia, de não se colocarem sob o querigma da teologia.
Tem que ser lembrado também que estudantes e professores, e os familiares, são afetados por isso, serão, ou já são, de maneira especial, servos e mensageiros do convite para o reino de Deus. Neste sentido o texto nos diz que não seremos ouvidos, não se importarão com a nossa mensagem e até seremos maltratados e mortos. Acho que muitas vezes temos pouca consciência disso. A maioria dos escândalos que acontecem com nós pastores não são escândalos evangélicos. Será que realmente pregamos a Palavra de tal maneira que poderiam nos maltratar e matar, mesmo que não em termos físicos? A pergunta se somos bons mensageiros, bons pastores, fiéis, coerentes, é uma pergunta séria.
O texto coloca qualquer comunidade numa forte tensão entre evangelho e lei. Sem dúvida o aspecto preponderante é o evangelho. Deus convida. Deus faz a festa. Deus inclui na festa, inclusive os maus e marginalizados. É um evangelho radical. Mas o texto também é muito insistente na necessidade da veste nupcial, da obediência à vontade de Deus, e o pregador corre o perigo de pregar a lei. Para ser fiel ao texto os dois pólos precisam ser considerados, e o pregador tem que cuidar para não descambar para este ou aquele lado em prejuízo do todo. Ë importante manter a tensão do texto.
Um aspecto ainda merece ser salientado. O convite no texto não e para atividades da comunidade, para cultos, reuniões, para outros serviços que a comunidade presta. O convite é muito mais radical. É um convite de participar no reino de Deus. Lembro-me de ter ouvido prédicas referindo-se ao convite como que sendo para cultos e outras atividades da comunidade. Não é este o sentido. É um convite para festejar e viver o reino de Deus.
Como posso pregar sobre o texto?
V — A prédica
1 – O reino de Deus é festa para a qual somos convidados incondicionalmente. Deus faz tudo. Deus dá tudo. Até gente das encruzilhadas, até homens maus, atravessam as portas da sala de banquetes. Vou tentar deixar este ponto bem claramente colocado. A dádiva de Deus e a nossa alegria por isso.
2 – Muita gente não se importa com o convite e o rejeita. O pessoal mais bem estabelecido, do centro da cidade, do centro da sociedade, se esquiva. Constroem seus próprios reinos – econômica, cultural, teológica(?), moralmente – e acham que podem dispensar o reino de Deus.
3 – Aceitam o convite os que estão à margem, inclusive os maus. Abrem-se-lhes as portas, o Rei festeja com eles, e eles podem festejar entre si. Acontece uma transformação. Quem recusa a transformação, quem não põe veste nupcial, rejeita o reino e é posto para fora.
4 – O reino de Deus ainda não foi estabelecido em sua plenitude. Podemos viver o reino de Deus e ao mesmo tempo vivemos o reino de que Deus ainda não tomou conta. Ele vai tomar conta, mas isso ainda não aconteceu. A realidade dos dois reinos causa conflitos e traz cruz. Onde há reino de Deus há cruz, imprescindivelmente, e para os que se prestam a ser servos para levar convites para o reino de Deus a cruz inclui desconsideração, desprezo, maus tratos e morte.
5 – É importante que se volte para o inicio. O reino de Deus e festa, para a qual Deus convida sem impor condições.
VI – Conclusão
Preguei à base do esquema acima aqui na Faculdade. Naturalmente tentei encher o esqueleto com carne. Tentei ser concreto na realidade da Faculdade, chamando as coisas pelos nomes. Ë importante que a concretização seja feita de acordo com a situação específica de cada comunidade. Que haja concretização. O reino de Deus, a festa de Deus, e os reinos que nós homens construímos para nós e que levam à recusa do reino de Deus, são coisas muito concretas e identificáveis em cada comunidade.
VII – Bibliografia
– CALVIN. Johannes. Auslegung der Heiligen Schrift. Vol 12. Neukirchener Verlag. 1966.
– EICHHOLZ, Georg. (Ed.) Herr, tue meine I.ippen auf 1. 4a ed.. Wuppertal-Barmen. 1959.
– SCHLATTER, Adolf. Schlatters Erlaeuterungen zum Neuen Testament. l. Teil. Stuttgart, 1947.
– SCHNIEWIND. Julius. Das Evangelium nach Matthäus. Göttingen, 1950.
– TEBBE, Walter. e outros. Gepredigt den Voelkern. Brecklum, 1960.