Prédica: Mateus 4.1-11
Autor: Walter Altmann
Data Litúrgica: Domingo Invocavit
Data da Pregação: 04/03/1979
Proclamar Libertação – Volume: IV
I — Recordando
Segundo a mensagem bíblica, está absolutamente claro que o ser humano não vive do pão, mas de toda palavra que procede da boca de Deus. Contudo, também é meridianamente evidente que Deus concede e dá ao ser humano seu pão. O ser humano pode pedi-lo a Ele, pode obtê-lo através do trabalho de suas mãos. Aquele que o possui deve parti-lo e reparti-lo com aquele que não o tem. Finalmente, Deus, deste ou daquele modo, deseja conceder o pão sempre de novo. A mensagem bíblica apresenta Deus, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, como o amigo do pobre, que é obrigado a viver sem o pão, e inteiramente como inimigo daquele que o rouba do pobre ou a este impede, direta ou indiretamente, o acesso ao pão. (Barth, pp.394s)
Aí é necessária uma arte, para a qual são incapazes carne e sangue, que é a arte do Espírito Santo: é preciso distinguir e divisar correta e seguramente a palavra de Deus, se é citada correta ou falsamente. Pois também o diabo sabe empregar a Escritura para si; e ele o prova diante do supremo mestre, o próprio Cristo. Por isso não te deixes assustar tão rapidamente, quando os bandidos do espírito… atacam com o clamor: 'Aqui está a Escritura, aqui está a palavra de Deus etc.!'. Ao contrário, emprega Escritura contra Escritura, como Cristo aqui o faz. (Lutero, p.105)
O sistema diz: estes que assumem a causa dos pequenos e sem defesa são subversivos, traidores, inimigos dos homens, amal¬diçoados pela religião e abandonados por Deus ('maldito o que morre na cruz'). São aqueles que querem revolucionar a ordem! Entretanto o sofredor e mártir se opõe ao sistema e denuncia seus valores e práticas porque constituem ordem na desordem. Aquilo que o sistema chama de justo, de fraterno, de bom, na realidade é injusto, discricionário e mau. O mártir desmascara o sistema. Por isso sofre a violência dele. Sofre por causa de uma justiça maior, por causa de outra ordem ('Se a vossa justiça não for maior do que aquela dos fariseus…'). Sofre sem odiar, suporta a cruz sem fugir dela. Carrega-a em amor da verdade e dos crucificados pelos quais arriscou a segurança pessoal e a vida. Assim fez Jesus. Assim deverá fazer cada seguidor seu ao longo de toda a história. Sofre como 'amaldiçoado', mas na verdade é acolhido por Deus. Assim Deus confunde a sabedoria e a justiça deste mundo. (Boff, pp.159s)
Nenhuma tentação é mais terrível do que a de não sermos tentados. (Bonhoeffer, p.83)
II — Experiência
Minha reflexão a partir do presente texto amadureceu durante uma estada de oito semanas no Chile, onde também por sete vezes, em diferentes comunidades cristãs e distintas regiões do país, tive oportunidade de pregar, precisamente com base em Mt 4.1-11. Dentre a multiplicidade de experiências colhidas e vividas destaco agora: a) a magnitude impressionante do desemprego, do sub-emprego e do arrocho salarial, dado técnico que encobre os rostos famintos de inúmeros adultos e sobretudo crianças que vinham a nossa porta, perambulavam nas ruas ou encontrávamos em reuniões eclesiais e iniciativas sociais nos bairros populares: b) uma proliferação ilimitada de igrejas, sobretudo pentecostais, as quais via de regra muito próximas da mentalidade e das formas de expressão do povo, contudo geralmente competiam de modo acirrado entre si, não só em busca de adeptos, mas na manifestação dos sinais milagrosos do poder de Deus: c) a onipresença aterradora do poder político-econômico-militar, controlando imprensa, escolas e organizações de classe. Quanto terror no rosto daquele homem a quem, com um papel de endereço na mão, perguntei se morava no edifício por mim procurado!
Com tais olhos lia e meditava Mt 4.1-11. Deste texto me veio, cada vez mais claro, o desafio do Jesus que, também faminto, ousava viver da palavra de Deus; embora filho de Deus renunciava o pedir milagres do Pai; tentado pelo poder e pelas riquezas, decidiu permanecer um ser humano solidário com seu semelhante e assim temente ao Senhor. Como entender a mensagem e o desafio do texto?
III — Tentação e opção de vida
A perícope é conhecida sob o título de a tentação de Jesus. O diabo é apresentado como tentador. Lucas testemunho bíblico tentações são constantes precisamente na vida dos crentes e fundamentalmente também na do próprio Jesus (por exemplo, Jó, Lc 22.28s., 1 Co 10.22s., Hb 2.18). Que resta dessa mensagem no nosso entendimento e na nossa experiência? O próprio termo tentação aparece entre nós quase que exclusiva¬mente num sentido vazio ou moralizante. É verdade, há a experiência de fossas pessoais, crises individuais e coletivas, corrupções avulsas e institucionalizadas. Essas são por vezes lamentadas, outras tantas denunciadas. Pode também haver redutos em que essas e outras realidades são reconhecidas como tentações, às quais se deve resistir. (Nesse case, nosso texto, que coloca a origem da tentação num poder superior a nós – diabo -, deve levar à reflexão quanto a de onde podem nos provir o correio discernimento da tentação e as forças para sua superação.) Em geral, porém, parece predominar uma atitude de amplo conformismo e conivência. As fossas devem ser assumidas e as corrupções jamais são apuradas. Aliás, parece ser larga a concepção de que se trataria não de tentações, mas de oportunidades, que qualquer pessoa viva deve aproveitar. Tanto, a respeito do esvaziamento da tentação.
Quanto à redução moralizante, parece claro que o termo tentação assume mais e mais o sentido de atração físico-sexual, à qual num tempo de quebra dos tabus nem se deve resistir. Feliz de quem é tentado e é livre para ceder… É importante verificar que nosso texto não fala nada de tentações dessa espécie, para que a pregação aborde aquelas que efetivamente são mencionadas.
Tentação, como a vemos aqui e em geral no testemunho bíblico, é sempre uma ameaça integral ao rumo de toda a vida, seus valores e suas dimensões. Em nosso texto estão em jogo não determinadas atitudes morais ou piedosas de Jesus, mas o direcionamento de toda sua vida e obra. A perícope – localizada imediatamente após a passagem referente ao batismo de Jesus e antes do relato de sua atividade pública – é o momento de definição. Será fiel a seu batismo e à sua incumbência? Servirá incondicionalmente aos necessitados? Seguirá seu caminho até a cruz? Tentação tem essa dimensão de totalidade. Ela é o oposto do chamado à decisão de fé. Cair em tentação é o oposto da conversão , da opção de vida.
IV — Verificando o texto
Há, basicamente, duas linhas de interpretação possível para nossa perícope. A primeira seguiria uma linha individualizante, destacando a obediência pessoas de Jesus a vontade de Deus rebatendo assim o assédio satânico. A outra assume caráter estrutural, ao realçar a obra de Jesus no caminho junto aos seres humanos rumo a cruz, rechaçando as expectativas messiânicas propostas. A alternativa e falsa. Está em jogo a obra de Deus entre os seres humanos, através de Jesus. Contudo, essa obra requereu a definição pessoal de perseverança do próprio Jesus. Assim também as tentações que assediam o crente não têm caráter meramente individual (muito menos apenas moralizante), mas colocam em cheque a obra do Reino de Deus entre os seres humanos. Mas, em sendo isso, e requerida uma opção de vida do crente.
É fundamental que a interpretação (e a pregação) consigam se ater a essa linha mestra do texto, não se perdendo em questões laterais e especulativas. Isso ocorreria se quiséssemos explicar histórica ou psicologicamente o acontecimento narrado. Como se apresentou o tentador? Com que aspecto? Como entender a longa ida do deserto para o Templo em Jerusalém e novamente para um monte alto? Quanto tempo teria levado todo o processo? Teria tido Jesus um encontro externo, uma experiência interna ou uma visão? Come e quando teriam os discípulos ficado sabendo do episódio ocorrido na solidão de Jesus? Tais questões surgem à mente do leitor e do ouvinte (e nesse sentido devem ser consideradas na pregação), mas em verdade não interessam, já pelo simples fato de que não interessaram aos próprios evangelistas. Aliás, Lucas dá indícios claros desse propósito, quanto omite (Lc 4.2s) a indicação ainda constante em Mateus de que o diabo teria se aproximado, e ao transformar as tentações citadas em exemplos salientes da tentações de toda sorte (Lc 4.13). Mas já em Mateus não há indício algum de que essas questões merecessem sua atenção especial. Por exemplo, que monte seria esse, de cujo topo seria possível divisar todos os reinos do mundo (v.8)?
Tampouco deveria o pregador se deixar levar para uma exposição especulativo-doutrinária sobre a natureza do diabo, fazendo dele um Contra-Deus. O texto é claro: mesmo quando o diabo supõe poder ter a sua grande hora, nada mais pode do que desempenhar um papel no plano de Deus. Jesus é levado pelo Espírito ao deserto, com a finalidade de ser tentado pelo diabo. Para que Jesus fosse o Cristo, para que o mundo se reconcilie com Deus, para que a justiça de Deus se estabeleça, era indispensável que Jesus atravessasse a mais profunda solidão e abandono, enfrentan¬do a mais poderosa tentação. Deus entregou Jesus ao diabo, abandonando-o finalmente na cruz. O grito final angustiado Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? (Mt 27.46) é (4.13) fala de toda sorte de tentações sobrevindas a Jesus. De fato, segundo o expressão simultaneamente do mais total abandono por parte de Deus e da mais absoluta confiança e entrega a Deus.
Encontramos neste texto — e isso é o que importa — o testemunho da comunidade cristã de que Jesus foi tentado em todas as cousas e permaneceu sem pecado (Hb 4.15). Essa afirmação é paradoxal e a pregação deverá sustentá-lo. Não se pode, em nome de um dogma – o da impecabilidade de Jesus -, desfazer a radicalidade da tentação de Jesus, afirmando que graças à sua qualidade divina jamais poderia pecar. Tampouco se pode, em nome da humanidade de Jesus, asseverar que ele não só tenha sido tentado, mas de fato deve ter pecado, como todos os demais seres humanos. Ambas as coisas encontram-se paralelamente em toda a mensagem do Novo Testamento, que Jesus é totalmente igual a nós (Hb 2,17) e que ele, totalmente distinto de nós, é tentado sem pecado, estando acima de tudo quanto se chama pecado e desobediência. Essas duas afirmações não são logicamente compatíveis; em verdade, porém, encontram-se por detrás de cada palavra do Novo Testamento. (Schniewind, p.32) Jesus é o novo ser humano, o segundo Adão.
Mais importante ainda do que esse aspecto pessoal de Jesus é a finalidade de sua tentação. Para que foi tentado? O Jesus que aqui está só no deserto e entregue ao assalto de Satanás, e que vai ficar outra vez só em Getsêmani (Mt 26.40) e na cruz, é aquele Jesus que em suas andanças não permaneceu só, mas se colocou na companhia do povo, chamando de bem-aventurados os pobres, curando os enfermos, saciando os famintos, desafiando os poderosos e chamando ao discipulado. Em Mt 4.1-11 já está traçado o caminho até a cruz.
Passemos às três tentações. Jesus é tentado precisamente naqueles lugares que desempenhavam um papel especial nas expectativas futuras de diversos grupos do povo judeu (Strauss, p.155): deserto, Templo de Jerusalém e o monte figurando o poder político. Havia expectativas ligadas a uma vinda do Moisés redivivo. Grupos se reuniam no deserto, no aguardo e na preparação pessoal e comunitária de sua vinda. De outra parte, o Templo era considerado como o lugar de manifestação de Deus. Quando os romanos no ano de 70 conquistaram Jerusalém e penetraram no Templo, lá encontraram ainda 6.000 judeus na expectativa ansiosa da intervenção divina. É sabido, por fim, que havia também a esperança do Messias político, no sentido de um líder militar e poderoso que reconstituiria a nação judaica e imporia o senhorio sobre o mundo.
A comunidade cristã divisa nessas diferentes expectativas messiânicas tentações satânicas (cf. Mt 24.23-26), pois ela conhece um outro Messias, aquele que é fie) a Deus estando junto aos seres humanos, particularmente aos fracos, indefesos, necessitados e sofredores: Jesus. De fato, a questão da messianidade está por detrás da perícope: Se és o filho de Deus, então… O trecho imediatamente anterior, a respeito do batismo de Jesus, havia encerrado com a declaração divina: Este é o meu Filho amado (Mt 3.17). Imediatamente Jesus é tentado a comprovar sua filiação divina e assim sua messianidade, tentação que irá acompanhá-lo em sua caminhada, tanto de dentro como de fora do círculo de seus seguidores. (Por exemplo, na reprovação de Pedro imediatamente após sua confissão messiânica – Mt 16.22-23 — e no deboche dos que passavam em frente à cena da crucificação – Mt 27.40.) Jesus é o Messias, justamente por renunciar a qualquer tipo de comprovação. Sua pessoa não tem valor próprio: mas se identifica totalmente com sua causa. Ele é sua obra. E sua obra é servir, amando a Deus e aos seres humanos (Mt 22.34-40; cf. neste volume auxílio homilético, de Sílvio Meincke, sobre esse texto). (Com esse entendimento, opomo-nos à interpretação de Bultmann, que vê excluída a questão da messianidade de Jesus, considerando que a história – formalmente uma disputação rabínica – visava a instruir por que Jesus renunciava a determinados milagres, a saber, os que tivessem fim em si mesmos ou proveito próprio. Jesus só fazia milagres em obediência a Deus, em ajuda concreta a necessitados.)
Assim, a presente perícope é também um apelo ao povo de Jesus Cristo hoje. Desvenda as verdadeiras tentações desse povo: a) colocar na prática os padrões de consumo e bem-estar pessoal acima da palavra de Deus solidária com os necessitados e sofredores; b) alegar na teoria a fortaleza da fé própria superior, utilizando-se de Deus para a auto-satisfação espiritual; c) compactuar com estruturas, em que nos tornamos indiferentes a Deus, abusando do ser humano como mero objeto de exploração e manipularão. Essa aplicação ao povo de Jesus Cristo é lícita, já a partir do próprio texto, na medida em que este realça a evidente analogia com o povo de Israel no deserto. Os quarenta dias de jejum são um paralelo para os quarenta anos de Israel no deserto. Mais importante do que isso e o fato de as três respostas de Jesus serem provindas do livro de Deuteronômio (Dt 8.3b; 6,16 e 6,13), que expõe o povo de Israel como posto duramente à prova em sua confiança em Deus e em sua jornada. O povo de Jesus Cristo ouve, pois, agora o chamado do Crucificado à mesma confiança, a mesma renuncia e a mesma solidariedade. É um chamado a decisão pessoal e comunitária e um chamado à obra do Seu reino de amor e justiça. As tentações aos discípulos caíram sobre Jesus, e as tentações de Jesus vêm em favor dos discípulos. (Bonhoeffer, p 58;)
V — Encaminhando a pregação
Introdução: Ainda somos tentados?
Diante do crescente vazio ou redução moralizante das tentações (cf. III), perguntamos: ainda somos tentados? Atrás dessa pergunta se esconde a outra: para que vivemos? Que rumo tem nossa vida? Podemos pôr a perder nossa vida, quando a direcionamos por falsos valores e metas. E assim estamos rodeados de tentações permanentes.
Também Jesus foi assim ameaçado, com toda incrível radicalidade. Em suas tentações estão figuradas as tentações fundamentais que também a nos assolam e em nessa realidade dão combate incessante a verdadeira vida aqui conquistada por Jesus. Contudo, atrás das tentações, por mais ameaçadoras que sejam, encontra-se a vontade de Deus que impele o seu reino e nos concita à opção de vida.
1. A tentação da falta do pão
Jesus estava com fome. Provavelmente só quem experimenta a realidade da fome ou pelo menos sofre com ela, não fechando os olhos a seu redor (apresentar exemplos da realidade local), pode compreender que magnitude tem a tentação do pão fácil Nessa situação, mudam todos os valores. Por exemplo: que ainda significa roubo, quando se tem fome? E a loteria esportiva pode parecer uma ultima tábua de salvação. Assim também só quem experimenta a realidade da fome (e não quem está satisfeito e fecha os olhos) pode entender que significado tem, quando Jesus, sofrendo essa situa¬ção, reconhece que mais importante do que tudo é a palavra de Deus.
De fato, a palavra de Deus que intenciona um remo fraterno. de amor a Deus e justiça entre os homens, é o que há de mais essencial e decisivo na vida do homem, sem comparação até mesmo com qualquer necessidade – básica, mas parcial – da vida humana: lar, alimentação, vestuário, saúde, escola e descanso.
Mesmo assim, essa palavra da Escritura tem sido abusada, antes de todos pelos próprios cristãos. Jesus empregou a frase Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que procede da boca de Deus, quando estava só, como arma de defesa contra o diabo. Jamais empregou-a como arma de ataque contra os pobres. Quando ele esteve com os famintos, não os consolou, mas lhes deu pão. Assumiu privação ele mesmo, mas em solidariedade aos que passavam privação forçada. Assim, só tem direito a empregar hoje essa palavra quem estiver disposto a demonstrar em si mesmo que a palavra de Deus lhe é mais importante do que o pão, isto é, quem estiver disposto a partilhar seu próprio pão e lutar pelo pão dos que não o têm. (Procurar exemplos de como isso é possível.)
2. A tentação da demonstração da fé
Superada pela palavra de Deus a tentação da falta do pão (ou do apego ao pão), isto é, uma tentação que provém das próprias condições desumanas de vida, o diabo assalta dentro da própria fé. Essa tentação, justamente porque se mascara de espiritual, é muito grande, tão grande que Lucas a colocou no fim, aparentemente considerando-a a maior de todas (Lc 4.1-13). O diabo ataca com a Escritura, citando o Salmo 91.11s. Em conhecimentos bíblicos, ele empata com Jesus, mas apenas este tem o espírito da Escritura consigo.
Acedendo a essa tentação, temos uma impressionante capacidade para inverter as coisas. Deus nos conduz em tribulação. Nós o queremos poderoso para nós. quando ele nos quer em fraqueza solidária com o próximo Pedimos dele o conforto pessoal, quando ele nos chama a assumir sua cruz, sem prometer bem-estar nem paz. Consideramos bênção sua quando tudo nos vai bem. e tentação diabólica quando estamos em dificuldade. O texto mostra que provavelmente o inverso é verdade: o bem-estar pode ser a tentação diabólica e a dificuldade pode ser a chance divina de colocar-se ao lado de quem está destituído de seu amor.
3. A tentação do emprego do poder
Agora o diabo 'abre o jogo, colocando todas as cartas na mesa. Esta vez Satanás luta com suas próprias armas. Aqui não ha mais camuflagem alguma, nem simulação. (Bonhoeffer. p.32) E essa tentação parece insuperável – e o seria, não tivessem as anteriores sido superadas pela palavra de Deus que também agora e o amparo forte. Poder e riqueza para quem adorar o diabo. E quem adora o diabo? Aquele que já não dá bola para Deus e toma o ser humano como objeto de manipulação. Assim como Jesus resumiu toda a lei em amar a Deus acima de tudo e ao próximo como cada qual já ama a si mesmo, assim ceder a essa tentação é renunciar a Deus e ao próximo.
Teoricamente muito poucos renunciam a esses valores: na prática inúmeras pessoas – a rigor, todos nós, múltiplas vezes, demonstramos, pelas consequências que adoramos ao diabo. Repete-se essa funesta realidade em nossas relações familiares (muitas vezes marcadas por tirania ou desconsideração), em nossas vinculações grupais (quando se norteiam por interesses particulares) e até mesmo em nossas comunidades eclesiais (quando reproduzem como em espelho as discriminações e injustiças sociais). Mais claramente ainda o vemos, quando o poder político, destinado ao bem comum, é empregado para oprimir pessoas e povos inteiros, lesando seus direitos, para manter os privilégios dos detentores do poder e de seus aliados. Enxergamos a mesma realidade na esfera económica, quando o ser humano não é seu dono e beneficiário, mas reduzido a produtor do que necessita e não pode angariar, e consumidor do que é absolutamente supérfluo.
Conclusão: A opção de Jesus também é a nossa
Nossa experiência, como já asseverava Lutero no Catecismo Maior, parece ensinar que têm razão os indiferentes, os hipócritas e os poderosos, porque eles estão por cima e prosperam. Onde estaria a realidade do temor a Deus e da fraternidade entre os homens, prometida pela palavra de Deus? Olhando a realidade que nos rodeia, poderíamos desesperar. Olhemos para Cristo. Atentando para sua vida e sua morte, quem quereria duvidar que pelo menos nele – sim, nele -, essa promessa de Deus se tornou realidade!
Tendo sido realidade nele, pode ser realidade também entre nós. E de fato o é entre os que seguem o caminho de sua paixão. Nesse caminho encontramos Deus e seus mensageiros (v.11). Dizia no começo que minha reflexão amadureceu em experiência concreta no Chile. Concluo dizendo que não recebi apenas o impacto da opressão, mas também a mensagem vivida do reino de Deus e sua justiça. Pois não deixei de divisar aqueles seres humanos, cristãos e talvez não-cristãos, que em exercício de fraternidade e amor, viviam da palavra de Deus, ajudando, peia solidariedade, cooperação e renúncia, a repartir e multiplicar o pão (por exemplo, em refeitórios comunitários infantis), dispostos a viver a fraqueza de Jesus (por exemplo, em grupos eclesiais de reflexão, culto e ação social) e recusando-se a adorar a força do poder (por exemplo, em associações de desempregados), permanecendo assim incorruptos, livres e esperançosos.
Na costa do Chile, minha família e eu encontramos um pobre e miserável pescador. Tinha mulher e três filhos. Sua casa ficava à beira-mar. Eram quatro curtas e baixas paredes de pedras amontadas, cobertas de um pedaço de pano velho. Compramos-lhe alguns siris, e conversamos. Ele quis então presentear-nos com uma pele de pinguim que secava ao sol, renunciando à venda, que lhe daria o sustento de muitos amanhãs. Pareceu-me ouvir Jesus contando uma parábola: O reino de Deus é semelhante a um pobre pescador do Chile que…
VI – Bibliografia
– BARTH, Karl. Kirchliche Dogmatik. Vol. III/4. 2a ed.. Zollikon-Zurique. 1957, pp.394s; vol. IV/I. Zurique, 1960, pp.286-290.
– BOFF, Leonardo Paixão de Cristo – Paixão do Mundo. Petrópolis, 1977.
– BULTMANN, Rudolf. Die Geschichte der synoptischen Tradition. 7a ed., Göttingen. 1967.
– LUTERO, Martinho.Die Versuchung der Kirche durch den Satan. In: Predigten über den Weg der Kirche. Munique/ Hamburgo. 1967. pp. 101-109.
– SCHNIEWIND, Julius. Das Evangelium nach Matthäus.12a ed., Göttingen. 1968.
– STRAUSS. Johannes. Jesus – Nein zur Selbstbehauptung. In: Calwer Predigthilfen. Vol. 11. Stuttgart. 1972. pp. 153-160.
Leitura recomendada:
– BONHOEFFER. Dietrich. Tentação. Porto Alegre. 1968.
– SEGUNDO. Juan Juis. Teologia aberta para o leigo adulto. Vol. l: Essa Comunidade chamada Igreja. São Paulo. 1976. (Aqui é reproduzida (pp. 107-109), em resumo, a famosa e impressionante Lenda do Inquisidor-Mor. de Dostoievski, em que o representante da Igreja, referindo-se ao episódio da tentação, acusa frontalmente a Cristo, tomando o partido de Satanás, por alegado amor aos fracos.)