Prédica: Mateus 25.31-46
Autor: Walter Altmann
Data litúrgica: Penúltimo Domingo do ano Eclesiástico
Data da Pregação: 18/11/1979
Proclamar Libertação – Volume: IV
I – A relevância da perícope
A muito conhecida parábola do Grande julgamento tem inspirado a doutrina e ação social das igrejas. As grandes encíclicas sociais da Igreja Católica quase que invariavelmente a citam, particularmente o v.40 (Rerum Novarum, § 36; Mater et Magistra, § 109; Populorum Progressio, § 74). Também o Concílio Ecuménico Vaticano II a evoca, quando nos exorta a nos tornarmos próximos de todos os homens e a servi-los ativamente (Gaudium et Spes, § 27), Também a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil se deixa questionar por nossa parábola quando, a partir dela, introduz seu posicionamento social confessando a nossa omissão: Nós assim nos omitimos no âmbito das nossas comunidades, onde fechamos os olhos diante do que se passa ao redor de nossos templos. Nós assim nos omitimos em âmbito nacional, fechando os olhos diante das injustiças sofridas por compatriotas nossos. Nós assim nos omitimos diante do sofrimento de povos e indivíduos em todo o mundo. Assim agindo, tornamo-nos desobedientes e negamos aquele que confessamos como nosso Senhor. Cabe-nos, pois, como cristãos, como comunidade e como Igreja, reconhecer a nossa culpa, arrepender-nos e pedir perdão, expressando tudo isto numa ação eficaz em favor do Jesus faminto, sedento, forasteiro, nu, enfermo e preso, ao nosso redor. (Burger, p.43)
Se na inspiração ao posicionamento e à ação social das igrejas a presente perícope exerce um poder unificador, impulsionando as igrejas católica e evangélica a um caminho comum, ha nela também, por eventuais interpretações doutrinárias divergentes, um potencial desagregador. Refiro-me à tradicional controvérsia luterano-católica a respeito da justificação pela fé e santificação na caridade. Já antecipo que se trata, de ambas as partes, de trágico mal-entendido e precisamos fazer um esforço para não inserir o presente texto numa controvérsia teológico-doutrinal que segundo os diálogos católico-luteranos recentes deve ser considerada como perfeitamente superada (cf. Altmann/Weber, p.96s).
II – A perícope na teologia da libertação
Além de sua relevância no posicionamento das igrejas, a parábola do grande julgamento tem desempenhado um papel preponderante numa série de teólogos contemporâneos, particularmente teólogos latino-americanos da libertação.
Assim escreve Leonardo Boff, em seu famoso livro Jesus Cristo Libertador: Há um pecado que é radicalmente mortal: o pecado contra o espírito humanitário. Na parábola dos cristãos anônimos em Mt 25,31-46, o Juiz eterno não inquirirá ninguém pelos cânones da dogmática, nem se na vida de cada homem houve ou não uma referência explícita ao mistério de Cristo. Ele perguntará se tivermos feito alguma coisa em favor dos necessitados. Aqui se decide tudo. (Boff, p.108) Aqui, pois, Boff recorre como chave para o entendimento dessa passagem bíblica ao conhecido conceito, criado por Karl Rahner, dos cristãos anônimos, que na teologia de Rahner se caracterizam precisamente por evidenciar seu ser cristão (e assim sua orientação para o divino) por sua conduta, sem que esse ser cristão seja refletido conscientemente sequer por eles mesmos. Logo a seguir, variando o conceito sacramento do próximo de Yves Congar, Boff radicaliza ainda sua interpretação asseverando. O sacramento do irmão é absolutamente necessário para a salvação. (Ibidem)
O modo de alcançar a salvação é também o eixo das considerações de Juan Luis Segundo, quando aborda o presente texto. Assevera que há, a respeito, no Novo Testamento, duas linhas de pensamento. Uma apresenta a salvação condicionada a meios particulares: o ingresso na Igreja pela fé e pelo batismo (Segundo, p.19s., reportando-se a Mc 16,15s.). A outra – e aqui o texto-chave é Mt 25.31-46 – tem uma dimensão absolutamente universal (p.19), segundo a qual a vida eterna será a recompensa dos que tiverem amado de verdade, isto é, socorrido eficazmente a Deus feito homem (p.21). O conceito de salvação como recompensa a atos de amor praticados recorda terminologia católica tradicional que no passado suscitava a polémica evangélico-luterana, ciosa de defender o princípio da justificação pela fé. De fato, há de se perguntar se esse conceito faz jus à realidade intencionada pela parábola.'Mais adiante, Segundo tenta atingir uma síntese das duas linhas apresentadas, observando-se também nele a influência do pensamento rahneriano: cristão é o que sabe de antemão aquilo que Deus possibilitou a todos fazer: amar (p.22).
Já Gustavo Gutiérrez, em seu livro – entrementes clássico -Teologia da Libertação, estende mais as coordenadas deixando-nos entrever mais claramente a importância deste texto para a concepção teológica da Libertação. Trata-se do, texto-chave para todo um item intitulado A conversão ao próximo sob o capítulo Encontro com Deus na história (pp.164-171). Para ele são importantes três aspectos: o destaque dado à comunhão é à fraternidade como o sentido último da existência humana, a insistência em um amor que se dá em gestos concretos, acentuando a primazia do 'fazer' sobre o simples 'saber', e a revelação da necessária mediação humana para chegar ao Senhor. (p.166) O mais pequeno dos irmãos de Jesus é todo e qualquer necessitado, devendo-se considerar tão-somente dois fatores: o amor ao próximo deve ser um autêntico amor ao homem pelo próprio homem (p.170) e não por amor a Deus. De outra parte, é relevante na situação atual que o próximo não seja tomado apenas individualmente. Trata-se do homem localizado em suas coordenadas econômicas, sociais, culturais, raciais. É igualmente a classe social explorada, o povo dominado, a raça marginalizada. (p.171) Deste modo, o amor adquire dimensão histórico-política.
Essa perspectiva Hugo Assmann consegue sintetizar de forma impressionante quando, em seu livro Opresión – Liberación, Desafio a los cristianos, interpreta a conversão ao Reino e a Deus como conversão à transformação na história e conversão ao homem (p.154s). E referindo-se ao capítulo 25 de Mateus, afirma: Este é o paradoxo cristão de uma tremenda significação revolucionária: para converter-se a Deus e às perspectivas de seu Reino é necessário converter-se, aqui e agora, ao homem e à sua história. É na luta de libertação que se materializa o amor de Deus. (p.155)
Resumindo, encontramos nas interpretações citadas três linhas fundamentais: a) identificação de Deus ou de Cristo com o pobre e oprimido; b) o apelo à participação consciente no processo histórico, pela conversão ao ser humano necessitado; c) a salvação como recompensa pelos atos de amor assim praticados. Parece-me importante refletirmos à luz do texto sobre a inter-relação desses aspectos. O texto possui dois pólos: a presença de Cristo no necessitado e a cena do grande julgamento. Em ambos se impõe a pergunta pelo relacionamento entre a ação divina e a humana, numa tensão indissolúvel. Preparando-nos para essa reflexão conclusiva, recorremos a subsídios adicionais, agora sobretudo de teólogos evangélicos.
III — A perícope e a teologia evangélica
1. Os mais pequeninos
Quem seriam os mais pequeninos mencionados por Jesus: seus próprios discípulos, como em Mt 10.42 e 18.6-10, ou todo e qualquer ser humano necessitado? Os exegetas e teólogos estão divididos.
Lutero, em prédica de 1537, interpreta a parábola como referindo-se ao julgamento de cristãos em seu comportamento para com seus irmãos cristãos necessitados. A favor dessa interpretação conta, além dos textos de Mateus acima citados, o conceito, igualmente importante no primeiro evangelho, do envio, por parte de Jesus.de seus discípulos como seus representantes e seus pregadores (cap.10). Contudo, a colocação da perícope imediatamente antes da paixão (de alcance universal) de Jesus, o tema das bem-aventuranças (cf. também Mt 5.43-48) e a configuração original independente da parábola parecem indicar uma identificação mais ampla de Jesus com qualquer pobre, necessitado e sofredor. Assim também o entende Karl Barth: Jesus está oculto na existência de todo aquele que neste presente está faminto, sedento, forasteiro, nu, enfermo, preso. … Esses são seus mais pequeninos irmãos. Eles representam exemplarmente o mundo, pelo qual ele morreu e ressuscitou, com o qual ele assim … se declarou solidário. (Hl/2, p.611)
Também John A.T. Robinson, em seu renomado livrinho Um Deus Diferente (Honest to God), entende a passagem nesse sentido amplo. Empregando terminologia de Paul Tillich, diz: Deus, o incondicionado, não se pode encontrar senão nas relações condicionadas desta vida, com elas e sob elas: porque Ele é a sua profundidade e o seu último sentido. (p.75) Cristo é encontrado na humanidade comum, através do amor (p.76).
Voltando a Lutero, vamos encontrar que essa ideia, em outro contexto, não lhe era estranha. Encontramo-lo significativamente numa prédica (proferida em 1526) sobre Mt 22,34ss., a perícope sobre o duplo mandamento do amor. Para Lutero não se trata de um caminho de salvação própria, mas de uma nova vida no amor de Deus aos seres humanos, O mundo está cheio, cheio de Deus. Em todas as travessas, diante de tua porta encontras Cristo. … Ouve, ó homem miserável: se queres servir a Deus, tu o tens em tua casa, em tua criadagem e em teus filhos. Ensina-os a temer e amar a Deus e confiar só nele etc. Consola os vizinhos afligidos e doentes; ajuda-os com os teus bens, tua sabedoria, teus conhecimentos; não demitas
logo de tua casa os teus empregados e tuas empregadas, se estiverem doentes; com eles pões Cristo na rua. Não ouves Cristo dizer que aquilo que fizeste a um dos pequeninos, ele quer aceitá-lo como se o fizeste a Ele… Ouve o que eu te digo: se me queres amar, se queres me fazer um favor que me alegre, então ajuda os pobres com tudo quanto queres que seja feito a ti, se estiveres tão necessitado; assim realmente me amas. Cuida para não me deixares de lado. Eu quero ficar bem perto de ti, em cada ser humano pobre que necessita de tua ajuda e de teu ensino; eu estou bem dentro dele. (WA 20,514,27-515,29)
Nesse particular, pois, não há qualquer dissonância entre a teologia da libertação e Lutero. Até mesmo o motivo de que o amor não é devido a Deus, mas ao próximo, já encontramos claramente em Lutero, nele também com a consequência de que as obras cristãs não são devidas à igreja, mas ocorrem no cotidiano, na esfera secular do lar, da profissão e da ordem pública. Não deves fazer o bem a Deus e a seus santos, porque não necessitam disso. … Mas aos homens, aos homens, aos homens – não ouves? – aos homens deves fazer tudo quanto queres que seja feito a ti… (Sermonário de 1522, WA 10/1/2, 40,10-13).
É verdade que a exposição de Lutero é predominantemente um apelo ao indivíduo, embora não se deva esquecer que Lutero também foi um crítico de estruturas injustas e opressoras aos seres humanos. A acerba e constante polêmica contra a estrutura eclesiástica de seu tempo insere-se nesse contexto. Lutero foi igualmente um crítico da autoridade secular e política constituída, propugnando por reformas sociais necessárias. A imagem de um Lutero subserviente é errônea e obedece a interesses de sustenta cão de ordens estabelecidas. Contudo, Lutero tampouco foi um revolucionário. Teve sensibilidade para as necessidades humana:, mas não teve em seu tempo e em seu contexto as condições de perceber em toda a sua profundidade as realidades políticas, econômicas e sociais. A teologia da libertação indubitavelmente tem maior sensibilidade nesse âmbito. No entanto, nada nos impede de vermos, a partir das premissas de Lutero, o próximo necessitado como vítima de estruturas injustas, concluindo consequentemente que a identificação em amor para com ele deve assumir inevitavelmente dimensões político-sociais.
2. O estabelecimento do reino
Como se relaciona o apelo à fraternidade concreta com os mais pequeninos e o estabelecimento do reino de Deus? Não haverá dúvida de que o amor fraterno é manifestação da realidade presente do amor de Cristo e de seu reino. Contudo, a presente perícope não dá apoio a uma simples identificação de ambos os aspectos. A relação é mais dialética e estabelece também distinções claras. Os traços apocalípticos que mantêm a exclusividade da ação divina são por demais evidentes. O Filho do Homem virá em glória e se assentará no trono (v.31); ele separará as nações (v.32); os benditos entrarão no reino já preparado desde a fundação do mundo (v.34). O critério para a participação no reino não é o tê-lo estabelecido nem mesmo uma recompensa posterior para atos de amor exigidos como condição prévia, mas simplesmente o ter vivido concretamente, no relacionamento para com os mais pequeninos, de acordo com essa esperança e a partir da libertação com a identificação solidária já ocorrida no próprio Jesus. As ovelhas à direita terão vivido para com o próximo necessitado aquela mesma realidade experimentada em Cristo para com elas mesmas, na medida em que também eram necessitadas; enquanto isso, os cabritos à esquerda não vivenciaram essa realidade e portanto não viveram na libertação e na esperança.
Por conseguinte, se é verdade que nossa perícope não se coaduna com uma doutrina da justificação pela fé no sentido meramente forense, em que Deus apenas declararia justo o pecador, sem que se estabelecesse uma nova realidade de justiça, também é verdade que ela de modo algum contradiz a doutrina da justificação pela fé, como a encontramos em Paulo e no próprio Lutero. Para ambos, ser justificado pela fé significava a possibilidade real de viver a partir de Cristo, de sua obra, já livre do egoísmo e portanto livre para o próximo. Para a liberdade foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos submetais de novo a jugo de escravidão. Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade: porém não useis da liberdade para dar ocasião à carne (= egoísmo, interesse próprio); sede, antes, servos uns dos outros, pelo amor. (Gl 5.1 e 13) Lutero, por sua vez, numa prédica de 1522 sobre Mt 11.2-10, o expressa assim: Todas as outras obras, com exceção da fé, devemos fazê-las para o próximo. … Sabe que servir a Deus não é outra coisa, senão servir ao teu próximo, fazendo-lhe bem com amor, seja ele uma criança, uma mulher, um criado, um inimigo ou um amigo. … Olha para a tua vida. Se não te encontrares, como Cristo no Evangelho, em meio aos pobres e necessitados, então sabe que a tua fé ainda não é verdadeira e que certamente ainda não experimentaste em ti o favor e a obra de Cristo. (WA 10/1/2, 168-169)
Também o teólogo católico Xavier Pikaza, em brilhante análise de nosso texto, o vê inserido numa estrutura de pacto, em sua dupla expressão de assistência (sou vosso Deus, estou nos pequenos …) e de exigência (sereis meu povo, haveis de amar aos pequenos) (p.221). Ou dito em termos mais tradicionais: O juízo de Jesus começa sendo graça e somente depois é exigência. É graça porque o reino oferece perdão e vida aos pobres, pecadores, marginalizados e perdidos da terra: a revelação de Deus é como um triunfo do amor criador e transformador.'Somente depois, o juízo é exigência, pela graça de Deus já recebida o homem deve converter-se em graça para os outros; com Deus e a partir de Deus é preciso amar aos pequenos, pecadores e perdidos. (pp.222s)
Parece-me que só nessa relação, sob a liberdade de Cristo, qualquer ação poderá realmente ser interessada tão-somente no próprio próximo por ele mesmo, como o quer Gutiérrez. Fora dela toda exigência teria o peso de Lei escravizante. Também Karl Barth o vê assim. Segundo ele, a prova no juízo será de verificar se se.foi humano (Hl/2, p.611). Eles (os justos) de fato se viram em relação a seu próximo no mundo, em relação à sua tribulação totalmente 'mundana'; não tinham com ele quaisquer planos espirituais, mas foram justamente nessa forma obedientes sem qualquer enfeite ou alegação. (Ibidem) Tudo era simplesmente em favor do ser humano (p.612). Já que Jesus realmente lhes era conhecido como seu irmão, Deus como seu Pai, por isso deram de comer e beber, abrigaram, vestiram e visitaram. (ibidem) Aí está outra vez a vinculação com a justificação pela fé que libera para o humano e as necessidades concretas. Segundo Barth, essa também é a pergunta para a comunidade cristã, seus membros, para sua instituição, seu culto, sua pregação, sua teologia. O que tinha tudo isso a ver com os homens miseráveis que como tais são irmãos de Jesus? Em tudo isso foram também e em primeiro lugar simplesmente humanos? (Ibidem)
3. Cristo no próximo (Gutiérrez, p.164)
Cabe-nos ainda olhar mais de perto a identificação de Jesus com os mais pequeninos. Não há dúvida de que se trata do traço característico da vida e obra de Jesus. Assim os evangelhos no-lo apresentam. A mensagem e vida de Jesus estão integradas numa revelação de Deus: se fez pequeno com os pequenos, compartilha a humildade, perseguição morte do mundo; mas ao mesmo tempo ajuda aos pequenos: lhes oferece uma mensagem de esperança, lhes promete o reino e os liberta poderosamente no caminho (os cura, anima, exorta, salva). (Pikaza, p.223)
A parábola nos desafia: o próximo necessitado é Cristo para nós. Estamos tão acostumados a saber que Cristo vem a nós por sua palavra e pelos sacramentos que resistimos em ouvir e enxergar também esta mensagem. Mesmo assim, os pequeninos irmãos, os necessitados não nos revelam diretamente o Cristo, embora sejam de fato o Cristo necessitado para nossa liberdade e amor. Isso tem um sentido, precisamente em que a nossa solidariedade ao necessitado seja sem segundas intenções (a Cristo e portanto, indiretamente, por sua recompensa a nós), mas simplesmente humana e pelo ser humano. Traço significativo da parábola é que tanto o amor quanto a falta de amor para com os pequeninos ocorreram sem consciência de que se tratava do relacionamento com Jesus. (Esse aspecto é bastante realçado na prédica de Bultmann sobre a presente perícope. Segundo ela, somos julgados por nosso comportamento inconsciente porque é nele que se revela nosso ser, Devemos estar conscientes de que o julgamento depende do comportamento inconsciente e reconhecer que a essência de nosso ser é amor, dando-nos nosso real valor. Esse amor é um poder do qual não podemos nos apossar, mas que se apossa de nós, se nos abrimos a ele. Por isso Cristo nos narra a história, evidenciando o amor de Deus a nós.)
Assim, reconhecemos Cristo no próximo, porque a palavra de Jesus nos proclama essa identificação. Nesse sentido, de fato, o cristão é aquele que sabe de antemão (ou poderia sabê-lo). Em sua prédica sobre Mt 25.31-46, Lutero destaca que para o cristão a seriedade do juízo se estabelece justamente porque já agora essa verdade é pregada. Aqui se prega, lá é proferida a sentença. (p.201) A seguir, Lutero ilustra dramaticamente a cena do juízo: Quando então quiseres contestar a Cristo dizendo 'Eu não te vi', aí virá o diabo acusando: 'Mas então não houve pregadores corretos que vos pregaram corretamente a palavra de Cristo?' (p.204) Impressionante: o diabo como promotor do tribunal divino! De fato, a narrativa de Jesus é em si expressão de graça: a palavra e sua pregação abrem os olhos do ser humano para o fato de Cristo estar com o pobre. Portanto Cristo não exige nada sem que já estivesse presente. De modo que, sendo beneficiários da solidariedade de Jesus, também pode valer a realidade inversa: tornarmo-nos um Cristo para nosso próximo. Assim o expressa Lutero em sua obra Da Liberdade de um Cristão: Eu quero tornar-me um Cristo para o meu próximo, como Cristo mesmo se tornou para mim. …Vê, dessa maneira emanam da fé o amor e o prazer em Deus, e do amor emana uma vida livre, disposta, alegre para servir gratuitamente ao próximo, .. (WA 7,35) Para o cristão e a igreja, esse amor concreto torna-se então o teste para a autenticidade da pregação. Sem a solidariedade ativa com aqueles mais pequeninos, sem esse testemunho concreto de Jesus Cristo, o crucificado, que como tal é o próximo dos homens perdidos o seu testemunho seria nulo em sua totalidade, mesmo que em outro sentido fosse totalmente puro e completo. (Barth. IV/3, p. 1022)
Digna de nota é também a análise de Moltmann que distingue nos evangelhos uma dupla identificação de Cristo: uma é a identificação com a missão ativa, com seus enviados (Jo 20,21 e 23; Lc 10,16), outra é a identificação com a expectação passiva, quando se oculta em todo e qualquer sofredor (Moltmann, p.40). Com razão, Moltmann assinala que através dessa identificação Mateus 25 não faz dos pobres simples objetos da caridade cristã …, mas sujeitos do reino messiânico (p.41). Assim, Cristo se faz presente na missão dos fiéis e no sofrimento dos pequeninos. Sua comunidade constitui-se, portanto, da irmandade dos que crêem e dos pobres, dos que amam e dos prisioneiros, dos que têm esperança e dos enfermos. O apostolado afirma o que é a igreja; os pequeninos dizem onde ela se encontra. (Ibidem) Assim, a parábola para os cristãos se torna em ensejo de verificar onde se encontram localizados e de, eventualmente, mudar de lugar. Cristo já está onde estão os que sofrem.
IV – Conclusão
Podemos concluir. Desejo, a princípio, devolver a palavra outra vez a Pikaza, para sua conclusão:
Mt 25.31-46 implica numa visão dialética do Jesus histórico: a) por um lado foi ele o pobre: assume a pequenez e o sofrimento da terra, compartilhando a sorte dos homens e cumprindo em sua existência o sentido das bem-aventuranças primitivas (dos pobres, dos que choram, dos famintos); b) por outro lado, é aquele que ajuda ao pobre: evangeliza os pequenos, oferece amor e reino aos perdidos, cura, perdoa e reflete no mundo o mistério de Deus e de seu reino.
Essa dialética se radicaliza com a páscoa, a) Como Filho do homem, Jesus sofre nos perdidos da terra, fazendo-os compartilhar sua própria sorte, b) Mas é ao mesmo tempo o Senhor que os ajuda, Senhor que lhes revela a lei da existência (se descobre a Deus ali onde os homens se amam mutuamente). …
Por conseguinte, a libertação começa sendo graça: pode-se falar de salvação porque o Senhor Jesus se encontra nos pequenos, alenta no caminho da vida dos homens. No princípio tudo é graça. Mas tudo é imediatamente uma exigência: a salvação de Cristo se atualiza (se mediatiza) através do compromisso de ajuda inter-humana. Isso significa que Cristo se encontra nos pequenos (seus irmãos) e naqueles que têm querido ajudar a esses pequenos (são 'benditos de seu Pai' e por conseguinte irmãos de Jesus como os outros). …
A divisão em pequenos e naqueles que ajudam aos pequenos não se pode traduzir em estatística sociológica, nem neste mundo nem ao final dos tempos. … Ao mesmo tempo somos pequenos e devemos ajudar aos pequenos que estão ao nosso lado. A salvação será para nós graça (Cristo nos fez seus) e exigência (esse fazer-nos seus significa viver com ele e como ele para os outros). Cristologia e libertação humana se uniram para sempre de uma forma poderosa em Mt 25,31-46. (Pikaza, p.227s)
Voltemos agora ao nosso ponto de partida. Com justa razão e não por coincidência, a parábola do grande julgamento tem inspirado a doutrina das igrejas e a ação de numerosos cristãos, em gestos e atitudes concretas de solidariedade, justiça e amor. E isso independentemente de seu respectivo matiz confessional e denominacional. A parábola é evangelho e exortação que supera tais fronteiras.
A parábola é também um significativo (e positivo) teste para a superação da tradicional controvérsia católico-luterana a respeito da doutrina da justificação. A Deus pertence a primeira e a última palavra. A dignidade do ser humano consiste em poder e dever existir e agir entre elas, a partir delas e em correspondência com elas. São seus gestos e vivência provenientes da realidade de solidariedade com o ser humano, experimentada em Jesus, e direcionada para o cumprimento da promessa de consumação divina.
V — Breves considerações quanto à pregação
A presente contribuição não foi elaborada originalmente como auxílio homilético (cf. prefácio). Quer-me parecer, porém, que a pregação poderia seguir os três simples passos: os mais pequeninos – Jesus e os pequeninos- nós e os pequeninos.
1. Os mais pequeninos
Quem são os mais pequeninos? A própria parábola dá exemplos concretos que por sua universalidade são atuais ainda hoje. Busquem-se exemplos análogos da realidade circundante da comunidade, preferentemente nomes e casos concretos. A seguir, a pregação não deveria se contentar em levantar os exemplos, mas deveria também refletir sobre as causas do sofrimento humano evocado. Não se deveria também evitar o reconhecimento da reponsabilidade dos cristãos na causa dos sofrimentos.
2. Jesus e os pequeninos
Esse aspecto é simultaneamente desafiante-questionador e confortante-libertador. Não se deve omitir, mas ao contrário expor com toda clareza que nesta parábola Jesus se identifica precisamente com os necessitados e sofredores mencionados anteriormente. Para uma comunidade porventura estabelecida e bem conceituada, isso será um escândalo e poderá gerar protestos. Isso nada mais é do que atualização do escândalo da cruz, e um chamado concreto à mudança de vida.
Contudo, a identificação de Jesus com o fraco também é consoladora e libertadora, na medida em que Jesus não impõe condições prévias a partir de fora, mas se coloca dentro da realidade e ao lado de quem é fraco, possibilitando assim a mudança e uma nova vida. A angústia do não consigo amar, não consigo ir, é superada pela mensagem do tu podes amar, pois és amado, podes ir, portanto vai.
3. Nós e os pequeninos
Lembrando a cena do juízo na parábola, dever-se-ia aqui analisar as possibilidades concretas que há para os cristãos e a comunidade de ação solidária e libertadora junto com os pequeninos mencionados. Ambas as coisas deveriam ser incluídas: as possibilidades de solidariedade direta e imediata aos que sofrem e as possibilidades de ação indireta, atuando sobre as causas do sofrimento (por exemplo, através de instituições públicas, ações populares ou associações de classe).
VI – Bibliografia
– ALTMANN, Walter/WEBER, Bertholdo. Desafio às Igrejas. San Paulo/ São Leopoldo, 1976.
– ASSMANN, Hugo. Opresión – Liberación, Desafio a los Cristianos. Montevidéu, 1971.
– BARTH, KARL. Kirchliche Dogmatik. Vol I1I/2. 2a ed., Zollikon-Zurique. 1954; Vol IV/.3 Zollikon-Zurique, 1959.
– BOFF, Leonardo. Jesus Cristo Libertador. 2a ed., Petrópolis, 1972.
– BULTMANN. Rudolf. Prédica sobre Mt 25,31 46. In: Hören und Handeln. Homenagem a Ernst Wolf. Munique, 1962. pp.47-52.
– BURGER, Germano (ed.). Quem assume esta tarefa? Um Documentário de uma Igreja em Busca de sua Identidade. São Leopoldo, 1977.
– GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da Libertação. Petrópolis. 1975.
– LUTERO, Martinho. Prédica sobre Mt 25.31-46. In: Predigten über den Weg der Kirche. Munique e Hamburgo, 1967. pp.199-212.
-MOLTMANN, Jürgen. Paixão pela Vida. São Paulo. 1978.
– PIKAZA. Xabier. Mateo 25,31-46: Cristología y liberación. In: A. Vargas-Machuca (ed.). Jesucristo en la Historia y en la Fe. Madri e Salamanca, 1977. pp.220-228.
– ROBINSON, John A.T. Um Deus Diferente. Lisboa, 1967.
– SEGUNDO, Juan Luis. Teologia Aberta para o Leigo Adulto, Vol. 1: Essa Comunidade chamada Igreja. São Paulo, 1976.