Prédica: Mateus 9.1-8
Autor: Martin Volkmann
Data litúrgica: 19º Domingo após Trindade
Data da Pregação: 21/10/1979
Proclamar Libertação – Volume: IV
I – O Texto
1. Mateus inclui a presente perícope no contexto maior dos caps. 8-9 onde ele reúne vários relatos de curas, milagres e atitudes de Jesus que Mc e Lc apresentam em outro contexto. Mateus com isso destaca, nesse contexto, o Jesus da ação, em contraposição ao Jesus da palavra (caps. 5-7; 10). Já esse fato nos mostra que o nosso texto não pode ser entendido como um ensino de Jesus acerca de algo, por exemplo, o perdão dos pecados, mas o acento está naquilo que ele faz: ele perdoa os pecados. Esse mesmo aspecto o autor consegue destacar reduzindo sensivelmente o relato de Mc. Uma comparação sinótica evidencia, à primeira vista, que a narração em Mt é mais sóbria: ele deixa fora todo o sensacionalismo ao redor da aproximação do paralítico a Jesus; concentra no essencial a disputa com os escribas acerca do perdão e cura; altera o final dando outra justificativa para o louvor a Deus pelo povo (que dera tal autoridade aos homens). Com isso o relato de Mt, aparentemente, perde de dinâmica, porque não contém mais aqueles elementos que dão vivacidade à narração, como em Mc. O texto de Mt, assim pode parecer, tornou-se estéril, palavra seca acerca de certas verdades sobre o Cristo. Mas essa impressão é falha. Justamente por concentrar tanto assim a narração, ele consegue destacar aquilo que importa, dando outra dinâmica ao texto. Senão vejamos: ele não fala do Cristo, mas de Jesus que entra num barco; ele não discorre sobre a fé, mas acentua a fé deles, isto é, dos que carregam o paralítico; este paralítico não é alguém qualquer, um paciente ou cliente do médico, mas Jesus se dirige a ele com as palavras: Tem bom ânimo, filho!; os escribas não são representantes de uma corrente teológica qualquer, mas são os adversários de Jesus; o perdão dos pecados não é qualquer sentença teológica, mas é uma atitude solidária e soberana de Jesus; a autoridade de Jesus não é uma caracterização qualquer de Jesus, mas é um evento, diante do qual o povo reage com temor (cf. Eisinger, p. 445).
2. No centro da perícope está a questão da autoridade de Jesus em perdoar pecados. O paralítico é trazido a Jesus na esperança de encontrar auxílio junto a ele. E enquanto todos esperam que Jesus o cure, ele os surpreende com o anúncio: Teus pecados estão perdoados!. E só diante do 'protesto' dos escribas Jesus dá o outro passo, inicialmente esperado, curando o enfermo. Essa sequência: perdão – cura mostra que para Jesus há uma relação entre o pecado e a moléstia. Não no sentido de que se possa estabelecer estatisticamente uma vinculação entre ambos (cf. Lc 13.1-5; Jo 9.1-3), mas no sentido de que a situação de sofrimento é a consequência do relacionamento transtornado entre Deus e o homem. Por isso Jesus vai logo ao cerne do problema. Para prestar auxílio real a esse paralítico ele lhe anuncia o perdão dos pecados, isto é, ele restabelece a comunhão entre Deus e o homem. Mas como esse relacionamento não se restringe à esfera espiritual, interior, mas sempre é concreto, implicando a corporalidade, ele dá também o segundo passo: Levanta-te, toma o teu leito, e vai para a tua casa. Aqui, pois, só é dito explicitamente aquilo que está implícito em todas as curas: o restabelecimento da comunhão entre Deus e o homem (cf. 9.19-22). Assim, Jesus se evidencia como sendo o portador da salvação escatológica(Jr 31.33; Is 61.1 s; 35.5s), como aquele que tem EXOUSIA (autoridade, poder; cf. Mt 7.29; 28.18; Mc 1.22,27; 6.7; 11.28,29.33; Jo 5.27). Observe-se as três passagens mencionadas em que Mt emprega esse termo: uma vez no fim do Sermão do Monte, nesta passagem e no fina! do Evangelho. Portanto, o Jesus – terreno e ressurreto – é aquele que tem autoridade, tanto na palavra, quanto na ação.
Que significa essa EXOUSIA? Considerando passagens como 11.27; 28.18 constatamos que ela é poder dado por Deus e que tal poder é universal. Portanto, o termo EXOUSIA caracteriza o mistério do Filho do Homem. Nele nós somos confrontados com o próprio Deus. Por isso a sua EXOUSIA é também o seu ministério: ele não só tem o direito de anunciar, mas também o poder de conceder o perdão sobre a terra. Assim, por Jesus ter sido agraciado e autorizado com tal EXOUSIA divina, onde a mesma se manifesta poderosamente, ali o Reino de Deus está presente (cf. ThWII, p. 566).
No entanto, é interessante observar que Mt usa mais uma vez esse termo nessa passagem, desta vez não para falar da autoridade de Jesus, mas da autoridade dada aos homens (v.8). Alguns versículos adiante (10,1) ele novamente usa esse termo em conexão com a orientação que Jesus dá aos discípulos. Considerando o que dissemos acima sobre o termo EXOUSIA e considerando, outrossim, que os discípulos em Mt simbolizam a comunidade, podemos concluir: como Cristo, assim também a sua comunidade tem autoridade de perdoar os pecados e curar aqui e agora.
3 Os adversários de Jesus observam muito bem: esse Jesus age como o próprio Deus. Porque o' direito e a autoridade de perdoar pecados competem somente a Deus (cf. Ex 34.5s; Is 43.25; 44.22). Nem mesmo o Messias tem ta! competência. Como pode, pois, esse Nazareno arrogar-se tal direito? A conclusão é lógica: ele blasfema! Com sua atitude eles saem em defesa de seu Deus. Quem assim procede não pode estar agindo corretamente; este só pode estar fazendo o mal, para o povo e para o próprio Deus (cf. Mt 12.22ss). Mal, porém, não é o agir de Jesus, mas o procedimento deles. Porque com essa atitude eles não estão se opondo a uma opinião humana, mas ao próprio Deus. Com sua formação teológica e seu zelo religioso pensam saber quem é Deus e como ele deve agir Mas com isso eles justamente se fecham e não podem ver a revelação de Deus neste Jesus. Porque revelação de Deus não significa comunicação de verdades dogmáticas, mas é a prova do seu amor ali onde nenhum outro auxílio pode ser esperado.
II – O texto na nossa situação
1. A presente perícope reflete a situação da comunidade na época de Mt. Essa comunidade se caracteriza pelo fato de que nela continuamente se perdoa pecados. Mais ainda: nessa comunidade não são só perdoados os pecados. No seio dessa comunidade igualmente acontece que doentes são curados de suas moléstias Portanto, essa comunidade se entende como autorizada (munida de EXOUSIA) para curar e perdoar. Agindo assim ela não está usurpando algo, ela não está fazendo algo que não lhe compete. Pelo contrário, ela está consciente de que justamente nesta procedimento ela está sendo fiel ao seu Senhor, a comunidade que quer permanecer seguindo a Jesus deve preocupar-se em tornar sãs as pessoas.
2. Em contraposição a isso – qual é a realidade atual em muitas comunidades cristãs? Sem dúvida, nas comunidades cristãs é dada a absolvição dos pecados. A confissão e absolvição dos pecados são um elemento integrante do culto, em especial do culto de Santa Ceia. Mas para milagres, para curas não há mais lugar em nossas comunidades tradicionais. Em nosso mundo racional e científico milagres não são mais possíveis. Ou se algo semelhante ocorre nos terreiros de Umbanda ou em grupos pentecostais, tais fatos são encarados com ceticismo ou com um certo ar de superioridade: Nós não precisamos mais desses artifícios. Em lugar disso, em nosso meio, tudo está concentrado no milagre interior, na conversão, no renascimento da pessoa. Assim também a absolvição passou a ser algo que diz respeito tão somente ao interior da pessoa, ao subjetivo, ao emocional. Perdão dos pecados é algo que a pessoa deve aceitar no seu coração, no seu íntimo, mas que pouco ou nada tem a ver com o todo da pessoa, com sua corporalidade. Conseqüentemente, perdão dos pecados não é mais a eliminação da culpa diante de Deus, mas é meramente o apagar do sentimento de culpa na pessoa. Basta eu aceitar e estar tranquilizado interiormente, o resto pode ficar tudo como está. No caso do paralítico isso significaria que ele poderia continuar tranquilamente sobre o seu leito; bastaria que ele estivesse interiormente consolado. Em suma: em nossas comunidades tradicionais nós nos contentamos em perdoar os pecados, em tranquilizar o coração das pessoas, mas não nos preocupamos em torná-las sãs, em curá-las integralmente, em ajudá-las a caminhar novamente.
Essa redução à esfera íntima da pessoa desconsidera dois aspectos importantes da mensagem bíblica que transparecem claramente nesse texto: Uma vez, o fato de que Deus não diz respeito apenas ao íntimo da pessoa. Ele não é o Senhor da alma somente, como se a esfera corporal nada tivesse a ver com Deus. A fé no Deus Criador nos impede de fazermos tal separação entre corporal e espiritual. Com base nisso vale, por outro lado, que para a Bíblia há uma vinculação íntima entre pecado e doença, entre transtorno do relacionamento Deus-homem e transtorno da sanidade da pessoa.
3. Portanto, onde Deus intervém na vida de uma pessoa ele o faz radical e integralmente. Ele não se limita a ser o Senhor da alma tão somente, mas Deus toma conta do homem todo e, através do homem, de todo o mundo. Assim, Deus não se satisfaz em que a pessoa esteja convertida interiormente, contentando-se com que o mundo permaneça como está. Perdão dos pecados só é real ali onde a causa e as consequências do pecado também são eliminadas. Em última análise, trata-se aqui de nada mais nada menos do que da ressurreição dos mortos. Mas não como algo que vai acontecer num futuro incerto. Não, ressurreição dos mortos aqui e agora. Disso a comunidade primitiva estava consciente, conforme nos mostra claramente essa perícope. E ela sabe que, agindo assim, está sendo fiel ao seu Senhor. Onde a comunidade cristã deixar de exercer este seu ministério, onde ela se limitar a somente perdoar pecados, ela corre o risco de nem mais fazer isso. Em outras palavras, a absolvição dos pecados torna-se uma fórmula vazia que não diz mais nada e não ajuda a ninguém. E a consequência é que as pessoas procuram ajuda para o seu ser integral, para corpo e alma, em outros lugares. Ou elas caem num ativismo desenfreado que procura sanar os seus males pelas próprias forças (salvação pelas obras) ou elas procuram cura ilusória naqueles lugares que talvez saram suas feridas externas, mas que não curam integralmente, não podem eliminar o transtorno no relacionamento com Deus. Cor isso à comunidade cristã deve ser enfatizada a sua EXOUSIA de perdoar e de curar, aqui e agora, para poder permanecer fiel ao seu Senhor.
4. Como nós hoje poderemos continuar na fidelidade ao Senhor, fazendo uso da EXOUSIA que ele nos concedeu? Onde está presente, em nosso meio, em nossa esfera corporal, o pecado e a morte? Onde e como a comunidade cristã exercerá este seu mandato?
Sem dúvida, as situações de 'moléstia' em nosso contexto são múltiplas e flagrantes. Basta abrirmos os jornais e revistas ou caminharmos de olhos e corações abertos pelas ruas das cidades e dos campos. Vejamos alguns exemplos: O número de marginalizados aumenta sempre mais – marginalização económica, cultural, racial. Como comunidade cristã nós não podemos — e devemos -ter uma palavra e uma atitude de cura nesse sentido? Quem tem ouvidos abertos para o que as pessoas falam acerca de como se sentem, notará quanta angústia, quanto desespero, quanto sofrimento se esconde em seu íntimo. O número de pessoas solitárias, principalmente nos grandes centros, é enorme. Pessoas que não têm alguém sequer para dialogar, para sentirem-se aceitas. Da mesma forma os viciados, seja em drogas, seja no álcool, são exemplo flagrante de necessidade de 'cura'. A comunidade cristã não poderia ser a oportunidade de acolhimento e cura para eles? Onde a comunidade vê nisso o seu mandato, qual seja, em perdoar e curar aqui e agora, a questão do que é mais fácil entre ambos não pode ser respondida nem para um, nem para o outro lado. Nem o perdoar nem o curar é mais fácil ou mais difícil. Mas ambos são os dois lados da mesma moeda. E à comunidade cristã cabe desempenhar o seu mandato integralmente.
5. No entanto, como em relação ao próprio Jesus, esse mandato da comunidade não permanece incólume às contestações dos escribas É a tentação a que estão expostos os teólogos de todos os tempos, qual seja, a atitude de protesto contra o oferecimento da graça gratuita de Deus àqueles que realmente dela necessitam. São aqueles teólogos que sabem exatamente como, quando e onde Deus deve agir. E, por isso, toda atitude que foge deste esquema só pode ser blasfêmia. A este perigo toda teologia, toda igreja está sujeita. Onde nós queremos fixar como devem ser os caminhos de Deus, nós corremos o risco de andar pelos caminhos de Satanás. Porque a acusação de blasfêmia ali onde a graça de Deus torna integralmente são aquele que tudo espera dessa graça, essa acusação pode voltar-se contra si mesma: de acusadores passamos a ser réus; blasfémia é a nossa atitude, porque nos opomos ao agir livre de Deus.
6. Assim, estão em contraposição aqui, de um lado, aqueles teólogos que querem determinar a forma do agir de Deus, fechando-se, assim, à graça de Deus, e, de outro lado, aqueles amigos do paralítico que ousam levá-lo a Jesus, expressando com isso que esperam tudo dele; eles estão abertos à surpresa do agir divino. Uma comunidade cristã, que se preocupa em ser fiel ao seu mandato, deverá ter em seu meio tais pessoas que 'carregam junto' o sofrimento alheio; que se solidarizam com aquele que sofre e que talvez não tenha mais forças para caminhar até Jesus. Pessoas que sabem que Jesus Cristo torna são o doente e que por isso se dispõem a ser portadores do sofrimento alheio para ser aliviado junto ao Cristo. Pessoas que não se limitam a constatar se o sujeito está inteiramente em ordem com Deus, mas que têm a coragem (isso também pode significar EXOUSIA!) de se colocar ao lado daquele que nada tem a oferecer e dizer com a sua própria vida: Teus pecados estão perdoados! Levanta-te e anda!.
Essa mesma atitude de pessoas na comunidade pode ser expressão daquele estímulo de Jesus ao paralítico: Tem bom ânimo, filho. Para se obter a justificação é preciso ter coragem, ter ânimo. Ë disso que falta em nossas comunidades. Ao invés de confiar na salvação divina, as pessoas têm medo, não sabem se podem realmente crer, desconfiam se Jesus realmente poderá ajudar. A todos estes a comunidade cristã, com toda a sua maneira de ser e pela atitude individual de seus membros pode e deve expressar: Tem bom ânimo!
Onde isso ocorrer também a próxima frase de nosso texto: Teus pecados estão perdoados! não será mais uma formula vazia, mas será anúncio autorizado, palavra libertadora.
III — A pregação desse texto
Comunidade cristã tem sua razão de ser no fato de ser ela o lugar onde se dá a experiência com Deus. Ë dessa experiência que ela vive e é para proporcionar tal experiência que ela existe. Nosso texto testemunha uma tal experiência com Deus. Acima nós refletimos sobre a pergunta se a comunidade realmente está exercendo o seu mandato no sentido de proporcionar tal encontro com Deus. Refletimos isso a partir de dentro, da própria realidade comunitária. Questionamento semelhante em relação à comunidade cristã vem de fora, daqueles que não mais acreditam no valor da comunidade cristã. O presente texto se oferece para anunciar à comunidade a experiência com Deus e desafiá-la a viver desse encontro para torná-lo possível também a outros, àqueles que não podem ou não sabem 'andar'.
Assim, a pregação desse texto poderá abordar três aspectos:
1. A EXOUSIA da comunidade em perdoar e curar.
2. A contestação dessa EXOUSIA dentro da própria Igreja.
3. Atitudes que favorecem o exercício dessa EXOUSIA.
IV — Bibliografia
– BRAKEMEIER, G. Evangelho e milagre sob a perspectiva do Novo Testamento. In: Estudos Teológicos. Ano 16. Vol. 3, 1976.
– EISINGER. W. Meditação sobre Mt 9.1-8. In: Göttinger Predigtmeditationen. Ano 62. Caderno 8. Göttingen. 1973.
– FOERSTER. W. Artigo EXOUSIA. In: Theologisches Wörterbuch zum NT. Vol. 2. Stuttgart. 1935.
– GOPPELT, L. Teologia do Novo Testamento. Vol. 1. São Leopoldo/Petrópolis. 1976, pp. 155-156.
– HENNIG, R. Meditação sobre Mt 9,1-8. In: Calwer Predigthilfen. Vol. 11. Stuttgart. 1972.
– IWAND. H. .1. Meditação sobre Mt 9,1-8. In: Predigt-Meditationen. 3a ed., Göttingen. 1966. pp. 463-469.
– SCHNIEWIND, J. Das Evangelium nach Matthäus. In: Das Neue Testament Deutsch. Vol. . 11a ed.. Göttingen, 1964.