Prédica: Tito 3.4-7
Autor: Gottfried Brakemeier
Data litúrgica: Natal
Data da Pregação: 25/12/1979
Proclamar Libertação – Volume: IV
I
Conversa captada na rua em época de Advento: Sabe, essa coisa de Natal é pura chateação. Ao que responde o outro: É … mas é aquela emoção.
São duas maneiras de ver o Natal. Ambas espelham algo da nossa realidade. O corre-corre até as vésperas da Noite Santa, a transformação de mais esta oportunidade em negócio, a desproporção entre a pompa da festa de um lado e o seu real significado para as pessoas de outro – quem pode negar que Natal possui aspectos irritantes? Natal periga sucumbir na opulência de uns e na carência de outros, periga ser atrofiado pela estafa, pelo materialismo e superficialismo, periga ser transformado numa cerimônia alienada de sua origem. Daí a insatisfação com o Natal e a pergunta crítica pela autenticidade da maneira como o festejamos.
Não menos verdade, porém, é que Natal continua exercendo estranha fascinação sobre as pessoas. O brilho das velas, a beleza desta festa, a paz, a bondade, a fraternidade que faz lembrar, evidentemente sensibilizam anseios, fazendo vislumbrar, por alguns momentos, um mundo diferente daquele sob o qual se sofre. Eis aqui vos trago boa nova de grande alegria, que o será para todo o povo (Lc 2,10). Estas palavras da história de Natal, proferidas pelo anjo, não perderam a sua força, ainda que o seu efeito seja predominantemente emocional. Como julgar estes aspectos do nosso Natal? Como pregar?
Quer me parecer que não nos compete desprezar os sentimentos e as expectativas sempre de novo suscitadas pelo aniversário de Jesus. Logicamente, comunidade cristã não pode conformar-se com a redução do Natal a uma festa para crianças ou a um acontecimento puramente sentimental. Natal é mais do que sentimento, e o texto Tito 3, 4-7, proposto para a prédica, reforçá-lo-á vigorosamente. Entretanto, Natal sem alegria não é Natal, e alegria num emoção não existe. Para os pastores de Belém, para Maria e José, para os magos do oriente o nascimento de Jesus, sem dúvida alguma, significou aquela emoção. Natal é festa, motivo de alegria. Sabemos festejar (!) o Natal?
Também com vistas aos abusos do Natal é bom não esquecer o caráter festivo desta data. Isto não significa permissão para ignorar os problemas que nos afligem. Natal não deixa de ser motivo para o arrependimento. O amor de Deus condena a nossa (alta de amor, Natal condena a falta de glorificação de Deus e de paz na terra. Todavia, prédica que permanece presa às críticas e se resume em juízo e lamentação, igualmente perverte o Natal. Não podemos combater as trevas pela simples crítica das mesmas. É a luz que as afugenta e desfaz. No Natal, Deus acendeu esta luz, e dela vivemos. Por isto prédica de Natal deve falar desta luz, apresentar as críticas revestidas da compaixão de Deus e, deste modo, motivar para nova vivência e possivelmente também para uma festa de Natal mais autêntica.
Em síntese, precisamos da alegria de Natal que transforma pessoas e mundo. Boa parte da nossa desgraça se deve à falta de alegria. Por isto a primeira prédica de Natal que foi aquela do anjo aos pastores nas circunvizinhanças de Belém, tinha por conteúdo alegria. Prédica no Natal deve fazer alegre – apesar de tudo que preocupa, oprime ou entristece. Ela deve encorajar para transmitirmos alegria, acendendo muitas luzes de Natal neste mundo escuro. Para tanto o texto da carta de Tito ajuda, embora à primeira vista pareça ter pouca relação com o Natal. Vejamo-lo mais de perto.
II
A fim de simplificar a difícil versão de Almeida e corrigir a deficiência da tradução de A Bíblia na Linguagem de Hoje, que erroneamente elimina deste texto a alusão ao batismo, apresentamos a seguinte sugestão de tradução:
V.4; Quando, porém, se manifestou a bondade de Deus, nosso Salvador, e o seu amor aos homens, nós fomos salvos.
V.5: não por causa de boas obras que tivéssemos feito, antes por causa de Sua misericórdia. Pelo batismo fomos renascidos, pelo Espírito Santo renovados.
V.6: Deus derramou este Espírito ricamente sobre nós, através de Jesus Cristo, nosso Salvador,
V.7: a fim de que, justificados por sua graça, nos tornemos herdeiros da vida eterna que nós esperamos.
As cartas a Timóteo e Tito se apresentam em forma de uma pastoral de Paulo a estes seus dois importantes colaboradores. Daí o nome cartas pastorais. Entretanto, existe um amplo consenso entre os especialistas no sentido de Paulo, ele mesmo, não poder ser considerado o autor direto. Pelo que tudo indica, as cartas foram redigidas por discípulos de Paulo com o objetivo de proteger o evangelho contra corrupção herética. Em todos os casos, a teologia de Paulo norteou a redação destes escritos do NT, embora se façam sentir também algumas diferenças características. Para a prédica, a pergunta pelo autor é irrelevante.
Também no texto Tito 3, 4-7 se faz sentir a tradição de Paulo. Observamos terminologia típica como não por obras, justificados por sua graça, etc. Mais importante, porém, é que também aqui as exortações cristãs são fundamentadas pelo recurso ao que Deus fez em Jesus Cristo. O imperativo está baseado no indicativo. No contexto dos vv. 1-11, os vv. 4-7 têm a função de justificar por que o cristão tem um compromisso com a prática do bem neste mundo. Duas realidades estão em conflito. Uma é a realidade do ódio, da inveja, de uma vida em malícia, escrava das paixões, desobediente a Deus. E o leitor da carta é lembrado que esta era também a sua vida outrora (v. 3). Tudo, porém, mudou quando Deus manifestou a sua bondade. Conforme o texto, esta manifestação de Deus transformou o destino dos homens. Ela significa salvação da perdição e início de uma nova existência, pronta para toda boa obra (v. 1). O que Deus fez, pois, é fundamental. E o que nós devemos fazer, nada mais é do que ser o retrato fiel da obra de Deus em nós. Mas, em que consiste precisamente esta obra de Deus?
Deus manifestou a sua bondade e seu amor aos homens (v. 4). Quando? Ao enviar Jesus ao mundo. O v. 4 se refere à encarnação da bondade de Deus em Cristo. Em outros termos, o versículo fala de Natal. O amor de Deus assumiu forma concreta no homem Jesus de Nazaré. Deus se tornou homem; aliás, não qualquer homem, mas sim o homem que aceita os homens, que não os julga conforme os méritos nem os ama por causa de eventuais boas obras. É misericórdia que faz com que Deus se incline ao ser humano para arrancá-lo de sua miséria e perdição (v. 5). O nascimento de Jesus tem aí a sua causa última.
Mas não só o nascimento de Jesus respectivamente a sua vinda ao mundo é resultado da bondade divina. Não menos o é a sua morte na cruz. O Novo Testamento relaciona a manifestação da bondade de Deus tanto com o Natal como também com a morte de Jesus em nosso favor. Deus, ao enviar Jesus, arriscou a vida de seu Filho, arriscou que os homens o crucificassem (cf. Mc 12,1ss). Deus entregou o seu Filho, o seu amor o sacrificou por nós. Por isto Paulo pode escrever: Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco, pelo fato de Cristo ter morrido por nós, sendo nós ainda pecadores (Rm 5.8). Natal já implica a Sexta-feira Santa. A criança de Belém, pela qual Deus nos revela seu amor, é aquela que será crucificada por causa dos nossos pecados, pelo ódio que reina neste mundo. Portanto, o v. 4 fala de Natal. Simultaneamente, porém, fala da morte de Jesus. Na Sexta-feira Santa, o Natal acha a sua consumação (cf. Jo 19.30).
Uma das peculiaridades deste texto, porém, consiste em afirmar a manifestação salvífica da bondade de Deus não só na vinda de Cristo a este mundo e em sua morte pelo mesmo, mas também no batismo, chamado de lavar regenerador, ou melhor, de lavar de renascimento. O que o Natal tem a ver com o batismo? É que, no batismo, Natal de certo modo acha a sua aplicação direta. Deus aí novamente manifesta a sua bondade, e isto concretamente no indivíduo. É igualmente interessante observar que o texto não distingue entre batismo de água e batismo do Espírito Santo. Fonte de renascimento e renovação é a misericórdia de Deus, de que o batismo é veículo e cuja força é o Espírito Santo. Deus não considera méritos do homem ao mostrar-lhe sua bondade. Por isto também não existe com que a pessoa possa merecer a vinda do Espírito Santo. O Espírito não é o privilégio dos cristãos adiantados. Apenas como uma criança a pessoa o recebe condignamente (cf. Mc 10,15). Ele não é o prémio para o nosso arrependimento ou para a nossa conversão. Ele é o poder do amor divino que transforma as pessoas.
Contudo, o texto seria mal-entendido, se dele depreendêssemos um mecanismo entre batismo e renovação do homem. Assim como Natal não transforma automaticamente o mundo, assim também o batismo não transforma automaticamente as pessoas. Em ambos os casos, a bondade de Deus quer ser aceita na fé, traduzindo-se assim em efeito transformador. Todavia, esta bondade é poder que constrange (2 Co 5.14) aqueles que por ela se sabem atingidos. Ele opera ricamente nos crentes (v. 6) que, aceitando a justificação implícita na bondade de Deus, já se encontram dentro de nova vida e simultaneamente esperam herdar a vida eterna no momento em que vier o perfeito e o que é em parte será aniquilado (v. 7; cf. 1 Co 13.10). Natal, e juntamente com ele o batismo, como manifestação da bondade de Deus, inauguram uma nova vida e simultaneamente colocam na esperança pelo advento da vida eterna em sua plenitude.
Em resumo, o texto constata: Deus manifestou a sua bondade. Ele o fez em Belém, através da criança que os homens mais tarde pregaram na cruz. Ele o fez igualmente no batismo de cada um de nos. Portanto, desde Natal existe um novo mundo dentro do velho, mundo este que Deus criou e em que reinam graça, bondade e amor em lugar de ódio, opressão e assassínio. Antes de falarmos em novas possibilidades e em compromissos, temos que falar nesta ação de Deus, caso contrário esvaziamos o Natal.
Em decorrência do que Deus fez, porém, se abrem para o mundo e para nós novas possibilidades e se nos colocam compromissos (observe-se o contexto parenético). Natal fala de um acontecimento, cuja realidade, autenticidade e veracidade não dependem do que nós pensamos, fazemos e acreditamos Ë uma iuz que está aí e que todas as tempestades devastadoras deste mundo não conseguem apagar. Mas esta luz quer ser por nós usada para dissipar a escuridão em torno de nós. É preciso deixar-se inflamar por esta luz para que haja menos escuridão, menos sofrimento neste mundo. Natal é um acontecimento do passado – e como tal muito importante – mas ele quer acontecer de novo, sempre de novo. sempre mais aqui entre nós, neste mundo.
III
A prédica poderia partir da constatação que Natal é uma festa bonita. Ela é bonita, talvez não tanto por causa da maneira como o festejamos, mas por causa de seu conteúdo. As maneiras como festejamos Natal podem variar. Podemos ter um Natal feliz ou um Natal estragado, vazio, triste, um Natal que de fato é chateação. Às vezes depende de nós, às vezes não. Existem milhares e milhões de pessoas que não têm condições, externas ou internas (ou ambas), para festejar um Natal bonito. Quanto a seu conteúdo, porém, Natal é bonito, sem sombra de dúvidas. Somos introduzidos num outro mundo, no mundo da paz, do amor, da alegria e da felicidade. Quem não gostaria de viver intensivamente a felicidade de Natal?
Infelizmente, porém, vemos que não dá. Existem demais obstáculos. Por alguns instantes talvez consigamos esquecer as lutas, as angústias, as injustiças, as decepções. Mas não é possível despir tudo isto assim como se tira o casaco. As trevas nos perseguem. Há uma incompatibilidade de Natal com o que experimentamos no dia a dia. Natal não se enquadra bem na nossa realidade É bonito demais. Daí a pergunta: Natal, um sonho? Nada mais do que uma linda ilusão?
Ora, a criança de Belém não é ilusão, não é simples sonho, não e invenção. Ela é real. Ela sabe que nós todos temos bem mais necessidade de amor do que nós merecemos. Por isto ela teve a coragem de viver o que é tão incomum neste mundo, a saber, a bondade, a misericórdia, a compaixão. Ela viveu o amor de Deus, ela o trouxe a nós. Que este amor, de fato, não se enquadra neste inundo, isto se pode observar na Sexta-feira Santa. Por que os homens mataram a criança de Belém? É o contra-senso! No fundo sabemos que precisamos de amor, de paz, de alegria, de tudo aquilo de que Natal nos fala. Nós sabemos que, assim como somos, ainda nós somos verdadeiramente humanos. Nós nos queixamos de um mundo desumano, sabemos que nós mesmos deveríamos ser diferentes. Precisamos, pois, do Natal, mas por que não vivemos de acordo? Por que sempre de novo crucificamos aquele que nos traz a bondade de Deus e nos quer converter para a bondade?
É bem verdade, Natal não se enquadra na nossa realidade. No entanto, é dever da prédica deixar claro que Deus inverte as coisas: É este mundo que não se enquadra no Natal. Graças a Deus que Ele não teme as trevas, que Ele não nos condena por causa das nossas fraquezas, que Ele não faz depender o seu amor dos nossos méritos. Sinal deste amor é – não por último – o nosso batismo. Por que fomos batizados? Unicamente por causa do amor de Deus, só! Por que Deus fez Natal, por que Jesus nasceu em Belém? Unicamente por causa da bondade de Deus, por causa de sua compaixão com um mundo dilacerado, aflito, culpado. Portanto, o que deve mudar ou desaparecer não é o Natal. O que deve mudar é o nosso mundo, o que deve desaparecer é um determinado tipo de mundo, a saber, o mundo em que as pessoas se matam e desrespeitam o Criador.
Mundo que se enquadra no Natal, qual seria este? Seria um mundo em que se dá glória a Deus nas maiores alturas e em que reina paz na terra entre os homens a quem ele quer bem. Comunidade cristã sabe deste novo mundo, sabe de renovação e renascimento. Ela conhece o poder do Espírito Santo, e de certo modo antecipa este novo mundo no seu louvor a Deus e em sua prontidão para toda boa obra. A alegria do Natal é uma parte deste novo mundo, pelo qual a comunidade tem amplas razões de agradecer. Mesmo assim, cabe respeitar que a comunidade continua vivendo na esperança, dependendo da graça de Deus, comprometida com ela e ciente de que a realidade de Natal sempre de novo é negada, desprezada, reprimida, crucificada. Importa, porém, que a luz de Natal, que está brilhando nas trevas e que é Jesus Cristo, continue acesa em nós, também quando as velas do pinheirinho se apagam e voltamos àquilo que chamamos de normalidade. Natal deve permanecer, assim como permanece a bondade de Deus.
Eis alguns pensamentos que o pregador, na tentativa de dizer a mensagem de Natal pode usar, desprezar, concretizar ou complementar.
IV – Bibliografia
– DIBELIUS. M / CONZELMANN. H. Die Pastoralbriefe. 4 ed., Tübingen, 1966.
– HOLTZ. G. Die Pastoralbriefe. 2a ed.. Berlin. 1972.
– BROX, N Die Pastoralbriefe. 4a ed.. Regensburg, 1972.
– BRUNNER. P. Meditação sobre Tito 3.4-7. In: Herr tue meine Lippen auf. Vol. 2. 1959. p. 54ss.
– RUPRECHT. W. Meditação sobre Tito 3.4-7. In: Cahver Predigthilfen Vol. 12. Stuttgart. 1973. p. 102ss.
– BÖSINGER. R. Die Handschrift des Heils. Lahr. 1967. p. 29ss (prédica).
– SCHIELER. .1. Epistelpredigten. Dienst am Wort 28. Göttingen. 1973. p. 35ss (prédica).
– KOCH. G. Meditação sobre Tito 3.4-7. In: Göttinger Predigtmeditationen. 1961/62. p. 4lss.