Prédica: Mateus 7.15-23
Autor: Milton Schwantes
Data litúrgica: 8º Domingo após Trindade
Data da Pregação: 05/08/1979
Proclamar Libertação – Volume: IV
I
Falsos profetas são personagens de nossos dias. E eles caracterizam nosso texto de prédica.
Vozes proféticas marcam nosso ambiente. Grande parte dos novos movimentos religiosos usam a profecia; são voz da profecia. O fim do mundo está próximo! Às vezes até é marcada a data deste fim. Falsos profetas?
De falsos profetas fala-se em muitas de nossas comunidades. Acontece que pessoas e grupos na comunidade designam assim seus representantes tradicionais. E acontece, talvez com mais frequência, que estes representantes tradicionais da comunidade taxam com este termo pessoas e grupos que se caracterizam por piedade especial. Assume-se posições diversas: vê-se o mundo com olhos diferentes; lê-se a Bíblia de maneira diversa; a espiritualidade se distingue. Nos conflitos que aí surgem joga-se com a palavra, falso profeta.
Talvez nem se fale expressamente de falsos profetas. No entanto, em nosso país não há colono e não há operário que não sofra por causa das profecias econômicas. A visão é a de que, depois de juntado o capital, depois de feito o grande bolo nacional, haverá distribuição igual. Por isso se paga pouco ao colono, e o salário é o mínimo. Falsa profecia?
Estou apontando para situações, nas quais vejo nosso texto bíblico sendo vivido e sofrido. O anúncio do fim do mundo. O conflito das diferentes posições na comunidade. A visão econômica que mantém o salário no mínimo. São exemplos. Imagino que cada pregador de Mateus 7,15-23 modifica e concretiza tais exemplos.
Diante da profecia a gente pergunta por realização. Como posso saber hoje, se o profeta fala de maneira certa ou errada das coisas que virão? Quem é e como é um falso profeta? A esta pergunta Mt 7,15-23, num primeiro impacto, me parecia prometer uma resposta. A primeira frase deste texto – acautelai-vos dos falsos profetas – realmente evoca esta expectativa. Se espera que esta admoestação de Jesus seja acompanhada pela caracterização de falsos profetas (cp. por exemplo 1 Jo 4,1 ss). É isso que ocorre em nossa perícope?
II
Na verdade, a primeira frase de Mt 7,15-23 é de grande importância para nosso texto Pois ela determina o todo desse texto. Quero tentar transmitir algumas observações que me conduzi¬ram a esta observação:
Veja! Boa parte de Mt 7.15ss também se encontra no evangelho de Lucas. Deve-se comparar principalmente Lc 6,43-46 e 13,26-27. Mas no evangelista Lucas estas palavras são ditas para todos e não, especificamente, contra falsos profetas, como em nosso evangelista. E a partir desse seu assunto Mateus moldou nosso texto.
Isso se vê nos pormenores: (1) A partir do assunto dos falsos profetas brotou a figura das ovelhas e dos lobos no v.15. (2) Por causa da admoestação contra os falsos profetas os vv.16-20 passaram a ter uma estrutura clara. Lc 6,43-45 vale para todos; mas Mateus relaciona estas figuras somente aos falsos profetas. Ë o que sublinham o início do v.16 e o v.20. (3) Como nosso evangelista estava interessado nos falsos profetas ele deixa fora aquela bela figura proverbial que se encontra em Lc 6,45: a boca fala do que está cheio o coração. Ora, Mateus não estava preocupado com a fala, mas com o agir (= os frutos) dos falsos profetas. (4) Por estar preocupado com os falsos profetas Mateus também inclui o v.19 e ampliou os vv.21-23. Por seu conteúdo estes versículos merecem atenção especial.
Mas, antes de continuar a falar dos vv.21ss, se faz necessário um pequeno parêntese. Pois, não raras vezes, se vê nos vv 21-23 uma nova unidade, como se observa, por exemplo, na Bíblia na Linguagem de Hoje. Dois argumentos, de importância relativamente menor, relacionam os vv.15-20 e os vv.21-23: o verbo profetizar no v.22 volta ao assunto falsos profetas do v 15: nos vv.21-23 é problematizada, como nos vv 15-20, a diferença entre realidade e aparência. Mas estes dois argumentos ainda não chegam ao âmago da questão, qual seja: O assunto dos falsos profetas, proposto por Mateus no v.15, exige que se fale do futuro. Por isso o evangelista teve que incluir aquela figura do juízo no v. 19, repetindo(!) palavras de Mt 3,10 (lá como palavras de João Batista!). E, por isso, os vv.21-23 necessariamente fazem parte da perícope Digo até: elimi¬nando os vv.21-23 se está distorcendo basicamente a intenção de Mateus. Após este parêntese podemos fixar nossa atenção nos vv.21-23.
Pois também nestes versículos o propósito de Mateus de admoestar contra os falsos profetas (v. 15) é palpável. Como Lc 6,46 e 13,26-27 são breves comparados com Mateus! E o futuro é tão importante para nosso evangelista que chega a transpor para o amanhã palavras que em Lucas (6,46) são ditas para o dia de hoje! No v.21 Mateus fala da vontade de meu pai que está no céu. Com esta formulação enquadra nossa perícope no restante do Sermão do Monte. Neste contexto imediato se fala da lei e dos profetas (7,12), do ouvir e praticar (7,24ss). No v.22 (sem qualquer paralelo em Lucas!) Mateus nos deixa participar um pouco da situação de sua comunidade. Os falsos profetas em nome (i. e. na força e no poder) do Senhor fazem milagre, exorcismo e profecia. Parece tratar-se de um grupo de entusiastas. E, por fim, no v.23 um pequeno detalhe não deixa de ser interessante. O banimento dos condenados é feito com palavras do SI 6,9. Mas. nesta alusão ao Salmo, Mateus não usa a mesma palavra que Lucas: iniqüidade, injustiça. Mateus fala. devido à sua polêmica contra os falsos profetas, de ilegalidade, de pessoas que são contra a lei.
Portanto: da primeira à última palavra nossa perícope é determinada pelo assunto dos falsos profetas. Com isso aquela pergunta: Quem é e como é um falso profeta? torna-se ainda mais inquietante. Na procura pela resposta sugiro observar, agora, o tipo de linguagem usado em nosso texto.
III
Introduzo essa pergunta pelo tipo de linguagem sugerindo uma releitura do texto. E na tradução que apresento procuro apontar para o que já descobrimos.
Acautelai-vos dos falsos profetas!
Eles vêm a vós em roupas de ovelhas, mas por dentro são lobos
Em seus frutos os conhecereis!
Colhem-se acaso uvas de espinheiros ou figos de abrolhos? Assim, toda árvore boa dá belos frutos, mas a árvore podre dá frutos imprestáveis. Árvore boa não pode dar frutos imprestáveis, nem árvore podre frutos belos.
Toda árvore que não der frutos belos será cortada e lançada a o fogo.
Portanto: em seus frutos os conhecereis! Nem todo o que diz: Senhor! Senhor! entrará no reino dos céus, mas o que faz a vontade de meu Pai que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: Senhor! Senhor! em teu nome não profetizamos, em teu nome não expelimos demônios e em teu nome não fizemos muitos milagres? E então lhes declararei: Nunca vos conheci. Afastai-vos de mim, vós que praticais o que é contra a lei!'
A partir da advertência, no início do v.15, se poderia esperar, no restante do texto, por uma descrição clara de que vem a ser falso profeta. (Ë o que ocorre, por exemplo, em 1 Jo 4,1 ss.) A advertência inicial, porém, não é continuada por este tipo de linguagem, mas por uma primeira figura (v.15). Ela fala dos falsos profetas como de lobos disfarçados em vestes de ovelhas. Com isso, realidade e aparência, o que se vê e o que está por dentro, estão em contraste.
No v.16 e no v.20 se observa um retorno à advertência inicial. Se poderia dizer que o v.16 promete e o v.20 garante. Também a promessa e a garantia de que se há de reconhecer os falsos profetas poderiam ser realizadas através de características evidentes de falsos profetas. Mas não é o que ocorre, pois, quando Mateus menciona os meios para reconhecer os falsos profetas, usa linguagem de figura: pelos frutos. E assim temos uma segunda figura nos w.16-19: espinheiros e abrolhos não dão uvas nem figos (v.16): árvore boa não dá fruto ruim e vice-versa (v.18: v.17 é a formulação positiva da mesma figura); árvore de fruto ruim será destruída (v. 19). Como se vê, temos aí uma composição de figuras. Em todas elas se trata da correspondência entre causa e efeito, origem e consequência.
Nos vv.21-23 vejo uma terceira figura. Ela está na continuação do v.19. Evidente, em comparação com os versículos anteriores trata-se de uma figura especial. Ela é formada por uma cena de juízo, em que predomina o diálogo. De um lado estão aqueles que. em oração, gritam: Senhor! Senhor!; do outro lado esta o Senhor do reino dos céus que determina esse diálogo Se designo essa cena de juízo de figura, então porque ela fala do futuro. E uma visão dos últimos tempos. Desse fim necessariamente só se pode falar em uma linguagem provisória, em figura.
Resumindo: praticamente só a advertência inicial fala uma linguagem clara e nítida. O restante são figuras, sendo a última de características especiais por ser uma visão do futuro. Que significa isso: A advertência contra os falsos profetas e concretizada através de figuras? Será que tais figuras admitem que se defina quem e e como é um falso profeta?
IV
Jesus faia em figuras dos falsos profetas. As figuras são claras: lobos como ovelhas: fruto bom só de árvore boa Mas elas, ao mesmo tempo, nada definem. Não dão critérios. Não dão uma medida, com a qual na realidade da vida se possa decidir, de uma vez por todas, quem é e como é um falso profeta. A figura mantém distância da realidade. Não nos foi dado eliminar a tensão entre realidade e figura. Vejo nisso a dificuldade, a cruz, de nossa perícope.
Passos que tendem a eliminar essa tensão de Mt 7,15-23 parecem-me ser dados ali onde. com ajuda de outros textos bíblicos, se procura definir melhor os falsos profetas. Pois, por um lado, a gente se sente lembrado da luta de um Jeremias (cf. Jr 23,9ss; 27-29) contra os falsos profetas e dos critérios que nestes conflitos foram sendo elaborados (Jr 23,14!). E, por outro lado,sabemos que Mateus também fala dos falsos profetas no sermão profético de Mt 24,11.24. E aí não só sinais e milagres, mas, concretamente, falta de amor serão algumas de suas características no fim dos tempos. Comparando ainda outras passagens do Novo Testamento (2 Pe 2,1-3; 1 Jo 4,lss), poder-se-ia descrever os falsos profetas de 'libertinistas' (cf. G. Barth, p. 152s). Esta definição talvez até corresponda à verdade histórica. Mas ela, em todo caso, não está na intenção de Mateus em nossa perícope, pois ele nada define, mas só dá figuras, enquanto se refere a falsos profetas em nossa realidade, neste mundo (w. 15-20). Somente naquele dia (v.22), no fim (vv.19.21-23) nos serão abertos os olhos!
Aquele dia, o dia da cena do juízo, não é o nosso dia Assim como não nos é dado dissolver a tensão entre figura e realidade, lambem não nos é concedido nivelar aquele dia com nossos dias. Em nossos dias falamos de falsos profetas ern figuras, naquele dia tudo estará evidente. Saberemos, se, em verdade, fizemos a vontade do Pai. Saberemos, se profetizamos e pregamos a palavra do Senhor. Saberemos, se exorcismo e milagres – que também são manifestações legítima da comunidade de Jesus (Mt 10,1!) – foram para seu louvor ou para nossa grandeza. Tudo isso será cristalino. Mas em nossa caminhada para este dia as coisas não são assim cristalinas. São figuras.
A cena de juízo diz respeito, especialmente, ao destino dos falsos profetas. Lendo o todo da perícope isso, sem dúvida, é verdadeiro. Mas com isso não está dito tudo. Pois, afinal, no juízo ninguém entra como falso profeta ou como discípulo, como conde¬nado ou como salvo. Os vv.21-23 tornam isso muito claro. Não só falam do julgamento dos falsos profetas. Falam do julgamento de todos: nem todo o que diz… Com isso cada um de nós é participante da cena final, sabendo que a aceitação é graça e nada mais. O Senhor revelará o falso profeta e o Senhor revelará o discípulo. Isso tira a última soberbia do velho adão que anseia por estabelecer-se como juiz derradeiro, já aqui na terra. A última palavra é do Senhor.
Nossas palavras são penúltimas. É difícil, é cruz, sustentar essa caminhada, onde as coisas penúltimas ditas por nossa boca não tomam a forma de coisas últimas ditas pelo Senhor. Aparentemente seria mais fácil e mais glorioso poder dizer para a comunidade que esses e aqueles são falsos profetas; a comunidade voltaria para casa possuindo os critérios de falso e verdadeiro; as pessoas não ficariam sobrecarregadas com perguntas e procura. E, no entanto, esse não é o caminho que o evangelista nos indica em Mt 7,15-23.
Esse caminho é, provavelmente, mais difícil e de mais luta. Mas é bem isso que lemos na Bíblia. Toda vez que nela se fala de falsa profecia está presente a categoria da luta (cf. 1 Rs 18,20ss!). As decisões entre falsa e verdadeira profecia foram decisões difíceis. Hoje não é diferente. Se na pregação falarmos das posições diferentes que existem na comunidade, estaremos mexendo em feridas. Se falarmos do fim do mundo, estará vacilando tudo que aqui se entende como poder último, e que fala do amanhã só para não falar do hoje. E se falarmos do salário mínimo e dos preços pagos ao colono, com a promessa de ajuntar para dividir, nada disso vai ocorrer sem luta.
Seguir a intenção de nosso texto é, pois, caminho da cruz de Jesus. Isso também quer dizer que nossa perícope corresponde à morte de Jesus na cruz e ao reino por ele trazido. Na morte não há nenhuma evidência de fé; na cruz nada está claro; tudo é confuso. A clareza é a ressurreição. Nessa vivemos, de maneira plena e última, em esperança. Nesse caminho entre cruz e ressurreição de Jesus vejo colocado Mt 7,15-23.
V
Tento algumas indicações para a prédica. Mas peço ao leitor que veja nelas algo muito provisório. Nosso texto requer figuras e exemplos da vida. Imagino isso como tema de um primeiro passo. No início, falei de três situações Penso que elas seriam assuntos de prédica. A miséria, em que está a maioria do povo brasileiro. E a profecia, de que um dia todos vão participar com chances iguais, em justiça. Os conflitos na comunidade, que surgem a partir de diferentes formas de piedade. Uns tendem a usar a comunidade conforme os critérios da projeção social. Para outros a comunidade passa a ser o círculo dos verdadeiramente crentes. O fim do mundo, que pode fechar os olhos para a miséria e pode garantir tudo aquilo que existe. Nestas situações se pergunta: falsa profecia?
A comunidade dificilmente vai ouvir estes exemplos com indiferença. Vai transparecer mais ambiente de luta do que de indiferença. As coisas são tão concretas que teremos que mostrar que nesta luta pela verdade permanecemos no caminho. Talvez seja necessário falar da tolerância na luta, nas posições ainda que antagônicas. Trata-se da tolerância que não nivela os conflitos, mas que deseja que os aguentemos até o fim. E o fim é a palavra do Senhor.
Jesus vai decidir. Imagino isso como tema de um segundo passo. Aí se poderia falar dos limites das coisas de nossa vida, de nossa sociedade. Também se terá que falar do fim que o Senhor vai colocar a este mundo. E terá que se falar do fim de todos: dos falsos profetas e dos que vivem na lei do amor. Aí se poderia falar de um acontecimento que, naqueles dias, ficou importante para a comunidade. E devemos nos lembrar que do fim se pode falar de várias maneiras. Pode-se, por exemplo, aproveitar o fim para causar medo. Eu acho que desse fim se pode falar sem medo e com muita graça.
Bibliografia
– KRÄMER. Michael. Hütet euch vor den falschen Propheten. Eine überlieferungsgeschichtliche Untersuchung zu Mt 7,15-23/Lk 6.43-46/Mi 12,33-37. Bíblica 57. J976. 349-377.
– BORNKAMM. Günther: BARTH. Gerhard: HELD. Heinz Joachim. Überlieferung und Auslegung im Matthausevangelium. Neukirchen. 196R
– BONHOEFFER. Dietrich. Nachfolge. München. 1964.