Prédica: Mateus 6.24-34
Autor: Dario G. Schaeffer
Data litúrgica: 15º Domingo após Trindade
Data da Pregação: 23/09/1979
Proclamar Libertação – Volume: IV
I — Quanto à tradução
Por uma questão de espaço não transcrevo a tradução deste texto bastante longo. Aceito em princípio a tradução do Novo Testamento na Linguagem de Hoje. É material que temos à mão e por enquanto é o mais fácil. Algumas correções: Vers. 32: (Com C. Mesters) É o homem sem fé em Deus que vive atrás dessas coisas.
Vers. 33: Dêem o primeiro lugar ao Reino de Deus e sua justiça… (Acho certa a tradução verbal desta palavra tão importante para nossa época!) Vers. 34b: Bastam a cada dia suas próprias maldades.
A tradução de Mesters (pp. 15 e 16) talvez já seja muito dirigida para o estudo que faz. É bom conhecê-la em sua liberdade de adaptação. A tradução de Almeida, como sempre, está longe demais do povo e de nossa linguagem. No mais a tradução não oferece dificuldades ou variantes importantes de nota. É texto conhecido, de fácil compreensão. O problema reside na sua aplicação. Vamos a isso.
II – Quanto à exegese
O v. 24 precisa pertencer ao todo da perícope para podermos entender o apelo dos vv. 25ss. A afirmação de que não é possível servir a Deus e ao dinheiro (Mamoonas) dá a perspectiva necessária para a compreensão do que segue.
As opções são colocadas. Deus ou o dinheiro. Não há, no entanto, uma decisão entre os dois senhores. É feita apenas a constatação de que não é possível servir aos dois ao mesmo tempo, sem que haja ruptura com um deles. Quer dizer: quem serve a Deus não pode, não tem condições, não precisa servir ao dinheiro. E inversamente: quem serve ao dinheiro não pode, não tem condições, não precisa servir a Deus. É importante saber isso, pois as pessoas que trabalharam com esse texto viram esse aspecto bem claramente. E tiraram conclusões de peso.
Mas já o v. 25 toma partido. A favor de Deus. Só é possível entender o que segue se nos colocamos sob a servidão de Deus, Senão tudo se torna absurdo. Tal como é absurda a nossa sociedade de consumo, exatamente por desconhecer a perspectiva cristã de vida e de sociedade. A perspectiva é decisiva.
O senhorio de Deus está acima do senhorio das coisas, por mais necessárias que sejam. Está por cirna das pseudo-seguranças do homem. O radicalismo dessas afirmações de Jesus reside no fato de que são questionadas exatamente as necessidades primordiais do homem, as seguranças mínimas de que precisa: comida, bebida e vestimenta. E é afirmado que estas coisas não são as mais importantes. Primeiro o Reino de Deus, e então estas coisas serão satisfeitas. Deus conhece nossas necessidades primordiais. A satisfação das necessidades é consequência do Reino. E são consequências da fé em Deus, da confiança em Deus. E eu diria também (ou mais): elas são realmente satisfeitas apenas a partir da confiança em Deus. Senão, não. Apenas se é dado o primeiro lugar ao 'Reino de Deus e a sua justiça, é que de fato as necessidades primordiais do homem são satisfeitas. De todos os homens, todas as necessidades. Se a perspectiva do Reino e de sua justiça não estão contidas na ação da sociedade então campeia a injustiça que coloca tudo nas mãos de poucos e nada nas mãos de muitos.
Preocupação é um termo chave em nosso texto. Aparece umas quantas vezes. Parece-me que o termo português está um tanto diluído e enfraquecido pelo uso e por isso não retrata bem o termo usado aqui. Em nosso texto preocupação significa: colocar toda a atenção em algo; deixar-se envolver totalmente; deixar-se dominar; é a preocupação que não dá lugar para mais nada. Isso significa então que a lei da procura por garantias de vida encampa a existência do homem, fechando-lhe a perspectiva escatológica da presença de Deus em sua vida e tirando com isso a verdadeira base existencial do ser humano e assim a esperança por uma sociedade justa.
E esta sociedade justa e visada com o Reino de Deus no final da perícope. A acentuação da justiça como caracterização do Reino aponta para a consequência do preocupar-se com comida e vestimenta: a injustiça, ou seja, a corrida desenfreada, sem leis, por uma posição social, mesmo que custe a vida de muitos, a comida e a vestimenta de outros.
Portanto, devemos entender as afirmações de Jesus, para que não nos preocupemos (as aspas retomam a acentuação dada acima!) com as seguranças da vida, pois essa preocupação não vai levar à vida plena como a vê Jesus', colocadas entre a opção por Deus e não pelo dinheiro e o fato de precisarmos dar o primeiro lugar ao Reino de Deus e sua justiça. Somente então os vv. 25 a 32 não serão entendidos como alienação religiosa dos problemas reais, mas como desafio para a luta por uma sociedade onde as necessidades e as seguranças do homem sejam satisfeitas por igual (= justiça). A visão escatológica da ação de Deus no mundo dá uma dimensão radical e poderosa à afirmação de que não precisamos nos preocupar com a comida e a vestimenta. E por causa dessa dimensão poderosa ela incomoda ao ponto de não querermos entender a ação que leva à justiça: a procura, a luta, o dar lugar primeiro ao Reino e sua justiça. As outras coisas serão dadas. Deus as conhece. E nós, por isso, também as conhecemos. E sabemos também onde faltam.
III – Debate
A discussão em grupos da comunidade a respeito desse texto desemboca em resultados interessantes. Em princípio todo mundo parece estar de acordo que não podemos servir a Deus e ao dinheiro. Parece ser claro que uma coisa não tem nada a ver com outra. Os que têm dinheiro são tão (ou mais!) cristãos como os que não têm. Surge, no entanto, a questão da riqueza e da pobreza. Será que a riqueza não é uma adoração ao dinheiro, aos carros novos, aos confortos, ao nome social? Será que algum rico seria capaz de entregar sua riqueza aos pobres por amor a eles, ou por ser cristão? Começam então as dúvidas: Uma senhora bem situada diz que os ricos são pequenos senhores que precisam ser ricos, precisam juntar dinheiro, para então poderem ajudar aos pobres, distribuindo seu dinheiro a eles. Silêncio… Alguém levanta a dúvida: Ainda não conheci nenhum rico que distribuísse seus bens aos pobres! A primeira senhora: Simplesmente dar, distribuir, não é possível. Os pobres não sabem usar o dinheiro responsavelmente, vão gastar tudo em besteira. Os pobres têm vícios! Outra diz: Quem é pobre no Brasil é porque não quer trabalhar. E diz na Bíblia que quem não quer trabalhar não precisa comer!
Alguém que estava procurando uma resposta, pessoa simples, sem muita coragem diante de argumentos tão fortes e conhecidos, arrisca: Acho que, se não tivesse gente rica, não teria gente pobre para ser ajudada. Este foi um argumento pesado, difícil de ser rebatido. E a discussão quase sempre mudava de rumo: O caso é que sem dinheiro, sem preocupação pelo que vou fazer e comer amanhã, não posso viver. É claro que não devemos esquecer Deus. As duas coisas devem andar juntas. – É, sem Deus nada que fazemos dá certo, precisamos da bênção dele.
Eu lembro que o texto fala em prioridade e não em justaposição. Primeiro não há respostas. Depois: Eu acho que a coisa fica errada, se nos preocupamos apenas conosco mesmos e não temos mais tempo e interesse para nada além disso. Outro: Mas o fato é que, quem não se preocupa não come. Ninguém vai me dar nada, se eu um dia estiver por baixo. Eles vão pisar mais ainda do que pisam hoje. É preciso se preocupar. E não esquecer Deus, é claro! Mas as coisas não vêm do ar.
Aponto para a consequência da preocupação com as seguranças: A concorrência, a desumanização, as guerras etc. Alguém: Uma coisa é verdade, sem Deus chegamos mais facilmente ao dinheiro, não precisamos ter consciência suja. E: A gente acha poucos ricos que servem a Deus. – Fé e riqueza não combinam, pois o dinheiro puxa a gente para fora da fé. – O rico esquece Deus mais facilmente e por isso o pobre dá antes que o rico.
Esse diálogo é um resumo de vários. É um diálogo real. Pode-se notar já neste resumo, que as pessoas de fato fazem uma análise de sua situação. Os que estão bem situados tentam argumentar e justificar sua posição, enquanto que os menos privilegiados têm muita liberdade diante do texto e diante das seguranças. Quando os que têm vida melhor argumentam, chegam até a dizer em vários casos que a preocupação do rico é muito maior do que a do pobre. Sendo que com isso confirmam exatamente o que Jesus também afirma no texto.
No entanto, uma coisa fica bem evidente. Nossos membros de comunidade pensam em nível individual e não coletivo, comunitário, social. Cada um está preocupado com sua própria sorte e no momento em que o debate sai do plano individual perde-se o interesse.
O caso é que a pregação deste texto não pode ser individual ou individualizante, mas deve ser dirigida a uma coletividade. Não adianta, neste caso, uma transformação, uma conversão pessoal de um ou de outro. Esse um ou outro vai virar mártir a ser espoliado pela sociedade em que vive. Mas o conteúdo da pregação de Mt 6.24-34 é socializante. É um programa social que, sem esquecer a transformação da mentalidade de cada um, visa a transformação global da sociedade – o Reino de Deus e sua justiça é uma realidade comunitária e não individual. Como a verdadeira Igreja.
Isso não quer dizer que o diálogo acima' não contenha verdades importantes a respeito da preocupação e do dinheiro e seus poderes. Essas verdades são importantes para se conhecerem as raízes da injustiça. Mas estas residem no individualismo, na procura pessoal por seguranças, na fé íntima e pessoal que pode justificar qualquer coisa e qualquer atitude, até a concentração de riquezas. As raízes estão lá. Mas a solução é a procura pelo Reino de Deus e sua justiça, por uma sociedade justa, onde todos juntos não sejamos mais forçados a pensar como individualistas, como egoístas a quem basta a própria segurança; onde o homem possa dar lugar ao Reino de Deus; onde não se precise passar mais fome, porque poucos têm tudo nas mãos e a maioria não tem nada, seja dinheiro, seja poder, seja informação, seja lá o que for.
IV — Conclusão
1. Sugiro este texto para um culto de debates, onde ele seja distribuído e IkJo. Depois de uma liturgia inicial, que aponta para o fato social da preocupação pelas seguranças pessoais e individualistas, em detrimento do dar lugar ao Reino de Deus e sua justiça, pode ser aberto o debate em pleno culto.
2. Mas se for necessário fazer uma prédica, eu apontaria os seguintes aspectos que deveriam ser focalizados:
a) Análise do nosso individualismo. A preocupação com a segurança pessoal, que tira a vida do próximo e que erra o alvo da vida no sentido cristão. Podem ser citadas perguntas que surgem, como as que encontramos p.ex. no Suplemento 3, dos Círculos Bíblicos de Carlos Mesters (O Sermão da Montanha, pp. 28-29).
b) A opção diante da qual o homem está colocado em seu dia-a-dia: Deus ou o dinheiro. (O dinheiro como representante de poder, de necessidades secundárias tornadas primárias pela propaganda, que gera problemas como a fome, o desemprego, a marginalização etc. Deus como o poder colocado em Jesus Cristo ao lado do que sofre por causa desses poderes. Jesus Cristo, aquele que mostra a perspectiva da esperança, que liberta a sociedade para se tornar Reino de Deus, justiça.)
c) Proposição: Assumir o risco de optar por este Deus, de optar pela libertação que é seu Reino e sua justiça. Será uma opção social, comunitária, de Igreja e não mais individualista ou individualizante. Riqueza não e opção mas é pecado em nossa situação brasileira. Distribuição de renda deve acontecer incondicionalmente. Apenas cristãos de fato, que optam pela liberdade do Reino e não peia escravidão da procura por seguranças pessoais, têm essa possibilidade, esse dom, a segurança de poderem enfrentar o risco.
3, O ideal seria não mais falar apenas nos cultos e em círculos exclusivos e acomodados. Mas agir a partir da opção deste texto. E a ação seria a constante procura por transformação de urna sociedade individualista, preocupada com sua segurança e por isso paga, numa sociedade de irmãos, onde o individualismo seja trocado pela fraternidade social. E a sugestão seria a de trabalhar com os pobres, Eles um dia terão a vez de mostrar seu poder. Que então possam fazê-lo assim que não se tornem por sua vez espoliadores, invertendo apenas os papéis. Nossa tarefa agora é de trabalhar com eles. A exigência do momento é procurar por justiça não para as classes miseráveis, mas com elas, pois são elas que têm a possibilidade de solução. Estar alerta, para que desta vez a mudança venha da fé, da opção por Deus, e com isso seja uma verdadeira libertação, e não do poder e da ganância, que leva a nova escravidão, esta é a tarefa da Igreja verdadeira. A Igreja passou de largo nas grandes transformações que envolveram e condicionaram a humanidade de nosso tempo. O nosso texto nos anima a estarmos juntos nesta transformação desta vez. Pode ser que não serão os cristãos ou a Igreja que levarão a transformação. Mas é importante, no mínimo, estarmos lá onde ela acontecerá.
V – Bibliografia
– GOPPELT. L. Teologia do Novo Testamento. São Leopoldo e Petrópolis. 1976.
– LOCHMANN. J.M. Meditação sobre Mateus 6.24-34. In: Göttinger Predigtmeditationen. Ano 61. Gottingen. 1973.
– SCHARBERT. A. Die Bergpredigt. München. 1966.
– BORNKAMM. G. Jesus vem Nazareth. 7a ed.. Stuttgart. 1965.
– MESTERS. C. Círculos Bíblicos 2 1-24. e Suplemento 3 (Sermão da Montanha). Petrópolis. 1973.
Indicação para leitura: CARDENAL. E Das Evangelium de Bauern von Solentiname. Wuppertal. 1976